Uma tartaruga. Esse é o animal que a maioria dos entrevistados associou à imagem do Poder Judiciário, por sua lentidão, longevidade e sapiência. A constatação é o resultado de uma pesquisa feita pelo Ibope a pedido da Associação dos Magistrados do Brasil para avaliar a imagem do Poder Judiciário no País.

“A gente conhece a velha expressão, vox populi, vox Dei. Se o povo está dizendo, é porque a nossa justiça deve ter algum problema mesmo”, concorda o professor Carlos Alberto Carmona, da Faculdade de Direito da USP. “O problema da lentidão está basicamente em duas frentes distintas, a crise no processo e a crise do Poder Judiciário”, explica Carmona, que atua também na Secretaria da Reforma do Judiciário, uma iniciativa recente do Ministério da Justiça para articular com outros órgãos públicos e a sociedade civil a reforma do Judiciário.

foto:Cecília Bastos
“nós temos que fazer leis que correspondam ao tempo em que vivemos e à velocidade que as pessoas esperam”.

Carlos Alberto Carmona

E como se não bastassem os inúmeros problemas da justiça, o professor também atenta para a mudança do perfil da população numa sociedade marcada pela velocidade. “Algumas décadas atrás, o mandado tinha que ser datilografado, copiado em carbono, para depois o juiz assinar. Era natural que demorasse um ou dois dias”, lembra o professor que, no entanto, não aceita isso como desculpa, “nós temos que fazer leis que correspondam ao tempo em que vivemos e à velocidade que as pessoas esperam”.

São os tempos modernos, tempo dos computadores, da internet, do tempo real, do imediato e de uma justiça que parece estacionada na década de 70. O próprio professor, em visitas ao Fórum Central de São Paulo, surpreendeu-se ao se deparar com equipamentos da época em que ele ainda era estudante no Largo São Francisco. Ali, no principal fórum da maior capital brasileira, confronta-se cotidianamente a maior massa de processos e a pior estrutura do País.


Infelizmente a justiça no Brasil é muito lenta e o processo está se arrastando por mais de dez anos, mas eu tenho fé de que até o final deste ano vou ter uma conclusão da ação”

Célia Maria Calciolari

Talvez seja numa dessas salas escuras, equipadas com papéis-carbonos, mimiógrafos e máquinas de datilografar que esteja tramitando o processo de indenização de Célia Maria Calciolari. Funcionária do arquivo do Centrinho, em Bauru. Célia foi vítima de um erro médico em 94 quando ainda morava na cidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul. O equívoco causou-lhe seqüelas físicas como perda da visão do olho esquerdo, do olfato e de parte do paladar e a levou a mover uma ação contra o hospital. “Infelizmente a justiça no Brasil é muito lenta e o processo está se arrastando por mais de dez anos, mas eu tenho fé de que até o final deste ano vou ter uma conclusão da ação”, diz a funcionária que “quer punição e justiça, coisa que nós não temos em nosso país”.

 
“Quando eu me vi numa situação de acionar a justiça contra a proprietária do imóvel e responsável pelo acidente de minha mãe, optei por me calar”

Nilda Pais

A morosidade é tanta que não é raro o indivíduo abrir mão de acionar a justiça por saber que a conclusão do caso vai exigir muito do seu tempo, seu dinheiro e, principalmente, sua paciência. Foi exatamente isso que passou pela cabeça de Nilda Pais, funcionária do Setor de Publicações da Editora Humanitas, da FFLCH. Sua mãe havia sofrido um acidente por causa de uma calçada mal construída e quebrou o fêmur. “Quando eu me vi numa situação de acionar a justiça contra a proprietária do imóvel e responsável pelo acidente de minha mãe, optei por me calar”, explica Nilda. Na época ela vivia por um momento delicado pela recente perda de um ente da família e não quis passar por mais esse estresse. “A justiça no Brasil é lenta, cruel e parcial porque privilegia quem tem poder aquisitivo”, desabafa Nilda.


Quanto à crise do Poder Judiciário, ela é ainda mais complicada. “Há um problema de autoridade dos magistrados, uma diversidade muito grande de justiças: justiça federal e estadual, a justiça federal eleitoral, a justiça federal do trabalho... isso tudo gera uma série de conflitos”, relata Carmona. Gera conflitos e afasta o cidadão comum, que não sabe qual dessas justiças vai julgar o seu caso e tampouco conhece o seu funcionamento, fato constatado também na pesquisa do Ibope. Nela verificou-se que, para a população, o Poder Judiciário não se faz conhecer e não dá satisfações ao público, no entanto, vê o magistrado como uma pessoa séria, inteligente e que estuda e trabalha muito.


foto:Cecília Bastos
A consolidação é importante porque é um meio caminho entre a legislação esparsa e o código. Quando você consolida, não faz uma lei nova, mas sim elimina discussão contraditória”

Cássio de Mesquita Barros

Mas soluções estão sendo propostas e aplicadas. Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, ou de Pequenas Causas, já existem desde 1984 tratando das ações sobre direito do consumidor, atritos de vizinhança e outras questões de valor inferior a 60 salários mínimos. Há pouco tempo o Tribunal de Justiça também criou um serviço de conciliação em primeira e segunda estâncias que é presidido por um conciliador, tirando do juiz a responsabilidade de reunir partes que estão próximas de um acordo e diminuindo sua carga de trabalho.

Outra iniciativa vem da Faculdade de Direito da USP, mais precisamente da Fundação Arcadas que, em parceria com a Assembléia Legislativa e a Ordem dos Advogados do Brasil, pretende iniciar uma consolidação das leis paulistas, um calhamaço que desde a Proclamação da República soma mais de 25 mil leis. “A consolidação é importante porque é um meio caminho entre a legislação esparsa e o código. Quando você consolida, não faz uma lei nova, mas sim elimina discussão contraditória”, explica o professor Cássio de Mesquita Barros, professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito e presidente da Fundação Arcadas.


foto:Cecília Bastos
Quando é para cobrar a pensão ou se eu deixo de pagar um mês, eles me acham rapidinho, mas o processo judicial é demoradíssimo”

Jorge Gomes dos Santos

É numa situação dessas que se encontra Jorge Gomes dos Santos, porteiro da FEA que em 79 se divorciou da mulher com quem teve quatro filhos. De acordo com a lei vigente, ele teria que pagar pensão até os garotos completarem 21 anos, mas em 2002, o novo Código Civil reduziu a idade-limite que os filhos teriam que receber a pensão para 18 anos. “Eles descontavam 50% do que eu recebia para a pensão das crianças, agora com a mudança da lei eu não preciso pagar até os 21 anos”, afirma o funcionário que procurou ajuda do advogado. Entre as duas audiências que teve com o juiz, houve um intervalo de um ano, período em que enfrentou até uma greve no Judiciário. Agora, o porteiro espera por uma terceira audiência, ainda sem data definida. “Quando é para cobrar a pensão ou se eu deixo de pagar um mês, eles me acham rapidinho, mas o processo judicial é demoradíssimo”, ironiza.

O projeto da Fundação Arcadas eliminaria essas “brechas” criadas pela elaboração de tantas leis, o que provoca demora na justiça e prejuízo para o Estado. “Existem empresas que deixam de se instalar em São Paulo porque as leis ambientais, por exemplo, são conflitantes e confusas”, explica o professor, que já trabalhou na consolidação de leis do trabalho e da previdência.

A meta é digitalizar as leis e dividi-las em assuntos para depois começar a consolidação propriamente dita. O convênio tem a duração de dois anos, período que deverá ser estendido. Enquanto isso, os conjuntos de leis serão disponibilizados à medida que forem ficando prontos. Para essa atividade serão contratados professores da Faculdade de Direito e também alunos. “Há muito dessa atividade que o estudante pode fazer. O diretor ficou muito feliz porque é um meio de aperfeiçoamento do curso jurídico, dando a oportunidade ao aluno de aprender a técnica legislativa e determinadas áreas, como tributária, ambiental, etc.”, afirma.