No período pós-referendo e a opção de 63,9% do eleitorado pelo não, professores de Ciências Humanas da USP expõem suas opiniões sobre a escolha popular. Segundo eles, as liberdades democráticas para comunicação, exploradas em proporção muito superior por minorias ricas, foram essenciais para determinar os rumos da votação. Apontam também como os resultados da campanha deixaram mais nítidos os pontos frágeis da sociedade e a desconfiança pública no seu relacionamento com as instituições do Estado. Até aproximadamente dois meses antes da escolha, pesquisas indicavam que a maioria dos votos seria contrária ao comércio de armas de fogo e munição. Além disso, campanhas do governo conseguiram recolher uma quantia significativa de revólveres, espingardas e outros objetos do gênero. No entanto, o resultado decisivo no referendo foi majoritariamente o oposto.
Pelos números apresentados na prestação de contas ao Supremo Tribunal Eleitoral, os gastos da campanha pelo não foram cerca de 2,5 vezes maior que da concorrente pelo sim. A Companhia Brasileira de Cartuchos, CBC, e a Taurus, fabricante de armas, foram as responsáveis pelo pagamento das contas, um total de 5,7 milhões de reais. O deputado do PFL-DF, Alberto Fraga, participou da Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima Defesa e explica em depoimento à Folha de S. Paulo : “A Taurus e a CBC eram as maiores interessadas. Tinham de pagar a conta mesmo”.
Pelo contrato social, pacto inerente a todo indivíduo após o nascimento e ingresso em determinada sociedade, é prevista a limitação dos direitos individuais em prol do convívio harmonioso do grupo. David Teixeira, advogado criminalista e professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, entende que houve uma sensibilização das pessoas no que diz respeito às constituições históricas amplamente incorporadas como o contrato social, ao qual todos estão sujeitos. “Fizeram as seguintes perguntas: eu abro mão do meu direito pessoal à segurança em prol da organização do Estado? E o que eu vou receber em troca?”
O professor Teixeira explica que, com esse questionamento, fica ainda mais arranhada a relação entre povo e Estado. As instituições têm sua eficiência duramente criticada pelas diversas ausências e falhas, enquanto o governo, constantemente tachado de falido pelos formadores de opinião, não é capaz de reerguê-las. Entre outras palavras, fica estampada publicamente a falta de confiança da população no Estado e em órgãos como a Polícia Militar. Na portaria da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a FAU, o segurança André Nogueira dos Anjos cita um exemplo: “É engraçado ver pessoas importantes como políticos ou atletas votando contra o comércio de armas quando eles têm homens armados ao redor”. Nogueira diz estar tranqüilo no bairro onde mora, pois vive lá há 25 anos e conhece a vizinhança, portanto não se preocupa com a violência. No entanto, ele não achou correto perder o direito de comprar armas, mesmo que não planeje usá-las. “Querem robôs já programados com o que pode e o que não pode fazer”, diz.
Com a exploração das fragilidades, o eleitorado corre o risco de votar contra si próprio. “Quando se diz algo sobre o Brasil, antes temos de nos referir melhor. De que Brasil estamos falando, se este país é uma colcha de retalhos”, explica o professor de sociologia. Aquino fala sobre as modalidades de violência, desde as pressões de filas de hospitais e o desemprego até o momento da manifestação com assaltos e depredações, conservando variantes em certas regiões. Na consulta a um público arrebatado por minorias com interesses puramente mercadológicos, as questões como violência generalizada e problemas regionais são esquecidas pelos próprios cidadãos.
Num artigo para o jornal O Estado de S. Paulo , José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, dá sua opinião sobre as contrariedades dessa consulta pública. Segundo Nalini, deve haver um debate mais intenso sobre as conseqüências futuras das decisões tomadas no presente. Como complemento a mecanismos democráticos do porte de referendos, inclui-se uma exposição melhor de valores capazes de desenvolver o bem-estar social, prevenindo uma escolha equivocada e o risco de auto mutilação do eleitorado. “A consulta à massa, estimulada por propaganda convincente, levada a impulsos emocionais em detrimento da razão, nem sempre conduz ao melhor resultado”. Em outro trecho, ele finaliza: “referendos, plebiscitos e outros institutos democráticos não podem servir para explicitação de protestos ou exercício de um egoísmo irresponsável”.
|