No período pós-referendo e a opção de 63,9% do eleitorado pelo não, professores de Ciências Humanas da USP expõem suas opiniões sobre a escolha popular. Segundo eles, as liberdades democráticas para comunicação, exploradas em proporção muito superior por minorias ricas, foram essenciais para determinar os rumos da votação. Apontam também como os resultados da campanha deixaram mais nítidos os pontos frágeis da sociedade e a desconfiança pública no seu relacionamento com as instituições do Estado.

Até aproximadamente dois meses antes da escolha, pesquisas indicavam que a maioria dos votos seria contrária ao comércio de armas de fogo e munição. Além disso, campanhas do governo conseguiram recolher uma quantia significativa de revólveres, espingardas e outros objetos do gênero. No entanto, o resultado decisivo no referendo foi majoritariamente o oposto.

“É direito da população possuir armas para usá-las. Mas, contra o quê? Bandidos? Principalmente em situações de risco, o bandido está muito melhor preparado e não temos a habilidade necessária para agir precisamente”, questiona o professor aposentado Álvaro de Aquino, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras, e Ciências Humanas, a FFLCH. No seu entendimento, não houve a manifestação espontânea do povo durante o referendo. Há uma falta de noção sobre os direitos, limites e possibilidades, e é alta a sensibilidade da opinião pública diante da bem elaborada publicidade fomentada por investimentos dos interessados no “não”, nesse caso.

foto:Cecília Bastos
“É direito da população possuir armas para usá-las. Mas, contra o quê?"

Álvaro de Aquino

Pelos números apresentados na prestação de contas ao Supremo Tribunal Eleitoral, os gastos da campanha pelo não foram cerca de 2,5 vezes maior que da concorrente pelo sim. A Companhia Brasileira de Cartuchos, CBC, e a Taurus, fabricante de armas, foram as responsáveis pelo pagamento das contas, um total de 5,7 milhões de reais. O deputado do PFL-DF, Alberto Fraga, participou da Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima Defesa e explica em depoimento à Folha de S. Paulo : “A Taurus e a CBC eram as maiores interessadas. Tinham de pagar a conta mesmo”.

O professor Aquino interpreta que “eles conseguiram reverter a tendência do eleitorado, utilizando a questão do direito básico. Houve uma exploração das fragilidades ideológicas das pessoas, como o pânico, já que ninguém consegue se sentir seguro com a varredura da polícia. A partir daí, cria-se uma ilusão do porte de armas como fonte de proteção, constituindo um direito básico”.

A propaganda revela sua eficácia através do depoimento de muitas pessoas: “Se o bandido pula no meu quintal e eu tenho uma arma, posso me defender”, fala Dionísio Messias de Lima, do Laboratório Didático do Instituto de Física. Ele diz “já ter tomado muito tapa na cara” sem poder reagir devido à pressão de gente armada. No referendo, votou “não”, porque acha que as pessoas têm poucos direitos e não devem abrir mão de mais um. “Por que o brasileiro não pode votar o próprio salário ou cassar o corrupto das Câmaras? Já não podemos nada!”

foto:Cecília Bastos
“Por que o brasileiro não pode votar o próprio salário ou cassar o corrupto das Câmaras?”

Díonisio Messias Lima

Pelo contrato social, pacto inerente a todo indivíduo após o nascimento e ingresso em determinada sociedade, é prevista a limitação dos direitos individuais em prol do convívio harmonioso do grupo. David Teixeira, advogado criminalista e professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, entende que houve uma sensibilização das pessoas no que diz respeito às constituições históricas amplamente incorporadas como o contrato social, ao qual todos estão sujeitos. “Fizeram as seguintes perguntas: eu abro mão do meu direito pessoal à segurança em prol da organização do Estado? E o que eu vou receber em troca?”

foto:Cecília Bastos
“Fizeram as seguintes perguntas: eu abro mão do meu direito pessoal à segurança em prol da organização do Estado? E o que eu vou receber em troca?”

David Teixeira

O professor Teixeira explica que, com esse questionamento, fica ainda mais arranhada a relação entre povo e Estado. As instituições têm sua eficiência duramente criticada pelas diversas ausências e falhas, enquanto o governo, constantemente tachado de falido pelos formadores de opinião, não é capaz de reerguê-las. Entre outras palavras, fica estampada publicamente a falta de confiança da população no Estado e em órgãos como a Polícia Militar.

Na portaria da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a FAU, o segurança André Nogueira dos Anjos cita um exemplo: “É engraçado ver pessoas importantes como políticos ou atletas votando contra o comércio de armas quando eles têm homens armados ao redor”. Nogueira diz estar tranqüilo no bairro onde mora, pois vive lá há 25 anos e conhece a vizinhança, portanto não se preocupa com a violência. No entanto, ele não achou correto perder o direito de comprar armas, mesmo que não planeje usá-las. “Querem robôs já programados com o que pode e o que não pode fazer”, diz.

foto:Francisco Emolo
“É engraçado ver pessoas importantes como políticos ou atletas votando contra o comércio de armas quando eles têm homens armados ao redor”

André Nogueira dos Anjos

Com a exploração das fragilidades, o eleitorado corre o risco de votar contra si próprio. “Quando se diz algo sobre o Brasil, antes temos de nos referir melhor. De que Brasil estamos falando, se este país é uma colcha de retalhos”, explica o professor de sociologia. Aquino fala sobre as modalidades de violência, desde as pressões de filas de hospitais e o desemprego até o momento da manifestação com assaltos e depredações, conservando variantes em certas regiões. Na consulta a um público arrebatado por minorias com interesses puramente mercadológicos, as questões como violência generalizada e problemas regionais são esquecidas pelos próprios cidadãos.

foto:Adriana Bertier
“A consulta à massa, estimulada por propaganda convincente, levada a impulsos emocionais em detrimento da razão, nem sempre conduz ao melhor resultado”

José Renato Nalini

Num artigo para o jornal O Estado de S. Paulo , José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, dá sua opinião sobre as contrariedades dessa consulta pública. Segundo Nalini, deve haver um debate mais intenso sobre as conseqüências futuras das decisões tomadas no presente. Como complemento a mecanismos democráticos do porte de referendos, inclui-se uma exposição melhor de valores capazes de desenvolver o bem-estar social, prevenindo uma escolha equivocada e o risco de auto mutilação do eleitorado. “A consulta à massa, estimulada por propaganda convincente, levada a impulsos emocionais em detrimento da razão, nem sempre conduz ao melhor resultado”. Em outro trecho, ele finaliza: “referendos, plebiscitos e outros institutos democráticos não podem servir para explicitação de protestos ou exercício de um egoísmo irresponsável”.

SERVIÇOS

Você sabia que podemos propor leis?

O artigo 14 da Constituição Federal promulgada em 1988 diz: “ A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: plebiscito; referendo; iniciativa popular”. Através da “iniciativa popular” é possível ao cidadão comum formular projetos de leis no círculo municipal até o federal, desde que preenchidos alguns requisitos que refletem uma articulação de fatia relevante da população. Mais detalhes no site www.planalto.gov.br , onde se encontra a Constituição com os artigos que abordam esse assunto: 14, 29 inciso XIII e 61 § 2º.