Ela só queria ter uma banca de jornal e vender sorvetes. Acabou socióloga e professora doutora da USP. Seu universo é o ensino e a pesquisa, a análise do mundo do trabalhador. “Espero passar para os meus alunos, de forma cada vez mais ampliada, a necessidade de termos uma sociedade que se paute por um outro tipo de organização de trabalho. Um trabalho que sirva para suprir as necessidades das pessoas, que humanize e não que brutalize, que dê prazer e realização e não que traga sofrimento, mutilação e morte. É utopia? É.... a mais pura! Mas acho que se nos conformamos com algo que não está bem, e não só para uns, mas para a grande maioria, e não lutarmos, será muito pior.” Essa definição sobre o próprio trabalho e suas esperanças é de alguém com autoridade pautada por mais de 20 anos de pesquisas na área.


"A remuneração por produção é extremamente nociva, nefasta e perversa. Destrói o corpo do trabalhador, se não ali naquele momento, como forma de acidente de trabalho, ao longo do tempo. Sou de opinião de que a forma de remuneração tem que ser mudada."

Vera Lucia Navarro, 45 anos, socióloga e professora do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), se debruça sobre os prejuízos para a saúde do trabalhador, resultado de um sistema capitalista de pagamento por produção, adotado dentro da nova ordem de organização do trabalho. E para quem acha que essa realidade é só do trabalhador rural, ela alerta: “O pagamento por produção se vê em vários lugares, isso não se resume a trabalhador do corte da cana ou ao de chão de fábrica, está inclusive no nosso dia-a-dia. Essa forma de remuneração, por produção, é extremamente nociva, nefasta e perversa. Destrói o corpo do trabalhador, se não ali naquele momento, como forma de acidente de trabalho, ao longo do tempo. Sou de opinião de que a forma de remuneração tem que ser mudada”.

Ela chama a atenção para a intensificação do trabalho em todos os setores,  jornadas maiores, falta de vínculo empregatício são apenas alguns dos problemas. Situações que trazem grande instabilidade e insegurança. O resultado é uma deterioração na saúde, não só de ordem física, mas também psicológica e que afeta, segundo ela, a “alma” do trabalhador. A professora faz parte do Conselho do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador do município de Ribeirão Preto.

O que leva uma pessoa como ela a dedicar-se anos a fio a uma mesma causa? Um dos motivos é o “mundo” que a rodeou desde a infância. Nascida em Uraí, cidadezinha do norte do Paraná, logo cedo teve contato com o ambiente rural. “Gostava de ir às festas juninas, de reis, às quermesses e festas de casamentos na área rural de Uraí”, lembra saudosa. Vera diz que do portão de sua casa observava o movimento na Santa Casa, onde chegavam trabalhadores rurais acidentados na cultura do rami. O rami é uma planta da qual podem ser manufaturados fios em geral, finos e grossos, que são aproveitados na tecelagem. “A máquina usada para a extração da fibra do rami, denominada “periquito”, muito se assemelha àquela utilizada para se extrair a fibra do sisal. Essa máquina é muito rudimentar e desguarnecida de mecanismos mínimos de segurança, levando os seus operadores a um número elevado de acidentes de trabalho, que muitas vezes implicava na amputação de mãos, dedos, e até braços inteiros”, relata ainda com o sentimento vivo de indignação.

Influenciada pelo fato do pai, um barbeiro, ter sido dono da única banca de revistas da cidade, em frente a uma sorveteria, ela e uma prima sonharam o mesmo sonho: ter uma banca de revistas e uma sorveteria. Aos poucos, foram descobrindo um mundo novo: o das palavras. Vera despertou o gosto pela área de humanidades. Em 1979 entrou no Curso de Ciências Sociais, na Universidade Estadual de Londrina, no Paraná. A área de Sociologia Rural despertou seu interesse imediatamente. Com a monografia de final de curso começaram as pesquisas.  “Logo me veio à mente pesquisar os trabalhadores rurais de Uraí e seus principais problemas, como a saúde, a integridade física, a ameaça à capacidade para o trabalho.”

A paixão pelo assunto a levou a um mestrado na Unesp de Araraquara, e mais uma vez o objeto de estudo foram os trabalhadores do rami. Foi quando começou a dar aulas de sociologia em universidades particulares de Ribeirão Preto. “Na USP o primeiro contato foi com o Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina. Nele conheci o Núcleo de Estudo e Pesquisa em Saúde e Trabalho, coordenado pela professora Neiry Alessi”, conta.  Nessa mesma época casou-se e fincou raízes definitivas em Ribeirão Preto , com o nascimento dos filhos Júlia e Lucas. Já estabelecida na cidade iniciou o doutorado. A idéia para a pesquisa foi trabalhar com a saúde dos trabalhadores da indústria de calçados em Franca. “Quando cheguei em Franca, era um momento de crise e tive que ampliar o meu objeto de pesquisa, pois a situação daqueles trabalhadores era mais complicada do que eu imaginava.”


"O pagamento por produção se vê em vários lugares,  e não se resume a trabalhador do corte da cana ou de chão de fábrica, está inclusive no nosso dia-a-dia. O que se tem é a quantidade do que se faz e a essa nem sempre está aliada a qualidade."

A conclusão foi uma história da indústria de calçado de Franca, que também resultou no livro Trabalho e Trabalhadores do Calçado , lançado no dia 25 de abril, durante evento na USP em Ribeirão Preto que discutiu o Retrato do Trabalho no Brasil. A experiência do trabalho rural e de entender a indústria do mundo do trabalho industrial permitiu-lhe uma visão mais completa. “Para estabelecer essa relação, entre trabalho e saúde, a multidisciplinaridade é fundamental”, diz.

Na pós-graduação, é professora do Departamento de Medicina Social da FMRP. Questionada sobre como é ensinar alunos jovens, sem nenhuma experiência no mundo do trabalho, responde com o entusiasmo dos que acreditam no que fazem: “É um desafio para mim e para eles”. Mas a satisfação é evidente quando fala das aulas na pós-graduação. “Você tem maior retorno, porque as pessoas estão mais maduras, entendem mais, sabem da importância daquilo para a profissão. Elas também se reconhecem nas suas próprias condições de trabalho. É admirável o trabalho do pessoal da saúde, ficar dentro de um hospital o dia inteiro é muito pesado. Além de todos os problemas que enfrentam, esse pessoal está convivendo o tempo todo com a dor e o sofrimento dos outros e o seu próprio. Então tinham que ser tratados de maneira especial, inclusive com jornada de trabalho menor”, finaliza.

Serviço
Livro: “Trabalho e Trabalhadores do Calçado”
Autora: Vera Lucia Navarro
Editora: Expressão Popular
304 páginas
R$ 13,00

a venda no site: www.expressaopopular.com .br