Leite de camelo, povos do deserto, aviões iraquianos... O interesse pela língua árabe levou Mamede Mustafa Jarouche a conhecer realidades que para a maioria dos brasileiros se descortinam como um mundo cheio de mistério e aventura. Paulista de origem árabe, o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) entrou na USP em 1984, como aluno do Curso de Língua e Literatura Árabe. Mas, antes disso, já havia começado suas incursões no Oriente.

foto: frascisco emolo
“Não gostei nem um pouco da Arábia Saudita, é um lugar horrível”, confessa Mamede

“Recebi uma bolsa do governo da Arábia Saudita e fui estudar lá, fiquei um ano aprendendo a língua. Não gostei nem um pouco do país, é horrível”, recorda Mamede da viagem feita em 1982, época em que não tinha muita ligação com a cultura árabe e incorporou o espírito aventureiro. Apesar de considerar muito desagradável a atmosfera excessivamente religiosa e a falta de liberdade, ele pôde descobrir um universo diferente. “Há uma dissonância entre o lugar e as perspectivas de sua cultura milenar e muito rica.”

Quando voltou ao Brasil, no final do mesmo ano, estava disposto a continuar estudando árabe. Assim, em 1984, Mamede ingressou no Curso de Língua e Literatura Árabe da FFLCH, onde também estudou Língua e Literatura Portuguesa. No entanto, interrompeu a graduação por um ano. No dia 12 de fevereiro de 1985, dia de seu aniversário, ele desembarcava no Iraque como tradutor para uma construtora brasileira, a Mendes Júnior.

“No Iraque aprendi de fato a língua, tive que me virar. Com o tempo peguei traquejo e comecei a ser intérprete”, conta o professor. “Curioso era não haver iraquianos na empresa, estavam todos na frente de batalha, só havia egípcios, libaneses, tunisianos.” Na época o Iraque estava em guerra com o Irã e a intensa restrição de movimento era uma das principais dificuldades. “Foi uma experiência enriquecedora ficar um ano trabalhando no fogo cruzado.”

foto: frascisco emolo
“Uma vez, acompanhei a polícia até um acampamento de beduínos no meio do deserto.”

Apesar de o acampamento da empresa ficar distante da frente de batalha, às vezes podiam-se ver os aviões iraquianos. “Uma vez, o alto de um prédio estourou. Na verdade, tinha sido um míssil iraniano que o havia atingido, mas no Iraque diziam que tinha sido boicote interno de um espião”, revela Mamede. “Era muito menos amedrontador ter um traidor do que saber que os iranianos já haviam desenvolvido um míssil que chegava até Bagdá.”

Mamede esteve bem mais perto das tensões do lugar, quando acompanhou a polícia até um acampamento de beduínos no meio do deserto. Eles estavam quebrando as tubulações e roubando a água que ia até os acampamentos, o que atrapalhava o funcionamento das máquinas da empresa. “Era uma questão de segurança nacional, porque os projetos eram importantes para o Iraque: uma ferrovia, uma rodovia e um sifão público”, conta Mamede.

“Eu fui com a polícia atrás deles porque um diretor da empresa queria ir e precisava de tradutor”, explica. Apesar de o episódio não ter tido conseqüências que possam inspirar Indiana Jones, o professor guarda um arrependimento. “Os beduínos nos serviram um vidro grande com leite de camelo. Quando chegou a minha vez, fingi que tomei, fiquei com nojo, estava meio sujinho. Hoje, me arrependo, não sei como é o gosto de leite de camelo.”

foto: frascisco emolo
“Arrependo-me de não saber o gosto de leite de camelo.”

Depois de um ano, Mamede estava de volta ao Brasil e para o curso de Árabe na USP. Antes mesmo de terminar a graduação, em 1988, “comecei a dar aula de português em escola estadual, depois em escola particular”. Mas em dois anos o trabalho como tradutor e intérprete o levou novamente ao Oriente, desta vez para a Líbia. “Trabalhei quatro meses para a Braspetro, que tinha obras de prospecção de água no meio do deserto.”

Na USP, Mamede deu início à pós-graduação em literatura brasileira e, um ano depois, em 1992, prestou um concurso e começou a dar aula no curso de Árabe da FFLCH. Em 2000, fez pós-doutorado no Cairo, onde morou por um ano. Os estudos do professor se voltam atualmente para as traduções. “A língua portuguesa no que se refere à tradução do árabe é uma das mais pobres do mundo”, lamenta o professor.

foto: frascisco emolo
“O principal projeto da minha vida é terminar a tradução do Livro das Mil e uma Noites .”

No dia 30 de abril de 2005, foi lançado o primeiro volume do clássico Livro das Mil e uma Noites, traduzido por Mamede do árabe para o português. O segundo volume dos seis que completarão a obra também já foi publicado. Esta é a primeira oportunidade dos leitores brasileiros terem uma visão mais acurada da obra, que até então havia sido traduzida para o português a partir do francês, do inglês e do alemão.

Uma das grandes dificuldades em seu trabalho é a tradução de coloquialismos. “Temos variantes regionais do português e precisamos decidir qual delas usar”, explica Mamede. A riqueza dos livros destaca-se ainda pelos nomes escritos no alfabeto fonético internacional, permitindo ao leitor conhecer sua pronúncia correta. “Agora, o principal projeto da minha vida é terminar a tradução do Livro das Mil e uma Noites”, revela o professor.