A Faculdade
de Medicina da USP tem dois bons motivos para comemoração:
este ano completa 90 anos e, em junho, inaugura um biotério
com padrão internacional que fornecerá para todas as
unidades da Universidade animais de pesquisa, absolutamente sadios.
O diretor da faculdade, professor Irineu Tadeu Velasco, acredita que
a tecnologia de combate à contaminação, na qual
o novo biotério terá papel fundamental, deverá
migrar, com o tempo, para os hospitais.
O biotério deve muito à bióloga Silvia Barreto
Ortiz, diretora do Centro de Bioterismo, responsável por sua
concepção e pelo treinamento dos profissionais que irão
administrá-lo. No Centro de Bioterismo se faz toda a
pesquisa básica da Faculdade de Medicina, revela o diretor.
A bióloga acompanhou, ao lado de representantes da Fundação
Faculdade de Medicina da USP, reuniões com presidentes de entidades
norte-americanas que credenciam biotérios, como ICLAS (International
Council for Laboratory Animal Science) e AAALAC (Association for Assessment
and Accreditation of Laboratory Animal Care). Os controles do
centro estão sendo feitos há três anos e há
90% de chances de o credenciamento efetivar-se, diz ela.
Técnicos e funcionários não serão ali
admitidos sem passar por curso específico. O primeiro, de reciclagem,
foi montado em 1989, na Unicamp, onde Silvia Ortiz pesquisou a doença
de Chagas. O curso de Ciência e Tecnologia de Animais de Laboratório,
pioneiro também na USP, tem duração de dois anos,
com especialização. Não existiam cursos
de especialização em bioterismo no Brasil, diz.
Ainda assim, há muito a ser feito. De zero a dez, ela daria,
até aqui, nota 8 para o trabalho. Com mestrado na Unicamp e
especialização no Instituto Pasteur, de Paris, em Genética
de Animais de Laboratório, Silvia Ortiz está concluindo
doutorado na FMUSP.
O objetivo é criar ali camundongos com especificação
SPF (Specific Pathogen Free) livres de contaminação
que aumentem a credibilidade da pesquisa. E, ainda, fornecer
esse material à Universidade, através do projeto Biotusp
rede integrada dos biotérios da USP. Segundo Velasco,
a produção será suficiente para suprir toda a
Universidade, pois excederá, em muito, a capacidade de absorção
da Medicina.
O centro permitirá planejamento e criação de
animais para pesquisa de forma racional. Pela primeira vez,
eles serão produzidos na Universidade e já há
ensaios técnicos de como mantê-los.
A reprodução de matrizes adquiridas de instituições
estrangeiras faz parte das metas, possibilitando a criação
de sublinhagem FMUSP. Já a produção de animais,
a partir de embriões geneticamente modificados, teve sua primeira
experiência em parceria entre a Faculdade de Medicina, Instituto
de Biociências e Faculdade de Medicina Veterinária e
Zootecnia.
Considerada um avanço, o professor Velasco avalia
que precisamos levar em conta as faculdades que, além
de líderes no ensino, o são na capacidade de produzir
conhecimento.
O Centro de Bioterismo custou R$ 11,5 milhões e deverá
compor os festejos dos 90 anos da faculdade, este ano. Os gastos acabam
sendo diluídos no aprimoramento da pesquisa de boa qualidade
para Aids, diabete, câncer, hipertensão, doenças
renais e cardíacas, etc. Bem estudadas, permitem fácil
e rápida detecção para orientar o tratamento.
Será possível encontrar vacinas, alternativas à
quimioterapia e grande gama de produção de conhecimento,
até agora dificultadas pela falta de animais descontaminados
e locais adequados para mantê-los. Em 1998, quando assumiu o
cargo, a decisão do diretor foi iniciar um trabalho para, em
quatro anos, reverter esse quadro. Ele deixa o cargo em novembro deste
ano.
Estamos dando salto qualitativo incomensurável,
considera o diretor. Dentro da USP, em termos de produção
de conhecimento em nível internacional, a FM já é
a segunda ou terceira unidade, na qual o centro vai fazer a diferença.
A Fapesp deverá contribuir com equipamentos, enquanto a USP
oferecerá recursos humanos para a execução da
proposta.
Nos projetos financiados pela Fapesp está embutida a compra
de animais pelo pesquisador. Quer dizer que ele poderá ressarcir
o biotério do animal retirado. Os não usados por
unidades da USP podem ser vendidos para a indústria farmacêutica,
que atualmente tem de importá-los para pesquisa. Assim, podemos
tornar o biotério auto-sustentável, informa o
diretor.
Verbas necessárias à adaptação do novo
conceito de produção de animais também foram
obtidas de parcerias entre a Fapesp e a USP, obedecendo a organograma.
Por
ano, 120 mil animais
A capacidade
de produção foi quadruplicada de 30 mil para
120 mil animais por ano com espécies melhoradas condizentes
com padrões sanitários e genéticos internacionais.
Matrizes mapeadas geneticamente são mantidas em colônias
de fundação, para dali serem usadas na reprodução.
Os casais de determinado grupo passam por cruzamentos aleatórios.
O sistema de acasalamento permite dizer, depois de algum tempo,
que animais com aquelas características são capazes
de responder a determinado medicamento ou doença, e de que
maneira. As matrizes serão compradas de instituição
francesa credenciada.
Daqui a algum tempo, teremos uma sublinhagem FMUSP. A reprodução
é muito rápida: um parto a cada 21 dias; depois disso,
os animais são sacrificados ou enviados para pesquisa.
Em outro grupo, em que 98,2% dos genes são idênticos,
uma dupla acasala-se e, depois, com seus filhos, irmãos e
pais, formam linhagem após 20 gerações. Esses
têm coeficiente de isogenia, que dá a certeza de que
o animal vai responder do mesmo modo à mesma dosagem de medicamento.
Identificada cientificamente com o desenvolvimento de verdade
estatística, esta situação acaba reduzindo
o número de animais utilizados, além de diminuir a
quantidade necessária de dinheiro empregado em drogas.
Velasco acredita que ali se formará um centro de treinamento
de pessoal para outras unidades; um centro de pesquisa para biotério
com tecnologia que pode ser aplicada a centros cirúrgicos.
O início está na reeducação do
pessoal que trabalha em laboratório, afirma Silvia
Ortiz, para quem a orientação sobre acalmar-se é
fundamental, para não passar intranqüilidade ao animal,
no qual ninguém coloca as mãos; este é sempre
manipulado com pinças e luvas.
Quando a Companhia do Metropolitano construiu um laboratório
no lugar do que havia sido destruído para tocar as obras
da Estação Clínicas, perdeu-se quase uma colônia
inteira de hamsters. A fêmea morde o fígado dos
filhotes quando entende que a cria está em perigo, matando-a,
segundo a diretora do centro.
Isso foi durante o primeiro momento da construção,
que demorou oito anos para ser concluída. O biotério
antigo está sendo reformado e será utilizado para
experimentação. Permanecerá até o último
pesquisador encerrar sua pesquisa.
Durante a reforma, a pesquisa ficou prejudicada, pois toda a matéria
básica transferiu-se para o Instituto de Ciências Biomédicas,
na Cidade Universitária.
É muito difícil ensinar medicina aos que não
estão afeitos à metodologia científica; não
só para fazer pesquisa como para analisar a matéria
passada aos alunos, a dificuldade está em manter a parte
básica no campus e a clínica e didática na
faculdade, analisa o professor Velasco.
A situação não voltará ao original,
pois isso está consolidado. Portanto, foram criados
laboratórios de investigação médica,
na faculdade. Trazer a matéria básica é trazer
a metodologia de pesquisa, permitindo retomar o relacionamento da
pesquisa com a clínica.
Se o professor de endocrinologia tem questionamento sobre
diabete, aqui no nosso laboratório poderá ter modelos
experimentais da doença para investigá-la. Pode
até não ter a fisiologia de diabete que é dada
no ICB, mas a metodologia de pesquisa do diabete em animais poderá
ser feita aqui. Isso ajuda no crescimento da pesquisa, tanto
clínica quanto básica.
Há 20 anos, tudo era muito diferente. Trabalhavam em laboratórios
com animais os que haviam se saído mal em outros laboratórios.
Era uma espécie de castigo que provocava perdas à
pesquisa, lembra a diretora do centro. Sem a segurança
necessária, muitas vezes os pesquisadores brasileiros eram
barrados por publicações internacionais.
Atualmente, exigências no controle de qualidade em todos os
campos acabaram levando ao aprimoramento. Nada se publica,
hoje, se a especificação SPF não se verificar.
Velasco lembra que existe muita dificuldade em colocar trabalhos
científicos no exterior sem especificar a origem do animal
de experimentação; cada vez mais o controle de qualidade
é exigido.
Grupo formado pela Faculdade Paulista de Medicina, Unicamp e USP,
através de projeto financiado pela Fapesp, iniciou a melhoria
desse processo.
Treze
duchas
Lidar
com ratos exige, porém, certa dose de cuidados. Tive
problemas para convencer alguns técnicos de que teriam de
tomar banho para trabalhar com ratos, explica.
A primeira exigência, quando se entra no laboratório,
é tirar o sapato. No vestiário, técnicos que
trabalham na área devem tirar toda a roupa com que vieram
da rua, inclusive a roupa íntima, e banhar-se com 13 duchas
sensíveis. Depois disso, vestem o uniforme para poder circular
por corredores onde a infra-estrutura está instalada. Ali
encontram-se o refeitório, estoque de maravalha (material
destinado a fazer a cama dos ratinhos), estoque de ração,
equipamentos e lavanderia.
O biotério é todo fechado. O técnico anda por
ali e, quando sai, novamente deverá tirar toda a roupa utilizada,
tomar novo banho da cabeça aos pés, entregar a roupa
à lavanderia e vestir outra. Composta de macacão com
máscara, deixando apenas os olhos para fora, exige de quem
usa óculos limpá-los com solução germicida.
Botas e luvas complementam o traje.
As roupas passam por autoclaves, equipamentos que mantêm o
material por 30 minutos a 121ºC de vapor e pressão,
capazes de tirar toda impureza esporos, bactérias
patogênicas e vírus.
Materiais que não podem ser aquecidos, botas e vassouras,
são mergulhados em tanques com solução de hipoclorito
durante período controlado. Papéis e canetas, que
não podem ser molhados, passam por esterilização
ultravioleta. Ralos no chão, captados por rede de esgotos,
com caixa fora do prédio, recebem manutenção
de profissionais especializados. O biotério chega a
ser mais limpo do que a UTI de muitos hospitais, resume a
professora.
O fluxo é unidirecional. Todas as portas têm fechamento
pneumático, não reabrem, e contam com diferença
de pressão: Se um dia alguma sala apresentar contaminação,
esta não será disseminada para o restante do ambiente,
pois o aparelho de ar-condicionado é estanque para cada uma.
O técnico entra por uma porta, trabalha e sai por outra.
Se esquecer de algo ou sair para almoçar e retornar, deverá
refazer todo o procedimento inicial, passando pela área de
esterilização, tomar banho, trocar a roupa, etc. Isso
vai diminuir o volume de erros.
Dois veterinários vão gerir o processo. Azulejos não
são recomendáveis em razão das emendas nas
quais a contaminação se acumula. Tinta especial, com
durabilidade estimada em dez anos, deverá ocupar seu lugar.
Especialista inglês virá aplicá-la,
diz a diretora do Centro de Bioterismo. Há pisos sem emendas,
mas com resistência química. Lâmpadas são
trocadas por cima, em instalação no forro, dentro
do piso técnico, a partir de onde todos os controles
são feitos.
A idéia é que se tenha apenas homens trabalhando,
pois o trabalho é pesado e repetitivo. Mulheres menstruadas
não podem entrar, pois usam absorventes e estão eliminando
fluido que pode contaminar o ambiente, reforça a professora.
Há ainda os períodos de tensão pré-menstrual,
durante os quais as pesquisadoras poderão passar irritação
aos animais, comprometendo o trabalho.
Ratos de laboratório são muito bem tratados e assim
deve ser, pois enfrentam um modo de sobrevivência que não
está na natureza: não caçam para comer e precisam
organizar-se para dormir e depositar os dejetos.
É oferecida a sofisticação de reproduzir a
natureza, em ciclos de 12 horas no claro e igual período
no escuro, com gradações. O objetivo é respeitar
o metabolismo, para evitar comprometimento na reprodução.
Temperatura mantida em torno dos 22ºC e umidade de 55% adaptam
os animais às condições brasileiras. O ar-condicionado,
planejado a partir de centros de pesquisa existentes na Espanha,
França e Estados Unidos, oferece o conforto necessário.
Ralos de aço inoxidável impedem o refluxo de água
e a visita de ratos ou baratas selvagens que possam
contaminar os SPF.
A ração consumida precisa ser balanceada, de boa qualidade,
com fibras e tudo o mais de que o corpo necessita para manter boa
saúde. O ambiente tem diferença de pressão
controlada pelo sistema de ar-condicionado. O ar captado de fora
passa por uma série de filtros-bolsas para reter desde folha,
passarinho, mosca até partículas muito pequenas. Quando
chega à área limpa, encontra filtro capaz de reter
cinco micra. O ar é captado, filtrado, umidificado e refrigerado
para chegar a temperatura e umidade controladas.
Dentro dessa area há de 18 a 20 trocas totais de ar por hora,
garantindo a ausência de amônia produzida pela urina
dos animais.
Os animais poderão ser vendidos. Os SPF saem em caixa com
filtro que garante a não contaminação. No andar
térreo, o biotério mantém canil de experimentação
com sala de cirurgia e exames, projeto que deverá ser ampliado.
Nove baias recebem os cães que vivem no centro de zoonoses
e vão para pesquisa. Os animais de melhor porte, menos doentes
ou já tratados vão para o canil de pesquisa. Algumas
baias deverão ser transformadas em UTI para cães.
Noventa
anos de Medicina
A Faculdade de Medicina da USP faz 90 anos. Criada por decreto,
só foi posta em funcionamento em 1912. Suas atividades tiveram
início no bairro do Bom Retiro, de onde se transferiu para
a rua Brigadeiro Tobias, no centro, lecionando as matérias
básicas como fisiologia, farmacologia, anatomia, parasitologia
e microbiologia. Em
1914, a parte clínica começa a funcionar na Santa
Casa de Misericórdia de São Paulo.
A Fundação Rockfeller, em 1931, construiu o prédio
da avenida Dr. Arnaldo, que receberia a matéria básica.
Em contrapartida, a fundaçao exigiu do governo brasileiro
a construção do Hospital das Clínicas. Por
isso, o HC é conhecido como Hospital das Clínicas
da FMUSP, inaugurado em 1944.
As faculdades de Medicina, Direito e Filosofia deram início
à USP e, para que o hospital não fugisse da orientação
da FMUSP, o diretor da unidade é o presidente do Conselho
do hospital. Cinco professores titulares, eleitos pelos pares, formam
o Conselho Deliberativo do HC. Dali sai um diretor clínico
e, de uma lista tríplice, escolhe-se o superintendente. O
professor daqui é responsável por serviços
de lá: eu sou professor de Clínica Médica,
na área de Pronto-Socorro e UTI; então, sou o chefe
do Pronto-Socorro e das UTIs do HC, disse o professor Velasco.
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