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A afetividade e socialização entre os jovens é muito mais fácil quando o trabalho une o lúdico ao aprendizado



 

Trabalho em equipe na FZEA:solidários e curiosos

 

Adolescentes aprendem praticando com animais: estímulos importantes


Jovens aprendem com professor como lidar com o gado: aula de matemática na fazenda

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ma vez por semana, durante todo o período da manhã, 20 adolescentes, entre 14 e 16 anos de idade, chegam felizes e ansiosos para trabalhar e brincar com animais. Eles amamentam cabritos, dão banho em bezerros, limpam aquário, alimentam coelhos, pesam porcos e aos poucos vão aprendendo conceitos de matemática, português e biologia. Para algumas crianças aprender esses conceitos é muito fácil, mas para outras a dificuldade é imensa.
É o caso das crianças da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Pirassununga — Apae, que precisam mais que simples explicações, mas também de estímulo e compreensão. Foi pensando nisso que o Departamento de Zootecnia da Faculdade de Zoologia e Engenharia de Alimentos (FZEA), através da disciplina de Extensão Rural, passou a desenvolver atividades com as crianças da Apae, utilizando os animais do campus como geradores de atividades lúdicas.
A idéia faz parte do projeto A Prática com Animais como Estímulo ao Aperfeiçoamento do Ensino Fundamental de Adolescentes com Necessidades Especiais, que conta com o apoio da Fapesp e integra a área de políticas públicas da entidade.
Marcelo Ribeiro, coordenador do projeto e professor da FZEA, ressalta que a proposta de usar os animais surgiu da dificuldade que essas crianças têm de aprender e assimilar conteúdos de algumas disciplinas importantes para a convivência diária como português, matemática e as ciências.
A freqüência das visitas obedece a um esquema de rodízio entre os setores de criação animal, estabelecido em ciclos de três repetições (uma a cada semana) seqüenciadas em cada setor. Ao fim de cada ciclo, os monitores realizam uma participação em sala de aula, utilizando material fotográfico, para reforço da prática realizada.

Ler, escrever e memorizar

Uma vez determinado o animal a ser trabalhado e após uma visita prévia, a professora dos alunos, durante as atividades rotineiras desenvolvidas na sala de aula da Apae, promove a memorização dos conceitos trabalhados nas aulas práticas com os animais.
O trabalho consiste em levar as crianças aos locais de criação de animais da faculdade e a partir dali criar atividades de leitura, escrita e memorização. “Por exemplo,” conta Ribeiro, “as crianças precisam anotar em fichas quantos e quais animais foram alimentados, banhados, vacinados. Na cunicultura — setor de criação de coelhos — elas precisam dizer quantos animais há nas gaiolas. Caso tenham nascido mais filhotes, precisam dizer quantos havia antes e depois. Informalmente, vamos trabalhando os conceitos de matemática, português e ciências, de maneira prática e lúdica”.
Essa metodologia é muito diferente da utilizada pela escola formal, em sala de aula com lousa e as crianças sentadas, apenas recebendo a informação, estimulando muito pouco o raciocínio. “Para as crianças da Apae o estímulo é fundamental, facilita o aprendizado”, afirma Ribeiro.
Há dois anos essa proposta já vem sendo colocada em prática nos espaços da FZEA. A novidade é que, em razão dos resultados positivos, alguns alunos começaram a ter condições de se profissionalizar. Ribeiro conta que a partir dessa demanda estão montando uma estrutura semi-profissionalizante, para depois encaminhá-los. “Queremos aprimorar o ensino fundamental, oferecendo possibilidade de treinamento para que possamos dar um certificado de ordenhador, por exemplo. Com isso ele passa a ser capacitado a prestar serviços remunerados.”
O objetivo principal do projeto é criar uma metodologia para ser oferecida a outras escolas que trabalham com crianças especiais. Também quer aumentar a integração entre a FZEA e a comunidade de Pirassununga. E mostrar que é possível melhorar a afetividade e o aprendizado a partir da prática com animais. Tudo isso gerando um processo de socialização entre as crianças especiais e a sociedade.
Além disso, quer avaliar a capacidade dos alunos de resolver situações-problema criadas a partir do estímulo com animais de interesse zootécnico, que tenham relação com conhecimentos adquiridos em sala de aula.

Atendimento particular

A partir da aprovação do projeto pela Fapesp, a proposta tornou-se uma pesquisa, que agora conta com apoio financeiro com duração de dois anos. São seis voluntários, alunos de graduação da FZEA, um de iniciação científica e dois de bolsa-trabalho, que desempenham a função de monitoria, cada um com duas crianças. “Eles dão atendimento particularizado até para acompanhá-las na criação dos animais, para que não corram nenhum risco e possam desenvolver bem as atividades. Esses monitores são responsáveis pelas anotações das ações de cada aluno da Apae e devem entregar relatórios semanais, que vão constituir o material da pesquisa”, explica Ribeiro.
O projeto envolve nove professores da FZEA que dividem a responsabilidade de acompanhar os adolescentes nos diferentes setores de criação do campus.
A verba também está possibilitando pagar uma psicóloga. “Isso faz com que o projeto ganhe um aspecto mais profissional”, observa o coordenador. “No início, íamos muito pela sensibilidade, pelo que era mais interessante. Não tinha um cunho de pesquisa.”
Todo dia com atividades com animais na FZEA é uma festa para as crianças. Na caprinocultura, as crianças amamentam filhotes de cabra, põem ração nos cochos, tiram e devolvem os animais para as baias. Por serem muito dóceis, os cabritos favorecem as atividades de cunho emocional. Como essas crianças têm dificuldades de relacionamento, acariciar os filhotes ajuda a desenvolver o lado emocional, fazendo com que fiquem menos agressivas e interajam mais com o próximo.
Já na piscicultura, está sendo possível desenvolver conceitos de biologia. Através do vidro do aquário se vê o ritual da vida aquática acontecendo no mesmo espaço. Há o macho, a fêmea, o filhote, a água, a comida, enfim, todo o hábitat do peixe em constante transformação. A criança tem de montar um aquário. Põe areia no fundo, a água, as plantas, pedras, os tubos para a oxigenação. “Mesmo que os conceitos não estejam muito claros, elas começam a aprender algumas práticas que nos levam a ensinar os movimentos da vida, reprodução, etc. Também conseguimos explicar um pouco de física, no caso de colocar e tirar água com sifão”, exemplifica Ribeiro.

Metodologia própria

Como a proposta teve ótima aceitação por parte dos pais, foi preciso aumentar o número de vagas de 15 para 20 alunos. Também será feito um rodízio, para que as 200 crianças da Apae possam participar.
Com o desenvolver do projeto ao longo desses anos, pôde-se observar que não dava para levar as crianças diretamente aos animais, pois elas chegavam extremamente excitadas. Com o tempo, foi se criando uma metodologia própria. Logo que elas chegam ao campus de Pirassununga, são recebidas em uma sala de aula, fazem sensibilização a partir de desenhos e fotos. “Como estão muito ansiosas, vão logo abraçando, beijando e muitas vezes acabam sufocando o animal, que chega a ficar agressivo e arredio”, explica Ribeiro. Depois da sensibilização, feita principalmente através da foto delas mesmas com os animais, as crianças passam a se autoperceber — já que têm grande dificuldade de percepção de si mesmas, inclusive não gostam de se olhar no espelho, porque têm baixa auto-imagem — e a ansiedade vai cedendo lugar à curiosidade.
Ribeiro conta que, como as crianças tendem a esquecer muito rápido, a foto resgata o que foi feito anteriormente. “O que se ensina numa semana, na outra elas já esqueceram; então, com as fotos estimulamos a memorizar e relembrar as atividades desenvolvidas.”
Com o projeto de pesquisa, Marcelo Ribeiro pretende sistematizar o uso da imagem, o tipo do animal, o tempo e o tipo da atividade. “Queremos estabelecer um método de ensino que possa ser oferecido a outras escolas.”
O interessante do projeto é perceber como o desenvolvimento e a percepção da criança vão evoluindo. O ensino de português, por exemplo, acontece a partir do preenchimento da ficha com o tipo de animal trabalhado, seu respectivo número e a atividade aplicada. Alguns alunos com mais dificuldade para escrever recebem ajuda da monitoria, outros já conseguem utilizar recursos da memória para escrever. “Com isso estamos sistematizando o método de estímulo que se deve trabalhar. Tudo o que temos conseguido descobrir é na observação prática. É um trabalho empírico de teste”, observa Ribeiro.
Embora todas as crianças trabalhem com todos os tipos de animais e façam as mesmas atividades, os resultados não são homogêneos. Algumas alimentam o corredor inteiro de coelhos, outras esquecem alguns e precisam voltar para refazer o trabalho. Sem contar que alguns adolescentes têm dificuldades variadas como deficiências motoras, síndrome de Down, deficiência mental e dois casos de paralisia cerebral.
Os conceitos de matemática funcionam muito bem, conta Ribeiro. “Fazemos com que peguem os animais e saibam a diferença entre maior e menor, quantos há dentro e fora da gaiola. Alguns animais não podem ser apertados, então a criança passa a trabalhar a coordenação motora fina, precisa ser delicada para proteger o bicho.”
Um dos pontos positivos do projeto é que, no primeiro encontro, as crianças se sentem dispersas, depois se reconhecem como grupo e passam a ajudar umas às outras. “Ficam preocupadas com quem ainda não chegou, ajudam a terminar a atividade atrasada do outro, e assim por diante. Passam a se identificar como grupo”, ressalta o coordenador.
O coordenador também conta que a atividade de suinocultura funciona muito bem, pois cada porca tem muitos filhotes e as crianças têm de separá-los para contar. Alguns gostam de marcar as orelhas dos porquinhos com os seus respectivos números e símbolos. É atividade prática que ajuda na coordenação motora. “Eles não ficam um minuto parados. Procuramos não interferir muito na relação entre a criança e o animal para que criem um vínculo. Além do raciocínio, é estimulado o exercício físico. O projeto procura contemplar todas as atividades para que a criança saia mais segura para enfrentar o dia-a-dia na escola, na família e na comunidade”, observa Ribeiro.

 




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