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Foi um caso de amor que começou no flerte
mas terminou em tragédia, tragédia retumbante ao som
do tango. Olhando para trás é possível perceber
que a moeda argentina, de certa maneira, sempre aspirou ser dólar.
Em 1822, para fugir dos falsificadores, a Argentina encomendou aos
americanos a impressão de pesos. A moeda chegou em casa com
a efígie de George Washington no verso eis o início
do romance. Passados 179 anos, um peso já valia um dólar,
estava escrito na Constituição, mas essa falsa igualdade
acabaria por mergulhar o país em uma noite sem-fim. A crise
que já se arrastava há quatro anos explode em 19 de
dezembro de 2001. A multidão desafia o Estado de Sítio
e na Praça de Mayo, cenário dos principais protestos
populares, pede a renúncia do presidente Fernando De la Rúa
e do ministro da economia Domingo Cavallo. Os saques se multiplicam,
o caos toma Buenos Aires. Executivos, estudantes, crianças
e aposentados são reprimidos pela polícia com gás
lacrimogêneo e balas de borracha. O saldo é de mortos,
presos e feridos. Caem Cavallo e De la Rúa. Sucedem-se novos
presidentes. Eduardo Duhalde, que tem conseguido se equilibar no poder
desde 1º de janeiro, acaba com a paridade peso-dólar.
Para lançar luz ao quadro que se desenha cada vez mais sombrio,
a Revista Estudos Avancados traz em seu novo número um dossiê
sobre a Argentina. Reunindo dois economistas brasileiros Ricardo
Seitenfus e Paulo Nogueira Batista Jr e dois argentinos
Carlos Altamirano e Aldo Ferrer essa edição tenta
estudar as causas e as possibilidades de reconstrução
depois do colapso. Segundo Alfredo Bosi, editor da Estudos Avancados,
a presença de estudiosos argentinos e brasileiros exprime
nosso projeto de colaboração solidária entre
povos irmãos nesta conjuntura precária que vivem os
membros do Mercosul.
No lançamento desse seu número 44, que acontece no próximo
dia 14, haverá também debate com seus articulistas,
entre eles, o ex-ministro da economia e professor titular da Universidade
de Buenos Aires, Aldo Ferrer. Um dos mais agudos críticos da
situação de seu país, Ferrer tem defendido uma
saída sem o Fundo Monetário Internacional (FMI), que
condiciona sua ajuda a um ajuste de 60% do déficit fiscal.
A aplicação das exigências do FMI só
aprofundaria o problema. Mais ajuste fiscal e corte de gastos provocariam
mais recessão, desemprego e queda da receita tributária
disse o professsor em entrevista ao Jornal da USP. Predomina
ainda a idéia de que a Argentina não é capaz
de seguir seu próprio destino e permanece a súplica
pela ajuda internacional.
Em seu artigo, Ferrer faz uma revisão do comportamento da Argentina
diante da globalização como forma de explicar as profundas
e crescentes dificuldades de seu país. Dentro dessa perspectiva,
a situação argentina seria resultado das péssimas
respostas perante as oportunidades e condições impostas
pela nova ordem.
Desde a segunda metade do século 20 se dá um grande
crescimento dos fluxos internacionais de capitais. Esse aumento, entretanto,
não significou um incremento da acumulação do
capital produtivo na economia mundial. As corporações
multinacionais, que hoje são mais de 60 mil, têm uma
participação no produto mundial que não ultrapassa
8%. O que se conclui é que a poupança interna dos países
financia mais de 90% da formação real de capital. Observando
a proporção da produção mundial internacionalizada,
percebe-se que as exportações representam cerca de 20%
do produto mundial, enquanto a demanda interna dos países absorve
algo em torno de 80% da oferta. Nesse contexto, prescindir de uma
poupança doméstica e menosprezar o peso do mercado interno
para o desenvolvimento é quase suicídio. Os recursos,
segundo Ferrer, precisariam de eixos de organização
que respondendo às demandas de uma economia aberta não
se esquecessem do significado da dinâmica dos processos internos
de acumulação. No cenário atual, a qualidade
das respostas à globalização depende da capacidade
pública e privada de mobilizar o potencial interno disponível
para associá-lo de maneira eqüitativa, simétrica,
não-subordinada à ordem global. Uma visão
fundamentalista da globalização, que impera no
país desde o início da década de 90, teria barrado
a construção de um projeto próprio de desenvolvimento.
Nessa visão, afirma Ferrer, a Argentina é vista
como se fosse apenas uma pequena parte da economia internacional que
tem que ser governada pelas leis do mercado externo.
Um
aluno aplicado
Depois
de amargar a década perdida a de 1980
na qual a América Latina transferiu para o resto do
mundo algo em torno de US$220 bilhões, os latino-americanos
viram, a partir de 1991, o sinal se inverter. Crescem os investimentos
privados e os empréstimos para a região, uma transferência
líquida de US$ 170 bilhões, que permitiu a esses países
financiar seus déficits e construir suas reservas. Aproveitando
esse cenário que se delineava favorável, na Argentina,
o presidente Menem começa, em 1989, a mudar os rumos da política
econômica, seguindo a risca as recomendações
do Consenso de Washington. São aplicadas reformas que passam
pela abertura da economia, pelas privatizações e a
desregulamentação dos mercados. Um problema, entretanto,
ainda tirava o sono dos argentinos: uma hiperinflação
que ultrapassava a casa dos três dígitos por mês.
Para resolvê-lo, o então ministro da economia Domingo
Cavallo cria um sistema de conversibilidade cambial. A paridade
peso-dólar traz ao país, que passa a ser apontado
como uma espécie de modelo para os vizinhos, equilíbrio
e estabilidade. A economia cresceu a taxas significativas mas a
estratégia, pouco a pouco, concentrava a riqueza e o capital
e castigava as produções regionais e das empresas
de porte pequeno e médio, que não conseguiram ou não
tiveram tempo de se adaptar. Na Argentina, o universo das pequenas
e médias empresas gera algo em redor de 2/3 do PIB e 80%
dos empregos.
O endividamento, nos anos 90, também crescia e a dívida
externa aumentou 150%. Ainda assim, o regime monetário parecia
promissor, pelo menos enquanto o ambiente internacional era favorável.
No rígido modelo o risco de contágio a choques externos
é imenso. Com as crises que solaparam os Tigres Asiáticos,
em 1997, e a Rússia em 1998, o sonho se tornava um pesadelo.
A dependência monetária colocava a economia argentina
em uma camisa-de-força.A política econômica
limita-se a transmitir sinais amistosos aos mercados financeiros
internacionais, explica Ferrer em seu artigo. Com os preços
atrelados ao dólar, os produtos argentinos perdiam competitividade
no mercado internacional. Para Paulo Nogueira Batista Jr., o
problema central da dependência monetária reside nas
freqüentes discrepâncias entre as prioridades e necessidades
do país emissor da moeda âncora e as do emissor da
moeda ancorada, escreve. É de importância
vital preservar a capacidade de definir autonomamente as políticas
monetária e cambial.
Em 2000, o peso estava gravemente sobrevalorizado. A economia, em
situação precária, precisava de uma desvalorização
cambial mas com a elevação das taxas de juros nos
Estados Unidos, acontecia justamente o contrário. Ao longo
de 2001, aumenta a agonia: o aluno aplicado eliminou as regulamentações,
abriu a economia e fez as privatizações, mas os resultados
não foram os prometidos. A desconfiança dos investidores
internacionais aumenta, diminui o crédito, fogem os dólares.
A taxa risco-país bate recorde e supera a da Nigéria.
Depois
da tempestade?
Em
janeiro deste ano, depois da convulsão política e
social que tomou o país, o presidente Eduardo Duhalde fez
a opção pela desvalorização da moeda.
O governo Duhalde deu vários passos importantes na
direção da restauração de um sistema
monetário autônomo e flexível, explica
Batista Jr.
Mas se o fim da paridade foi a única solução
possível, não foi, de forma alguma, fácil.
Com a desvalorização, os produtos argentinos ganham
competitividade e as exportações podem reativar a
indústria nacional. O grande problema é a dívida
externa. Encorajados pela paridade, o governo e as empresas se endividaram
em dólar, 80% da dívida privada está atrelada
à moeda norte-americana, no setor público o índice
chega a 90%. Um outro risco, já que a desvalorização
pode fugir do controle, é o do retorno da inflação.
O caminho para a restauração da autonomia é
espinhoso.
Em entrevista, Aldo Ferrer afirma que Duhalde ainda não acertou
porque continua reduzindo a política econômica a seu
aspecto financeiro, se esquecendo da economia real. O curralito
é conseqüência de uma política desastrada.
Reter o dinheiro dos argentinos nos bancos só serve para
impedir a expansão da liquidez e da demanda, justamente o
que o país precisa agora, diz o professor. O
setor da construção civil, por exemplo, está
trabalhando com apenas 50% de sua capacidade. Para resolver a crise,
é necessária uma política que ative as capacidades
ociosas da economia.
Para
entender o 11 de setembro
Para
aprofundar a sondagem da atual situação internacional,
a Estudos Avancados nº 44 traz ainda um artigo inédito
de Noam Chomsky, A guerra internacional contra o terror.
Chomsky é lingüista, pesquisador do Massachusetts Institute
of Technology ( MIT) e um dos mais importantes ativistas políticos
dos Estados Unidos. Seu artigo, cedido com exclusividade para o
IEA, é a reprodução de uma conferência
proferida em 18 de outubro de 2001 no Fórum de Tecnologia
e Cultura do MIT. Com os olhos voltados para os eventos do 11
de setembro, Chomsky tenta responder a cinco questões
sobre a nova guerra contra o terror, entre elas o que
está acontecendo no mundo, por que o 11 de setembro foi um
evento histórico e o que é a guerra contra o terrorismo.
Nessa trajetória, sombrios episódios da política
externa americana vêm à tona. A guerra de Reagan e
dos EUA contra a Nicarágua, que deixou milhares de mortos
e o país, talvez para sempre, em ruínas, é
um bom exemplo. O apoio norte-americano à Colômbia,
país que mais violou os direitos humanos na década
de 90, também é passado em revista. O que se coloca
com força em A guerra internacional... é
a fragilidade do conceito de terrorismo norte- americano. Quando
quem ataca somos nós ou nossos amigos, não se trata
mais de terrorismo, mas de contra-terrorismo.
A revista volta-se também para questões brasileiras,
como o flagelo das queimadas, e abre espaço para a intersecção
de aspectos sociais com a poesia em ensaios sobre três poetas
brasileiros: Cruz e Souza, João Cabral de Mello Neto e Manuel
Bandeira.
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