A
pessoa mais extraordinária que conheci em minha vida foi o
professor Gleb Wataghin. Como eu o vi pela primeira vez em seus 60
anos, posso imaginar como ele devia ter sido, na época em que,
aportado a estas plagas semi-selvagens, nos anos 30, construiu, ex
nihilo, em poucos anos, uma importante escola de física, cujos
trabalhos, na física dos raios cósmicos, obtiveram conquistas
permanentes e foram citados por Heisenberg. Recentemente o professor
Michel Paty, em uma resenha, referiu-se à tradição
paulista da física contemporânea. A física
paulista é a física de Gleb Wataghin.
Wataghin possuía o dom de encantar. O próprio governador
Adhemar de Barros sucumbiu ao seu fascínio. O professor Oscar
Sala testemunhou o seguinte episódio: Wataghin precisava de
auxílio financeiro para uma parte de suas pesquisas de raios
cósmicos, que, naquele momento, eram realizadas a bordo de
um avião da FAB, em vôo. Conseguiu ser recebido em palácio,
e lá se pôs, entusiasmadíssimo, a descrever a
maravilha dos raios cósmicos, e a importância das observações
que pretendia fazer. Depois de um pouco, Adhemar não se conteve,
abriu uma gaveta e disse: Professor, pegue aí o dinheiro
que quiser, e que Deus o ajude com os seus raios cósmicos!.
Deixemos que fale Paulo Duarte, em uma passagem de suas Memórias
em que conta do seu relacionamento com os professores estrangeiros
da Universidade. Há (...) um pseudo-italiano com quem
me liguei bastante e por causa do jogo de xadrez, em casa do Fábio
(Fábio Prado, prefeito de São Paulo). Ele é russo
de origem, italiano naturalizado, apesar de moço já
um grande físico e é talvez o professor de maior êxito
da turma estrangeira... (a ênfase é minha). Há
um grupo de rapazes, alunos de Wataghin, que já se revelou,
entre eles, um chama-se Mário Schenberg e outro Marcelo Damy.
Julinho (Julio de Mesquita Filho) entusiasma-se quando fala neles,
porque não há melhor confirmação do que
sempre afirmou, isto é, não termos gênios porque
não temos meio que os possa revelar e este meio é a
Universidade.... E continua: Wataghin, conversando comigo,
me contou uma verdadeira história das mil e uma noites. Os
físicos estão pesquisando agora o átomo. A sua
decomposição pode liberar uma energia capaz de destruir
a Terra, mas bem domesticada e dirigida seria capaz de transformar
a vida dos povos... Dentro do átomo, até agora considerado
a parte mais íntima da matéria, há verdadeiros
mundos tão importantes quanto as galáxias, a uma das
quais pertencemos... Eu comecei a pensar, à noite, na conversa
de Wataghin e perdi o sono.
O grande físico e matemático Freeman J. Dyson conta,
em um artigo de 1994: [No volume 73] do Physical Review (de
1948) apareceram artigos maravilhosos sobre os mais diversos assuntos:
Alpher, Bethe e Gamow sobre a origem dos elementos químicos;
Gleb Wataghin sobre a formação dos elementos químicos
dentro das estrelas; Edward Teller, sobre a mudança das constantes
físicas... O trabalho de Alpher-Bethe-Gamow propunha que os
elementos químicos fossem formados pela captura sucessiva de
neutrons por prótons durante a expansão inicial do Universo,
a partir de um início quente e denso. Enquanto isso, o artigo
de Wataghin, que propunha que os elementos se formassem em estrelas
de neutrons, ou, mais precisamente, no processo da rápida expansão
das estrelas de neutrons no espaço interestelar, recebeu muito
menos atenção. Wataghin vivia no Brasil e não
era mais muito conhecido. Infelizmente foram precisos muitos anos
para reunir os dados que comprovaram que, ao menos para a grande maioria
dos elementos, Alpher-Bethe-Gamow estavam errados e Wataghin estava
certo.
Em 1968 eu estava em Turim trabalhando para o meu doutoramento quando,
no pátio do instituto, deparo com Mário Schenberg, vestindo
um gigantesco sobretudo. Disse-me que ia visitar Wataghin, e pediu-me
que o levasse à sala do professor, então diretor do
Instituto de Física, uma sala enorme onde havia até
um recanto para seminários. Ali Schenberg deu uma
pequena palestra sobre seus trabalhos recentes, ou nas palavras de
Wataghin, para enfatizar a grandeza do momento, disse missa.
O espetáculo que mais me emocionou foi ver o carinho e respeito
com que esses grandes homens se tratavam. Schenberg ainda usava o
tratamento senhor, e submetia suas idéias cuidadosamente
ao escrutínio do seu professor. Este, orgulhoso de seu aluno,
voltava-se para a platéia toda a vez que, a seu juízo,
Schenberg fazia uma observação importante.
Não devemos muito a Gleb Wataghin. Devemos tudo. E, não
obstante, não há, na Cidade Universitária Armando
de Salles Oliveira (justíssima homenagem ao governador-filósofo),
uma única homenagem a ele. Ou melhor, há, sim, e Wataghin
teria apreciado muito: os estudantes do Instituto de Física
deram o nome de Gleb Wataghin à sua Associação
Atlética.
Há anos propus que o endereço do Instituto de Física
fosse na Rua Gleb Wataghin. Não foi possível, porque
uma decisão do Conselho Universitário durante os anos
de chumbo estipulou que as ruas da Cidade Universitária tivessem
nomes apenas de reitores mortos. Cautelosa na época (provavelmente
para evitar o aparecimento de homenagens a generais), é inaceitável
nos dias de hoje, e institucionaliza na Universidade o vício
cultural brasileiro de confundir a hierarquia administrativa com a
científica. Urge revogá-la, para que possamos honrar
pais e mães.
Henrique
Fleming é professor do Instituto de Física da USP
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