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Witter: outros tempos
Nunes: pesquisa integrada
Jancsó: elogio aos jovens

   





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e o tempo andasse no mesmo passo para pessoas e instituições, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas estaria na terceira idade, careca ou de cabelo branco, amparada em bengala, à espera de uma provável demência. Ao contrário disso, a maior e mais antiga unidade da USP chega aos 70 anos na maior vitalidade, desenvolvendo quase 4 mil pesquisas em todos os níveis e, o que é melhor, com a participação entusiasmada e competente de jovens investigadores. A Filosofia, como é resumidamente chamada a FFLCH, é a depositária da mais importante herança acadêmica do Brasil: primeiro, do trabalho desbravador daquela turma de professores europeus chamados para dar aulas na primeira universidade pública brasileira, muitos dos quais se deram tão bem em suas especialidades que ganharam fama internacional e hoje têm seus nomes registrados em enciclopédias — tipo Lévi-Strauss, o que criou o estruturalismo, e Fernand Braudel, o que ampliou o campo da história, colocando-a no espaço das ciências do homem. Depois, a Filosofia é herdeira do trabalho fundamental de outra turma, agora já bem brasileira, que pensou ou ainda pensa o Brasil globalmente e refletiu ou ainda reflete sobre os seus múltiplos caminhos — gente como Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Fernando Novaes, Emília Vioti da Costa, José Arthur Gianotti, Bento Prado, Milton Santos e Aziz Ab’Sáber. Essa herança está sendo honrada, em termos de qualidade especialmente, mas também de quantidade, como se pode ver na tabela reproduzida na página seguinte.
Retratada assim, pode parecer que a quase septuagenária Filosofia, grande e complexa como uma universidade independente e maior do que algumas universidades públicas, caminha sem sobressaltos, cumprindo seu papel de paradigma para o sistema universitário brasileiro. Mas não é bem assim. As celebrações iniciais do 70º aniversário coincidem com uma crise. As aulas estão paralisadas em todos os departamentos, enquanto representantes da unidade e da Reitoria tentam encontrar uma solução para os principais problemas apontados por alunos e diretores – carência de docentes e precariedade da infra-estrutura.

Prêmios na graduação

O andar lento e a bengala companheira escondem o entusiasmo que há em István Jancsó, professor de História e presidente da Comissão de Pesquisa da FFLCH. Falar da juventude, não mais dele mas dos alunos, põe brilho nos seus olhos e tons mais altos na sua fala. “A pesquisa vai muito bem na Filosofia. A faculdade é um extraordinário viveiro de investigações, de formação de investigadores e de produção de conhecimento. Posso dizer que em poucos momentos da vida da FFLCH existiu uma escala tão ampla de pesquisa de qualidade e numa perspectiva universitária absolutamente consistente.”
Particularizando, Jancsó vai ao ponto que mais o fascina, a participação dos jovens. E conta que, no ano passado, o melhor trabalho de toda a Universidade na área de iniciação científica foi de um aluno de Letras — Adriano Aprigliano, orientado pela professora Maria Valíria Aderson de Mello Vargas — que representou a USP nos Estados Unidos com o estudo “Elaboração de um vocabulário prático sânscrito-português”. O professor não se contém: “Para todos nós foi enorme satisfação saber que um trabalho em sânscrito de aluno desta faculdade tem padrão internacional. Ele sintetiza a vitalidade da pesquisa na USP. Note-se que não se trata de pesquisador sênior, mas de um estudante da graduação, em processo de formação, cujo trabalho sobre sânscrito foi considerado o melhor na área de humanas e um dos melhores já desenvolvidos no campo da iniciação científica”. Este ano, o destaque da iniciação científica foi uma aluna da História, Camila Diogo de Souza que, orientada pela professora Elaine Hirata, fez uma pesquisa no Museu de Antropologia e Etnologia (MAE) e com ela representou a USP em simpósio na Universidade Estadual de Nova Jersey, EUA.
Outro exemplo de vitalidade da pesquisa na Filosofia lembrado pelo professor Jancsó é o destaque que a unidade conseguiu este ano na Bienal do Livro, quando foram outorgados os prêmios Jabuti. Os três finalistas da área de ciências humanas eram livros de pesquisadores da FFLCH e dos três finalistas no campo de letras dois eram dessa unidade. Portanto, de seis premiações em escala nacional cinco couberam à Filosofia.
Exemplos como os de Adriano e Camila e dos Jabutis levam Jancsó a concluir que a sua faculdade integra uma verdadeira universitas, universidade no sentido mais abrangente da palavra. No geral, os números são extraordinários: contando as pesquisas de docentes na graduação e nas pós, departamento por departamento (e eles são 11), chega-se a quase 4 mil. É nesse ponto que o professor se lembra da herança acadêmica deixada pelos grandes mestres e pesquisadores, a começar por Florestan Fernandes, e considera que o fundamento dessa “efervescência, força e saúde” é a tradição uspiana da indissolubilidade entre ensino e pesquisa. Ele não considera de difícil solução os problemas de ordem tecnológica: “Nunca vi um bom projeto demandando infra-estrutura tecnológica não ser contemplado com os recursos necessários. Nunca vi a Fapesp – um patrimônio do Estado de São Paulo – não atender a um bom projeto. Quem batalha recursos, consegue.”
A questão tecnológica faz Jancsó voltar, mais uma vez, aos jovens. “O problema da tecnologia é o apetite pela inovação por parte dos professores. E qual é a alavanca que faz isso caminhar? O envolvimento de jovens no projeto, envolvimento que começa na graduação e se desdobra no mestrado e no doutorado.” Pessoas com idade mais avançada jamais vão operar as novas tecnologias com a desenvoltura de um pesquisador de 25 ou 30 anos. Daí porque o professor aconselha montar grupos de pesquisa, integrados por investigadores que conseguiram financiamento do CNPq e da Fapesp. “Esses grupos formulam necessidades tecnológicas e treinam jovens pesquisadores que operam os equipamentos com padrão internacional.”

Uma crítica procedente

István Jancsó concorda nesse ponto com uma observação crítica do pró-reitor de Pesquisa da USP, professor Luiz Nunes, segundo o qual a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas solicita poucas vezes à Reitoria auxílio complementar aos financiamentos da Fapesp. “Isso acontece”, diz o presidente da Comissão de Pesquisa da FFLCH, “porque a nossa tradição não é a pesquisa laboratorial. Os físicos, os químicos e pesquisadores de outras áreas de exatas trabalham sempre com laboratórios; os historiadores trabalham com documentos, numa tradição de atividade quase monacal. É recente no Brasil a adoção de recursos modernos de tecnologia no campo das humanas.” Essa tradição do trabalho em grupos, uma trajetória centrada na formação de pessoas, vem dos grandes mestres, entre os quais sempre se destaca Florestan Fernandes. Em vez de grandes laboratórios, preferem-se na área de humanas as bolsas, para que os jovens em processo de formação possam se dedicar integralmente à pesquisa. Acrescenta Jancsó: “Concordo com o professor Luiz Nunes quanto ao nosso baixo apetite na busca de recursos, mas digo com absoluta tranqüilidade que no plano da busca de bolsas a Faculdade de Filosofia compete em igualdade de condições com todas as outras faculdades”.
À observação de que nas unidades da USP em que se estuda e pesquisa ciência exata surgem freqüentemente apelos em favor de uma humanização do ambiente em salas de aula, às vezes até, como no Instituto de Matemática e Estatística, com a criação de grupos de teatro para dramatizar aulas ou conteúdos didáticos, o professor Jancsó responde com gravidade, não sem antes fazer longa pausa para reflexão: “Esse é um problema complicado. Primeiro, não considero que a Universidade deva resolver todas as mazelas produzidas pela implosão do sistema educacional brasileiro. Aquele jovem que entra na Poli, se tivesse tido um excelente curso médio voltado para a formação integral e não para um adestramento para o exame vestibular, certamente saberia como lidar com um texto literário, pois, desde o primeiro grau, depois no segundo, aprenderia a interagir com o texto de qualidade. Saberia distinguir o bom do ruim, por exemplo, um texto de Guimarães Rosa do de Paulo Coelho”.
Surpreendentemente, a tradicional amabilidade das palavras do presidente da Comissão de Pesquisa da FFLCH dá lugar a certa irritação quando alude ao “adestramento quase pavloviano” para o vestibular, do qual o aluno nunca mais vai se lembrar depois de conseguir a aprovação: “É claro que entram quase aleijados intelectualmente na Universidade. Não cabe à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas o papel de pronto-socorro para esses problemas. Não adianta botar na Poli um curso de cultura brasileira, porque aqueles meninos vão encarar aquilo como uma chatice, como era antigamente com os Estudos de Problemas Brasileiros criados pelos militares”.
O pró-reitor Luiz Nunes defende uma integração maior entre as ciências humanas e as exatas e biológicas, incluindo nas humanas não apenas a Filosofia mas também a Escola de Comunicações e Artes, a Faculdade de Educação, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências de Ribeirão Preto e até alguns departamentos integrados a unidades de exatas como o de Arquitetura da Escola de Engenharia de São Carlos. Nunes, que é oriundo do campus de São Carlos, estimulou seus alunos a fazer História da Arte nesse departamento e considera exemplar o caso do professor Célio Silva, que no campus de Ribeirão Preto trabalha na criação de uma vacina genética contra a tuberculose e ao mesmo tempo cursa Jornalismo na Universidade de Campinas.
O pró-reitor observa que a pesquisa é muitas vezes fragmentada e vários projetos admitem tratamento multidisciplinar, abrindo caminho para uma colaboração entre diversas áreas. É o caso, por exemplo, dos estudos relacionados com o meio ambiente, em que a História poderia se encaixar, investigando temas como as razões e as etapas da degradação ambiental.
Voltando à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, apesar de ressaltar o excelente estado da pesquisa na USP, em especial na sua unidade, o professor Jancsó aponta um paradoxo. Nunca se pesquisou tanto sobre o Brasil, mas em relação a aspectos particulares dos fenômenos nacionais. Falta a Universidade como um todo se dedicar a uma questão maior: para onde vai o País? Tanto estudos pontuais como globais são importantes e em conexão íntima, porém “está faltando discernimento quanto ao que é fundamental, aquilo que alimentava os grandes mestres da USP”. Não lhe perguntem por que isso ocorre. Ele dirá que não há mágico que dê resposta a isso de imediato: “O problema não é só da qualidade das pesquisas; é preciso pensar na relevância das coisas”.


Diálogo para preencher claros

Em relação à paralisação das aulas na Filosofia, desencadeada por iniciativa dos alunos dos cursos de Letras, depois apoiada pelos demais departamentos, o pró-reitor de Pesquisa considera o quadro confuso, mas informa que há diálogo e uma comissão de representantes da unidade e da Reitoria estuda as propostas de preenchimento, na medida do possível, de claros docentes.
Além dos problemas específicos da FFLCH, é claro que estão em jogo a defesa da universidade pública e gratuita — uma causa da Reitoria, dos professores e dos alunos —; as aposentadorias precoces de professores, responsáveis em parte pela abertura de muitos claros e pelo encurtamento dos recursos orçamentários destinados à pesquisa; a produtividade da universidade pública, com certeza responsável no Brasil pela maior parte do desenvolvimento tecnológico e científico, como ficou comprovado em estudo recente realizado no Instituto de Estudos Avançados da USP; e a política de expansão das instituições privadas de ensino superior.
Para o professor José Sebastião Witter, aposentado do Departamento de História e organizador dos festejos do 70º aniversário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas — que se concluem em 2004 — não resta dúvida de que existe, partindo, porém, de setores de difícil identificação, uma campanha surda contra a universidade pública.
Quanto às aposentadorias precoces de docentes, Witter considera que se configura um quadro muito diferente daquilo que existia décadas atrás, quando os professores faziam questão de se dedicar integralmente à Universidade e trabalhar até a aposentadoria compulsória aos 70 anos.
De qualquer forma, a paralisação atual na Filosofia, embora lamentada, é defendida pelo professor István Jancsó, dizendo que a unidade “está num momento de saturação, num processo de acumular problemas cuja solução, se não for de boa qualidade, coloca em risco o próprio conceito de indissolubilidade entre ensino e pesquisa. E isso tem que ser preservado”. Nesse sentido, acrescenta, “a posição dos estudantes revela uma preocupação salutar com aquilo que é essencial a uma universidade pública, especialmente a USP, o de ser paradigma de qualidade no ensino superior”. Jancsó quer que, no preenchimento de claros docentes, sejam estabelecidos critérios que levem em conta as especificidades da Filosofia e que as soluções não se atenham a casos emergenciais, mas alcancem a estrutura da unidade.

Números grandes

O gigantismo da faculdade que deu início à Universidade de São Paulo em 1934 — outras unidades já existiam e foram incorporadas à instituição nascente, como a de Medicina, Politécnica, Escola de Agricultura Luiz de Queiroz — fica patente em números: a Filosofia possui perto de um quinto do total de alunos da graduação da USP, um oitavo do total de alunos da pós-graduação e responde por um terço das vagas do período noturno oferecidas no exame da Fuvest. Mas, e os alunos, professores e direção insistem nisso, dispõe de apenas 7,2% dos docentes, conforme o Anuário Estatístico 2001. Diante disso, a faculdade pede a contratação de 105 novos professores, escalonados até 2004.

 




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