Com
Gilberto Freire, o Brasil descobriu sua verdadeira identidade racial.
No livro Casa-Grande & Senzala, publicado nos anos 30, o sociólogo
pernambucano mostrou como a mistura de raças a branca,
a negra e a índia contribuiu para a formação
da família brasileira no regime de economia patriarcal. Décadas
mais tarde, Florestan Fernandes, com obras como A integração
do negro na sociedade de classes, evidenciou que as relações
entre os diversos elementos formadores do povo brasileiro se deram
de forma mais problemática e conflituosa do que sugerem as
teses de Freire.
Esse debate sobre as origens e a identidade do povo brasileiro foi
enriquecido por uma tese de doutorado que, defendida em dezembro de
2001 na Faculdade de Saúde Pública da USP, aborda a
formação do homo brasiliensis sob um aspecto peculiar
a alimentação. Através do estudo das raças
e culturas que se entrecruzaram no País do século 16
ao 18, a tese resgata as práticas alimentares do Brasil colonial,
das quais algumas parecem perdurar até hoje. A colônia
manteve uma alimentação pobre em muitas regiões
devido, entre outras coisas, ao rareamento e ao encarecimento de produtos
vindos de Portugal, à insuficiente atividade agrícola
de subsistência e à deficiência no transporte de
alimentos para regiões mais distantes, além de um aumento
vertiginoso da população, escreve a nutricionista
Rosemeire Bertolini Lorimer, autora da tese, intitulada O impacto
dos primeiros séculos de história da América
portuguesa na formação da brasilidade alimentar.
Esse quadro alimentar, caracterizado pela penúria, improvisação
e criatividade, resultou num cenário endêmico de subnutrição,
que ainda pode ser observado em muitas partes do Brasil de hoje, mas
que, por outro lado, contribuiu para a formação das
típicas e elogiadas cozinhas baiana e mineira, verdadeiras
jóias da cultura do País.
Açúcar
e minérios
Vários
fatores contribuíram para o desequilíbrio alimentar
dos brasileiros no período colonial, destaca Rosemeire em
sua tese. Um deles foi a política econômica aplicada
na colônia, voltada para a exportação de açúcar.
Cada vez mais, o cultivo da cana-de-açúcar ocupava
vastas extensões de terra. Por volta de 1580 havia 115 engenhos
de cana em operação ao longo do litoral brasileiro,
que produziam 350 mil arrobas de açúcar, segundo um
cronista da época, Fernão Cardim. Em 1630 esse número
já chegava a 230 engenhos. As áreas dedicadas à
agricultura de subsistência foram reduzidas e o habitat de
animais para caça desapareceram, diminuindo a oferta de alimentos.
Com a queda dos lucros na venda do açúcar o
quadro só se agravou, pois foi necessário expandir
as zonas de plantação de cana, escreve Rosemeire.
Isso levava os poucos recursos de subsistência cada
vez para mais longe.
No século 17, a descoberta de metais preciosos na colônia
não melhorou as condições de alimentação
do brasileiro. As levas de homens em direção às
Minas Gerais apenas deslocaram os problemas da costa para o interior.
Com o aumento vertiginoso da população, aquela região
enfrentou um grave desabastecimento, que resultou numa alimentação
pobre e deficiente. Os assaltos às caravanas geralmente
eram cometidos por negros fugidos e criminosos que roubavam tudo
o que podiam. Isso ocasionou um choque no abastecimento das cidades
do interior, sendo freqüente a falta de alimentos básicos
em muitas delas, afirma Rosemeire. Não eram apenas
os roubos que diminuíam a oferta de alimentos, mas também
a falta da agricultura por parte das populações instaladas
no interior, ocupadas unicamente em minerar. Essa escassez
de alimentos, acrescenta a autora, perdurou durante todo o período
colonial e se agravou de tal forma que os governadores de províncias
passaram a incentivar os lavradores a plantar mandioca, feijão
e milho.
Couve
e angu
Diante
dessa penúria alimentar, os portugueses instalados
na colônia tiveram de fazer adaptações para
garantir sua sobrevivência. Assim, passaram a apreciar o tatu
e a paca, comparados ao coelho europeu, e a comer pombas, melros
e urus, cujo gosto se assemelhava ao das perdizes. Muitas
frutas que se apresentavam estranhas aos olhos do estrangeiro, como
a jaca, o abacaxi e o caju, passaram a fazer parte da mesa colonial.
Num segundo momento, diz Rosemeire, essa adaptação
consistiu na substituição dos ingredientes europeus
pelos nativos. Ao invés de maçã, usava-se a
banana para fazer tortas e mingaus. O mamão verde e o coco
faziam as vezes da maçã, da pera e do pêssego,
enquanto a jabuticaba e o amendoim substituíam a cereja e
a ameixa.
A mistura de elementos europeus, africanos e indígenas na
cozinha colonial deu origem a pratos até hoje servidos nas
mesas brasileiras. Na tese, Rosemeire conta que, em meados do século
17, os portugueses trouxeram da África para a colônia
uma planta que se adaptou rapidamente ao ambiente e se espalhou
por todo o nordeste brasileiro. Uma novidade para os europeus, que
dela extraíam o óleo para usar como combustível,
a planta já era velha conhecida dos negros africanos, que
a utilizavam na culinária era o azeite-de-dendê.
Daí para frente foi muito simples: as negras e os negros
que trabalhavam na cozinha dos senhores de engenho só tiveram
que adaptar ao paladar dos senhores as preparações
com pitadas africanas, escreve Rosemeire, lembrando que, ao
ser introduzida na cozinha da casa-grande, a negra deu origem a
uma comida misto de portuguesa e africana. Hoje,
o azeite-de-dendê é, talvez, o ingrediente mais importante
da culinária dita africana no Brasil.
Como aconteceu nas fazendas produtoras de açúcar,
nas regiões das minas a adaptação às
condições de alimentação também
gerou pratos agradáveis ao paladar do brasileiro do século
21. Os portugueses, radicados nas regiões mais centrais
da colônia, acabaram apresentando, na obtenção
de seus gêneros alimentares, algumas características
indígenas, revela Rosemeire. A cozinha passou
a compor o prato dos mineiros com alimentos resistentes,
fáceis de serem cultivados sem muito trabalho na agricultura,
além das carnes salgadas.
Entre esses alimentos estava a mandioca, consumida na forma de farinha.
Com ela, os mineiros aprenderam a fazer todas as preparações
indígenas à base de mandioca, como beiju, biscoito,
bolo, mingau e pirão. O milho servia para preparar pipoca,
curau, pamonha, cuscuz e canjica, além do fubá
o milho seco finamente ralado, com que se fazia o angu. Esse
cozido, o angu, representa até hoje um dos pratos mais típicos
de Minas Gerais, sendo apreciado de várias maneiras.
Já a couve, consumida refogada só rasgada, pura ou
dentro do angu, era a única verdura apreciada pelos mineiros
do século 17. Hoje, é outro prato típico de
Minas, conhecido até como couve à mineira.
Um trecho da tese de Rosemeire é dedicado ao intercâmbio
de alimentos entre a colônia portuguesa na América
e outras regiões do planeta, que também contribuiu
para a formação dos hábitos alimentares do
Brasil colonial. A autora conta, por exemplo, a trajetória
do café, produto de que o Brasil se tornaria, no século
19, o maior exportador do mundo. Fruto da Coffea arabica, uma planta
originária das montanhas da Abissínia, na Etiópia,
o café foi levado dali para a Arábia, onde os grãos
eram torrados e fervidos na água para ser consumidos. Da
Arábia ele passou para o Cairo e alcançou Constantinopla.
Ali ele foi adquirido por comerciantes venezianos, que o levaram
para a Itália. Em Veneza o café ganhou sua forma definitiva:
Os italianos não gostavam de comer a borra do café
turco. Pensaram que talvez fosse possível separá-la,
por meio de um tecido ou filtro. Nascia o coador de café.
Daí para frente, na forma de bebida revigorante, ganhou o
mundo.
A colônia também deu sua contribuição
para o mundo na arte culinária. Comerciantes portugueses
e espanhóis transportaram para a Europa e a Ásia produtos
como o milho, a batata-doce, o tomate e a mandioca, que se tornaram
elementos básicos das cozinhas de vários países.
Contudo, dentre todos os alimentos oriundos das terras americanas,
os mais importantes talvez sejam a batata e o cacau.
Porquinho
à jardineira
A tese
de Rosemeire Bertolini Lorimer resgata as mais remotas origens da
história da alimentação no Ocidente. Abaixo,
uma receita recomendada por um cozinheiro romano anônimo do
século 2 depois de Cristo, citada na tese.
Desossa-se o porquinho à jardineira pela goela, como uma
ostra. A seguir, é guarnecido de frango moído em almôndegas,
de tordos, de papa-figos, de seus miúdos moídos, de
salsichas da Lucânia, de tâmaras sem caroço,
de bulbos secos ao forno, de caracóis sem casca, de malvas,
de acelga, de alho-porro, de salsão, de brócolis cozidos,
de coentro, de pimenta em grão e de pinhões. Acrescentam-se
quinze ovos e garum [um condimento feito de vísceras de peixe
salgadas e maceradas em potes expostos ao sol por dois ou três
meses] à pimenta. Os ovos serão esmagados. Volta-se
a cozinhar o porquinho refogando-o, e depois é assado no
forno. É cortado então nas costas e regado com o seguinte
molho: pila-se pimenta, arruda, garum, vinho feito de uvas amadurecidas
sobre a palha, mel e um pouco de azeite. No momento da ebulição,
acrescenta-se a fécula.
A
dieta dos grandes navegadores
Ligada à área de nutrição, a tese O
impacto dos primeiros séculos de história da América
portuguesa na formação da brasilidade alimentar
traz informações sobre a colonização
do Brasil dificilmente encontradas até mesmo nos tratados
de história. Exemplo disso é o capítulo 2 da
obra de Rosemeire Bertolini Lorimer, intitulado Os fundamentos
europeus da alimentação colonial.
Nele, a autora reconstitui a vida e a alimentação
nas embarcações portuguesas dos séculos 15
e 16. Lembrando que as condições de higiene nos navios
eram péssimas, Rosemeire destaca que a alimentação
era constituída por alguns alimentos básicos, como
biscoito, favas, arroz, carne salgada, peixe seco e salgado, azeite,
vinho, água, aguardente e mel. O suprimento de carne
se dava pelo transporte de animais ainda vivos (até que durassem).
Vegetais frescos e frutas se esgotavam rapidamente, perdendo seu
viço e propriedades nutricionais, o que acabou por gerar
tantas enfermidades. Entre essas doenças estava o escorbuto,
que tanto flagelou os navegantes a ponto de ser mencionada por Camões
em seu célebre poema Os Lusíadas, conforme lembra
Rosemeire: E foi que de doença crua e feia,/A mais
que eu nunca vi, desampararam/Muitos a vida, e em terra estranha
e alheia/Os ossos para sempre sepultaram./Quem haverá que
sem o ver o creia?/Que tão disformemente ali lhe incharam/As
gengivas na boca, que crescia/A carne e juntamente apodrecia.
Nas embarcações, conta Rosemeire, toda a comida era
armazenada em barris de madeira. Porém, as condições
de higiene eram tão precárias que provocavam o desenvolvimento
de vermes e parasitas. O capitão Bougainville, certa
vez, mencionou que os ratos comiam o equivalente a um quinto de
tudo o que a tripulação deveria consumir.
Em 1505, surge a primeira Regra dos mantimentos, uma
série de normas baixada pela Coroa portuguesa para normatizar
o transporte e o consumo de alimentos nas viagens transoceânicas.
Segundo essa regra, cada embarcação deveria ter um
homem responsável pelo controle dos mantimentos. A chave
da despensa deveria ficar com o despenseiro, que utilizaria a despensa
somente com a autorização do capitão. A regra
recomendava ainda que a distribuição da porção
diária de vinho fosse feita de manhã, a fim de que
cada marinheiro fizesse uso de sua parte conforme lhe parecesse
melhor.
Sobre a expedição de Pedro Álvares Cabral
que saiu de Lisboa com dez naus e três caravelas em 9 de março
de 1500 e chegaria ao Brasil em 22 de abril , Rosemeire lamenta
que não foram encontradas, nos relatórios sobre a
viagem, informações consistentes sobre a alimentação
a bordo. Sabe-se que eram acompanhadas por navetas de mantimentos,
mas não se sabe exatamente seu conteúdo, diz
a autora. Ela lembra que, ao entrar em contato com os índios,
os portugueses ofereceram pão, pescado, cozido, enfeitos,
fartéis, mel e figos passados. Caminha menciona que
os índios se assustaram com as galinhas, ressalta.
É de se supor que essa expedição seguisse
as mesmas normas de abastecimento das outras.
Citando outros historiadores, Rosemeire destaca que a quantidade
de vinagre embarcada era muito grande. Isso se explica,
talvez, pela crença de que o vinagre, misturado à
água, era bom para prevenir e combater o escorbuto. O vinagre
não era usado apenas nas refeições, mas servia
também para limpar a sujeira das partes internas do navio.
Sabe-se hoje que o ácido acético, contido no
vinagre, é um ótimo agente sanitizante, sendo recomendado
para a higienização de frutas e hortaliças
em âmbito doméstico.
Um dos problemas mais graves enfrentados pelos navegantes, segundo
Rosemeire, era a preservação da água.
Embarcado em pipas ou barris feitos de madeira, forrados
de barro e protegidos com uma estrutura de metal , o líquido
estava sujeito às dificuldades impostas pela longa duração
da aventura no mar. As tempestades destruíam os barris, enquanto
as calmarias tornavam a viagem tão longa que os estoques
acabavam. A tese reproduz um texto em que o cronista Gaspar Correia
descreve a aflição provocada pela falta de água
durante uma viagem realizada em 1517: ...grandes quenturas
de sol ardião os corpos da gente, o que causava grande sede,
e armada hia falta dagoa. Com que começou a crescer
o mal da sede em tal maneyra que a gente começou a adoecer
e morrer à sede... qual padecimento matou quatrocentos homens.
Como se tudo isso não bastasse, acrescenta Rosemeire, a transmissão
de certas doenças pela água completava o quadro de
total desespero em que se encontraram algumas embarcações.
Pode-se dizer que a despeito de toda a organização
e regras para abastecimento, o mesmo não foi bem-sucedido,
escreve. A narração de episódios em que
a falta de gêneros aparece é bastante grande.
Segundo a autora, não foram raras as vezes em que o abastecimento
ocorria de modo incompleto ou mesmo era impossibilitado pela falta
de mantimentos nas fortalezas, ou pela presença de inimigos.
É claro que, apesar de poucas vezes mencionada, a deterioração
dos víveres embarcados era bastante comum, devido às
tempestades que enchiam o navio com água da chuva e do mar,
além dos fatores climáticos como o calor e a umidade,
sem mencionar o fato da má preparação das conservas
a serem embarcadas.
Rosemeire cita episódios menos trágicos e mais divertidos
sobre a alimentação dos colonizadores portugueses.
Um deles remonta à Idade Média. Segundo a autora,
em Portugal fazia-se um pão peculiar: ele tinha a forma de
disco e, usado como prato, era consumido após as refeições.
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