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A
história oral de vida é uma experiência viva,
um ato humano onde a busca e a descoberta permeiam o trabalho do oralista
na via para superar o pretendido objetivismo. Ela coloca sua atenção
no sujeito, já que toda voz individual forma parte de um diálogo,
de um encontro, de conversas com o outro, que quanto mais avançam,
mais solidamente nossos eus se fundem.
Na história oral de vida a conversa se faz relato espontâneo
que vai construir o documento histórico e nesse processo, no
centro do trabalho do oralista, está a liberdade como o valor
supremo do ser humano. A experiência de vida como prática
das realidades do sujeito marca a presença existencial no relacionamento
com o mundo, que, visto através de observações
participantes empíricas nos vários encontros, vai descobrir
os sentidos das histórias de vida. Desta forma, a abordagem
empírica e experimental como vivência individual não
apaga a realidade mas a incorpora. No trabalho do diálogo somos
ao mesmo tempo sujeitos e objetos da experiência da fala, que
ao mesmo tempo é pensamento e ação. Fala que
age como pensamento para se converter em rico material histórico.
Testemunho vigoroso de fidelidade ao mais profundo do humano ser.
São as conversas sobre a alma das pessoas e por meio desses
diálogos é que recontamos a história desde uma
perspectiva aberta, inédita e com o sabor da vida. Saber saboroso.
É que saber e sabor provêm do latim sapere. Aí
a etimologia nos permite o contato com a dimensão menos inteligente
(mais sentida, outra inteligência) e mais analfabeta (menos
letrada ainda que mais vivente das palavras). Eis por que todos os
seres humanos são intelectuais. Como já sabemos, é
impossível falar de não-intelectuais, porque não
existem não-intelectuais.
Essa outra inteligência mais analfabeta e mais saborosa parte
e contribui para a consolidação das profundas afinidades
entre a comunicação, a cultura e a história,
mas não como historicismo e sim como possibilidade de uma história
aberta e democrática, que, em lugar de apagar os excluídos
e silenciados, permite transitar pelas esferas dos diálogos
possíveis. Já que a história oral nesta visão
de mundo é um imenso aporte à história pública,
(...) capaz de fazer veicular o saber em sua dimensão
social mais ampla, a história oral, como tributária
da história pública, se remete ao leitor comum, vigorando
o princípio que privilegia o social como alvo do conhecimento.
O diálogo social é a revelação que corre
atrás da comunhão pessoa a pessoa e em uma co-participação
do indivíduo no ato de pensar, faz reacontecer a história
dos esquecidos, dos chamados analfabetos. O analfabetismo não
é a exceção, e sim a regra. (...) foi o analfabeto
que inventou a literatura. Suas formas elementares, do mito à
canção de ninar, do conto de fadas ao canto, da oração
à charada, são todas mais antigas que a escrita. Sem
a transmissão oral não existiria a poesia, e sem os
analfabetos não haveria livros. Mas para Enzensberger
a questão não fica por aí, já que existe
outro, sempre existirá o outro, o analfabeto secundário.
Ele é uma pessoa de sorte, pois não sofre com
a perda da memória. (...) O fato de o analfabeto secundário
não ter idéia de que é um analfabeto secundário
contribui para seu bem-estar. Mas qual é a diferença
entre eles? Que o analfabeto tem uma prodigiosa memória, habilidade
em se concentrar, astúcia, inventividade, tenacidade e aguçado
sentido auditivo. E mais... Na maior parte dos casos as principais
posições na política e na economia são
ocupadas pelos analfabetos secundários. Nesse sentido, basta
uma simples referência ao atual presidente dos Estados Unidos
e ao atual chanceler da Alemanha. Porém, são os
atributos do verdadeiro analfabeto que fazem possível o diálogo,
o encontro, a conversa profunda, onde ele fica com a última
palavra, pois nada mais necessita do que uma voz e um ouvido.
Nesta visão a história oral de vida é uma história
pública para os ouvidos, espécie de carnavalização
onde desaparece a diferença entre atores e espectadores, ou
seja, entre sujeito e objeto. Não temos possibilidade, disse
Mikhail Bakhtin, de permanecer fora do carnaval como observadores,
sem ser afetados por ele. A história oral de vida é
o detalhe que revela o todo. A alma do humano ser é sua projeção.
Quem pronuncia a palavra faz a palavra. Ele é o sujeito da
palavra e o signo acontecendo. Ele como sujeito não é,
ele acontece como pensamento, fala e ação, por isso
a palavra é um ato de existência, e a história
oral de vida convida para os experimentos e o desafio do encontro
que vai além do conhecimento superficial, para descobrir os
significados dos seres humanos, transferência do conhecimento
profundo e sensibilizado. Memórias que ancoram na experiência
que questiona os valores mais recônditos de nossas vidas, procurando
a nitidez dos fatos.
O outro é uma realidade falada e subjetiva agindo em nossos
pensamentos e por sua vez o oralista trata de compreender o sentido
dos acontecimentos falados: ato subjetivo. Diálogo de sujeitos,
fala de analfabetos primigênios, conversas intensas que falam
do presente, do momento que estamos vivendo, que vai para o passado.
O que é falado nos transforma. Aqui o acontecer é como
ser contado porque no fundo a essência é o encontro.
Dessa forma a história oral de vida é uma alternativa
de visão de mundo, que se interessa pela história dos
silenciados e de todos aqueles que aparentemente não têm
história. Ela caminha pela memória individual, social
e política. A presença do passado no presente
imediato das pessoas é razão de ser da história
oral. Nesta medida, a história oral não só oferece
uma mudança para o conceito de história, mas, mais do
que isto, garante sentido social à vida de depoentes e leitores
que passam a entender a seqüência histórica e a
sentirem-se parte do contexto em que vivem. Aqui oral não
é letra morta, é sim palavra viva e o trabalho do oralista
deve pretender, pelo menos, ser uma tradução,
a mais próxima possível, do que nossos olhos, ingênuos
então, viram, e do que nossa perplexidade suscitou.
É evidente que a escrita é uma questão de poder
e que o analfabeto não é um ser absolutamente
ou muito ignorante. Os analfabetos vêm falando ao longo
de 1 milhão de anos, ainda que os alfabetizados (analfabetos
secundários) venham lendo e escrevendo há pouco mais
de 3 mil anos antes de Cristo. De alguma maneira a escrita se converteu
em um meio de comunicação que foi apropriado por uma
minúscula minoria de pessoas que lêem e escrevem. Mas
nossa própria cultura, a individual, a interna, a de cada um
de nós, é oral no pensamento; o discurso é falado
no cérebro. A voz e a imagem são o ponto de partida
de nossa narrativa oral. A imagem poética nos coloca
diante da origem do ser falante. A magia da palavra que todos
descobrimos na partilha, no encontro da comunidade. Confluência.
A volta à unidade depois da separação. O fluxo
do fatofala que nos arrasta no movimento contínuo do
encadeamento dos atos humanos: história oral de nossas vidas.
Circularidade que vem da reunião. Nessa narrativa de palavras
que projetam imagens, viajamos à fogueira comunitária
(mandala) em torno da qual se multiplica a cultura oral. A fogueira
e o lar simbolizam a sociedade humana e sua união em torno
a uma forma, a um ser comum e vivo: o fogo, penetração
ou absorção e sobretudo o motor da regeneração
periódica. Fogueiras, fogos, falas, fatos... mandalas em busca
de seu centro, formas circulares, veículos na busca de autoconhecimento.
Processo de presentificação do sujeito em todas suas
dimensões. Caminhos para chegar ao nosso próprio centro
e ao estado de compreensão que permite ver o mundo presente
como ele é: transitório, dinâmico e contraditório.
As imagens vêm à nossa mente e se concretizam com a fala,
eis o poder da palavra. Enquanto vamos falando as idéias de
nossa fala ficam mais claras. Na medida em que falamos, no encontro
com o outro, flui com mais facilidade nossa lembrança, aí
é que estamos construindo memória e sempre que vamos
a ela, que a invocamos, temos noção de nossa trajetória,
de nossa história.
O método do oralista para superar o paradigma da objetividade
é ir além do estudo sujeitoobjeto caindo na imprescindível
relação sujeitosujeito traspassada pelo crivo
das realidades. A categoria do Outro é tão original
quanto a própria consciência. Nas sociedades mais primitivas,
nas mitologias mais antigas encontra-se sempre uma dualidade que é
a do mesmo e a do outro. Esse modo de proceder do oralista reflete
sua visão de mundo e sua moral de vida que se concretiza em
sua ética para tratar o outro. É que a fala trata do
tecido da ação e intencionalidade humanas. É
que não se pode defender uma interpretação sem
adotar uma atitude moral e de fala. Como somos agentes ativos
da história e participantes do processo de fazê-la, cabe-nos,
por outro lado, situar a ética profissional e técnica
no contexto de responsabilidades mais amplas, tanto individuais e
civis como políticas. É no descobrimento do outro
e de como compreendê-lo no complexo mundo das diferenças
que me confronto, como se fosse outro. (...) a alteridade é
uma categoria fundamental do pensamento humano. Nenhuma coletividade
se define nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante
de si. (...) Não há descrição, dita objetiva,
que não se erga sobre um fundo ético. (...) Todo indivíduo
que se preocupa em justificar sua existência sente-a como uma
necessidade indefinida de se transcender. O sujeito não
como o Absoluto mas como uma conjunção de experiências
profundas com o Outro. A transcendência de todo indivíduo
vai aliada a sua pretensão de se afirmar como sujeito, pretensão
ética que é o caminho da existência e o reconhecimento
no Outro e nas profundas cumplicidades humanas. E como chegar lá?
No encontro. O encontro é por natureza plural, sem desconhecer
a singularidade. O encontro é uma reciprocidade, uma partilha
igual. Onde a palavra Ser cobra uma dimensão humana de reconhecimento
do semelhante, em uma existência para si e para os Outros, na
experiência concreta da vida. Conhecendo intimamente o outro
em um esforço de lucidez lúdico. História oral
de vida como ação social, produção de
sentido, conhecimento e formação do sujeito social.
A história oral é inerente à vida humana e ela
está em busca de uma escrita a partir da oralidade. É
a experiência de mãos dadas com a tradição
oral. Pelo qual é fundamental um ouvido refinadíssimo
para captar o mundo do avesso oculto no temperamento das pessoas.
Preceito para uma história de vida oral cotidiana do presente.
Reflexões para uma história oral humanista e democrática,
capaz de transmitir o mundo das vivências e das atmosferas onde
moram os seres humanos, e dizer, habitat nas profundezas do humano
ser. O oralista é um autor que não tem mais remédio
que respirar o mundo. O oralista é um ensaísta da construção
e ressignificação da memória. Infalível
sonho da humanidade. As palavras são símbolos
que postulam uma memória compartida. Mas que espelho
é esse da memória? Entrevistar para quê? Entrevista
olhada, escutada e sentida como diálogo, encontro, conversa
profunda de comunhão, método da história oral
de vida, disciplina que produz conhecimento, saberes como sentires
e sabores de um mundo mais humano e menos teoricista. E o poder do
silêncio, onde é que ele fica? No convívio íntimo,
já que também ele é uma expressividade e um dizer
de nossa vida. Ainda que o relembrar cumpra uma função
de diálogo, o calar expressa o não dito, que é
uma forma do dizer. É que os silêncios contam porque
são um ato de resistência. Em últimas diálogo
polifônico que acaba com o poder dos letrados e
transforma uma entrevista de campo num experimento em igualdade.
A história oral tem possibilidades infinitas de desenvolvimentos
e assim ficou confirmado no VI Encontro Nacional de História
Oral, realizado de 28 a 31 de maio de 2002, pela Associação
Brasileira de História Oral e pelo Departamento de História
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. A temática do VI Encontro, Tempo
e Narrativa, foi o cenário para que os oralistas,
preocupados com o estabelecimento de parâmetros teóricos
em relação à reconstrução da memória
e a narrativa oral, analisaram a partir de olhares multidisciplinares
a memória como um dos elementos constitutivos da Narrativa,
na medi.da em que seu conteúdo é fortemente marcado
pelo presenteísmo e pela contemporaneidade A comissão
organizadora do evento esteve composta por Maria de Lourdes Monaco
Janotti (DH/USP), Lucilia de Almeida Neves Delgado (PUC/MGUFMG)
e Zilda Márcia Grícoli Iokoi (DH/USP). Igualmente se
realizou o 29º Encontro Nacional de Estudos Rurais e Urbanos
Migrações: Perspectivas metodológicas,
coordenado por Zeila de Brito Fabri Demartini (Ceru/USP-Umesp).
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