Em seu livro Português ou Brasileiro Um
Convite à Pesquisa (Editora Parábola), o lingüista
e escritor Marcos Bagno apresenta uma proposta moderna e ousada:
substituir a velha análise lingüística da Gramática
Tradicional (GT), que domina os livros escolares com uma pletora
de regras para serem decoradas, por um método construtivo
de pesquisa que transcenda os conceitos de certo e errado
em busca de uma comunicação pragmática. Assim,
a interpretação de textos e a fruição
das possibilidades que a língua oferece como instrumento
de comunicação devem ser colocados à frente
dos cansativos exercícios de análise sintática
e morfológica que quase sempre provocam nos alunos uma aversão
ao estudo de sua língua nativa.
Em vez de tratar a língua portuguesa como um objeto estagnado
no tempo, como fez a maior parte das correntes estruturalistas do
século passado, Bagno propõe considerá-la como
um organismo vivo, solto de amarras e em contínua transformação,
alimentada pela contribuição de todos os brasileiros
que se utilizam dela no seu cotidiano de escritores a falantes
analfabetos, de pessoas com acesso privilegiado à informação
das grandes cidades (o que a sociolingüística denomina
cultos urbanos) aos falantes isolados nos rincões
mais pobres do Brasil rural.
As críticas que Bagno faz à Gramática Tradicional
e, principalmente, suas idéias de renovação
do ensino da língua inserem-se num novo panorama epistemológico
que avança rapidamente dentro das ciência humanas:
o de contrapor a herança positivista, em que o objeto de
estudo era reduzido a um mecanismo sujeito a regras fixas, por um
novo paradigma que leve em consideração o qualitativo
e o particular. Nessa nova visão, as regras continuam a ser
pólos de atração importantes que precisam ser
conhecidas e compreendidas pelos usuários, mas nunca são
tomadas como esquemas tão rigidamente definidos que impeçam
o arejamento e mudança diante de novas necessidades históricas,
locais ou sociais.
Bagno convida professores e alunos a romper o muro do saber estruturado
da Gramática Tradicional, que os separava entre iniciados
e iniciantes no esoterismo da gramática pura, para empreender
juntos uma busca não só pelos fundamentos da língua
que lhes é comum, mas também pelo conjunto de falares
e escrituras que essa língua assume no seu uso pragmático,
que une e identifica seus usuários como participantes de
uma mesma experiência cultural. Não é um acaso
que Bagno se considere acima de tudo um escritor um comunicador.
Tanto em seus livros de literatura infantil quanto nos seus ensaios
teóricos a língua é usada nas suas finalidades
mais nobres: comunicar, contar histórias e provocar pensamentos.
O que Bagno propõe em seu último livro é, na
verdade, uma virada pragmática no estudo e ensino da língua
portuguesa. De fato, o pragmatismo como originalmente formulado
pelo lógico e semiótico americano Charles Peirce tem
todos os ingredientes da receita que Bagno nos oferece: substituir
a fixação rígida do saber pela busca continuada
do conhecimento; recuperar o valor da prática (o fazer) depois
de 2.500 anos de privilégio da teoria (o contemplar); aceitar
sem preconceitos o senso comum como base de construção
de todo tipo de saber, inclusive o científico; e, principalmente,
substituir uma visão de mundo diádica, de correspondência
biunívoca, por uma lógica triádica em que os
efeitos pragmáticos do conhecimento adquirido possam retroalimentar
o carrossel lógico que produz esses mesmos conhecimentos:
ou seja, em que os sentimentos do observador possam alterar a própria
estrutura do objeto estudado. Afinal, na lógica triádica
essa estrutura já não é mais intrínseca
ao objeto (a priori) mas sim construída na própria
relação entre observador e observado na experiência
perceptiva.
É uma grande pena, porém, que Bagno não explicite
em seu belo primeiro capítulo o grande embate epistemológico
que subjaz suas idéias. Embora utilize a terminologia criada
por Charles Morris (quando este adaptou a semiótica triádica
de Peirce aos estudos lingüísticos ) baseada no tripé
Sintática Semântica Pragmática,
Bagno ficou nos devendo expor o quanto essa divisão tripartite
difere e se distancia dos conceitos de sistema e valor da lingüística
dualista de Saussure e das correntes estruturalistas que ali buscaram
inspiração. A mudança da estrutura diática
para o contínuo triádico representa um salto enorme
na forma de produzir e organizar o conhecimento que precisa ser
ressaltado.
Enquanto o sistema estruturalista é um corte no tempo e no
espaço e se apresenta in totum, o contínuo triádico
é não-linear e sensível às condições
iniciais do sistema. Em outras palavras, a lógica triádica
é caoticamente organizada de forma que pequenas contribuições
qualitativas possam ser continuamente introduzidas no sistema sem
produzir fraturas nos seus alicerces embora provocando, no
longo turno, grandes transformações plásticas.
E não é exatamente isso que Bagno nos diz quando afirma
que nossa língua portuguesa falada e escrita no Brasil muda
um pouco a cada dia e ruma para, num tempo distante, assumir uma
forma tão diferente da portuguesa de Portugal que já
não serão mais a mesma língua?
Nesse seu desenvolvimento não-linear, a língua apresenta
uma tensão natural entre a regra e a exceção,
entre as leis e as disparidades, entre o geral e o particular. Não
é possível abolir de vez a regra sob pena de desorganizar
irremediavelmente o sistema. Por outro lado, não é
possível evitar que o qualitativo e o particular entrem no
sistema e o transformem numa proporção infinitesimal
mas continuada. Refutado como erro por leis rígidas,
o qualitativo se acumula como limalha sobre a membrana do sistema
até que o peso dessa poeira desaba e o faz implodir. No caso
de uma língua, isso equivaleria aos seus falantes se distanciarem
lenta mas continuadamente da Gramática Tradicional até
o ponto em que já não possa mais haver retorno e compromisso
entre o que as regras afirmam e o que os falantes praticam.
Bagno percebeu o perigo que a rigidez da Gramática Tradicional
oferece à posição da língua portuguesa
como laço cultural e de identidade do povo brasileiro. Sua
proposta é corajosa porque vai ao coração do
problema, apontando como culpados aqueles que detêm o poder
de normatização da língua: o governo, a escola,
os intelectuais formadores de opinião e os meios de comunicação.
A língua também é um instrumento de dominação.
Mexer com sua estrutura significa, também, alterar as relações
de valor e hierarquia na sociedade. E quando se defende o escancaramento
da porta estreita da Gramática Tradicional para que as experiências
culturais dos marginalizados possam entrar no salão da cultura
nacional, ganhando expressão sintática e valor semântico
oficial, não há dúvida que existe nisso uma
proposta política.
É uma tomada de posição ideológica baseada
numa nova metodologia de produzir e difundir o saber na verdade,
num novo paradigma chamado conjectural ou indiciário porque
está baseado na interpretação de pequenos detalhes
da linguagem que, exatamente por serem pequenos e pouco perceptíveis,
estão menos sujeitos à autocrítica e revelam
mais do que o estudo das grandes estruturas. Surgido ainda no final
do século 19, esse paradigma foi responsável pelo
desenvolvimento de ciências como a psicanálise e a
antropologia, além da renovação de ciência
humanas mais tradicionais como a história e a crítica
literária.
Sua aplicação no campo da lingüística
precisa começar exatamente como Marcos Bagno faz: com um
convite à pesquisa para descobrir até onde usos de
pronomes que fogem às regras, supressões de partículas
e alterações ortográficas não podem
ser interpretados como expressões culturais genuínas
em vez de tachados simplesmente como usos errados que precisam
ser corrigidos. Afinal, a língua não nasce nem existe
sem seus falantes. Os usuários de uma língua não
devem estar numa posição de sujeição
estrita às suas regras. Ao contrário, essas regras
é que precisam manter-se abertas às mudanças
que o desenvolvimento histórico e cultural de um povo exige.
Vinícius
Romanini é jornalista e doutorando em Comunicação
pela ECA/USP
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