No
dia 3 de setembro, uma terça-feira, mostrava-se fora do comum
o movimento no bar da esquina da rua Barra Funda com a Albuquerque
Lins, em São Paulo. Incomum também a freguesia daquele
local: muitas mulheres vestidas de branco, que pediam sanduíche
de queijo ou frango grelhado à hora do almoço. Motivo:
das 9 às 18 horas, o seminário Contracepção
Direitos sexuais e reprodutivos e cidadania, organizado
pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, ocupou
toda a platéia, mais camarotes e frisas do Teatro São
Pedro.
Médicas (e médicos), enfermeiras, assistentes sociais
e interessados na saúde da mulher debateram temas emergentes:
gravidez na adolescência, aborto e violência sexual. Esses
problemas afetam não apenas as populações de
baixa renda. Meninas e mulheres das classes média e alta sofrem
os mesmos dilemas que as da periferia, com uma única e essencial
diferença: possuem mais recursos para cuidar do bebê
não-planejado (em 72% dos casos, posto a cargo da avó
materna), para se cuidar em caso de complicações com
o aborto ou para contratar um advogado que acuse o violador (justiça
seja feita, entretanto, às ONGs que velam pelos direitos da
mulher pobre).
A
doença da palavra
Não
falta informação sobre planejamento familiar, até
sobra o psicólogo norte-americano James Hillman chama
esse fenômeno de intoxicação hermética
e o comunicólogo Uchtmann, de incomunicação.
O alemão quer dizer que, quanto mais curto o caminho da informação,
maior o grau de incomunicação. Sabe-se que informação
e conhecimento não carregam o mesmo significado. Milhões
de mulheres padecem porque sabem conscientemente como prevenir a
gravidez mas falta-lhes coragem para discutir com o parceiro e exigir
o uso de preservativo, por exemplo. Nas palavras de Albertina Duarte,
coordenadora da Saúde da Mulher da Secretaria de Estado da
Saúde de São Paulo, o bombardeio de informação
sem critério leva à doença da palavra.
Que chega a absurdos, como ocorreu numa certa novela, em que uma
jovem com transplante cardíaco recente dava à luz
na praia. Algo impensável e de alto risco, pois uma paciente
assim tomaria anticoagulantes e poderia literalmente morrer na praia
sangrando.
Uma médica atuante no Plano de Saúde da Família
de São Paulo conta que uma paciente de apenas 11 anos consultou-a
preocupada por não sentir prazer na relação.
Perplexa, a ginecologista pediu um tempo para responder. Na consulta
seguinte, a mãe pressionou a médica para que receitasse
um contraceptivo.
Albertina relatou a história de uma paciente que solicitou
cirurgia do períneo. Meu namorado é experiente,
ele tem 15 anos e disse que sou larga.
Teme-se que o excesso de orientação desperte a curiosidade.
Somos acusadas de falar muito e incentivar, mas está
na mídia, nos hormônios, é biopsicossocial,
ressaltou Albertina. Sua parturiente mais nova até hoje no
Hospital das Clínicas contava nove anos e meio, e no consultório
particular, 11. Cada vez mais eu dou pílula,
afirmou. Contracepção não é mais
prescrição, avisaria, mais tarde, Simone Diniz,
médica da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Anibal Faundes, presidente da Cemicamp, de Campinas, lembra que
nos Estados Unidos se insiste muito nos programas de abstinência,
isto é, educar o adolescente para que inicie a vida sexual
não por pressões dos amigos, mas por uma decisão
madura. Isso ajuda, porém não basta: na Europa, esses
programas somam-se à disseminação efetiva dos
métodos contraceptivos.
A
contracepção depende de dois
Muitas
vezes a mulher leva a culpa porque não usou anticoncepcional
e engravidou. Especialmente na adolescência, ela busca uma
solução mágica, a exemplo das injeções
de hormônios. Porém, dessa maneira fica de lado a prevenção
de doenças sexualmente transmissíveis. É
o mesmo com as drogas. Os adolescentes sabem muito mais que os adultos
quanto custa, onde se encontra, qual o genérico, assinalou
Albertina. As mães adolescentes sofrem o impacto de, ao voltarem
à escola após o período de amamentação,
serem tratadas como mulheres. O menino não interrompe seu
projeto de vida, mas a menina sim. Ainda falta muito para
a paternidade ser dos dois e que haja eqüidade de gênero
na contracepção, disse Albertina.
Doença
da palavra vira violência...
...E
não se restringe apenas aos despossuídos. Albertina
Duarte atende moças de classe média-alta que apanham
e dizem: Meu namorado transou com minha amiga e disse que
gostou mais dela. O que eu faço?. Muitas arranjam namorados
na cadeia. Uma estudante de Direito garantiu que vai fazer
de tudo para livrar o namorado da prisão. Ela falou assim:
Eu fui na favela falar para a mãe dos filhos dele que
eu sou a mulher dele. Ela veio com uma garrafa, mas agora estou
aprendendo jiu-jítsu para me defender. No Hospital
das Clínicas, 10% de suas pacientes foram violentadas.
A advogada Miriam Ventura, do Rio de Janeiro, afirmou: a pena
para o adolescente hoje é muito maior do que para o adulto.
A todo momento se mostra o que é a Febem, observou,
acrescentando que é contra a redução da idade
penal. Ela lembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente
obriga médicos e professores a comunicar às autoridades
suspeitas de maus-tratos. Existem pais que estupram as filhas
e obrigam as meninas a tomar anticoncepcional porque não
suportariam engravidá-las, contou. A advogada recomenda
seminários multidisciplinares entre Secretarias de Saúde,
Ministério Público, Secretarias de Segurança
e Justiça e Conselhos Tutelares. Um parecer do Ministério
Público ampara a ação do médico, que
deve sempre se orientar pela preservação da saúde
da mulher.
![](ilustras/ilustra1011c.jpg)
Aborto aberto
Anibal
Faundes apresentou um estudo realizado na Colômbia: 60% das
mulheres que freqüentavam a igreja mais de uma vez por semana
abortavam, contra 31% daquelas que iam semanalmente e 20% das que
nunca compareciam. A mulher vai interromper a gravidez independentemente
das condições aqui na terra e depois da morte. Ela
sabe que Deus há de perdoá-las. Isso quer dizer que
as proibições legal e religiosa não são
eficientes. O aborto provocado é um fenômeno social.
Proibir o aborto é como proibir a existência de meninos
de rua tirando a rua, comparou Faundes. Miriam Ventura fez
coro: Os fenômenos sociais não se evitam com
leis proibitivas.
No entender de Faundes, evita-se a gravidez indesejada com a correção
dos seguintes fatores:
1. igualdade de poder entre os gêneros, e que a mulher seja
capaz de decidir quando, com quem e em que condições
vai exercitar a sexualidade;
2. conhecimento e acesso a métodos de planejamento familiar.
Quanto a essa dúvida sobre se as palestras de prevenção
poderiam estimular a sexualidade, há pelo menos 15 trabalhos
com boa metodologia provando que a educação sexual
diminui o número de parceiros, afirma. Iniciada antes
da primeira relação, posterga o início da vida
sexual e reduz o índice de gravidez indesejada e de aborto;
3. proteger a grávida com segurança, emprego, assistência
médica e aceitação social de um filho fora
do matrimônio e em adolescentes;
4. apoio a mãe e filho: licença-maternidade, apoio
ao aleitamento e creches gratuitas e acessíveis.
Reações
químicas no íntimo feminino
Fiz
muitas interrupções de gravidez e nunca recebi um
tostão por isso, para me assegurar de que estava simplesmente
garantindo o direito da mulher. Mas é extremamente difícil.
O aborto farmacológico facilita a resistência honesta
do médico, desabafou Faundes. Albertina também
falou de sua prática: Hoje mesmo duas pacientes tomaram
Cytotec. As mulheres compram, falsificado ou não, e o aborto
sempre existiu para quem tem dinheiro. (Basta lembrar as narrativas
de Nélson Rodrigues...)
Uma médica da platéia lembrou que algumas pacientes
introduziam Cytotec na vagina. Ela contou que apenas um comprimido
custa entre 70 e 100 reais e, na periferia, muitas vezes o dinheiro
do mês vai embora nessa compra. É um perigo,
podem chegar ao choque séptico, alertou. Faundes devolveu:
Ainda que o uso do Cytotec seja empírico, ele diminui
os problemas de infecção.
É a primeira vez que ouço, numa mesa, falar
de aborto, esse ato solitário. Parabéns pela coragem,
disse outra médica da platéia à coordenadora
da sessão, a ginecologista Ana Lúcia Cavalcanti, que
vai defender em novembro mestrado em Ginecologia Endócrina
na USP sobre um tema também polêmico atualmente
a terapia de reposição hormonal. Ela estudou mulheres
que sofreram histerectomia (retirada do útero) e concluiu
que a administração de estrógenos aumentou
o desejo sexual, a excitação e o orgasmo, mas o grupo
placebo, que engoliu pílulas de farinha, também sentiu
melhora. Isso resultou de muita conversa, elas viraram minhas
confidentes, comentou Ana Lúcia, fora do debate. Ela
percebeu que mulheres com boa qualidade de vida sexual antes da
menopausa cirúrgica mantiveram o grau de satisfação
com o uso de estrógenos.
E
a pílula do dia seguinte?
Por
que tantas mulheres recorrem ao abortivo Cytotec, originalmente
usado para tratamento de úlceras gástricas, se existe
a pílula do dia seguinte? Mais uma questão alheia
ao campo científico, escondida na complexa intimidade feminina.
A ginecologista Simone Diniz recordou que, já na metade dos
anos 80, usavam-se doses altas das pílulas de primeira e
segunda geração para surtir efeitos semelhantes ao
da atual contracepção de emergência. São
dois comprimidos, tomados num intervalo de 12 horas, no limite de
até 72 horas após a relação com falha
do método contraceptivo. Quanto mais cedo, mais eficiente
o resultado de evitar a maternidade involuntária e o aborto
ilegal, ponderou Simone Diniz. Faundes acrescentou que o efeito
se dá no espermatozóide e não sobre a implantação
do ovo no útero. Porém, não há consenso
sobre a atividade bioquímica da pílula do dia seguinte.
É certo que se trata de uma poderosa aliada no controle da
concepção. Existem contra-indicações,
em patologias graves pioradas pelos hormônios. Eles também
podem causar alterações menstruais, mas o fato de
permitirem uma gravidez desejada supera em muito os contras. A pílula
do dia seguinte, por ser método de emergência, de fim
de semana, quando o posto está fechado, deve estar disponível
no boteco, na banca de revista, disse Faundes.
Simone Diniz comentou: O uso da contracepção
de emergência não é neutro, pode ser solução
ou problema, dependendo do contexto. Muita gente conta que a camisinha
rompeu, mas a gente sabe que não é bem assim. A negociação
do uso da camisinha é uma escolha amorosa com o próprio
corpo.
Simone aconselhou as colegas: Vocês, que são
mães, não julguem a priori, não projetem seus
filhos nas pacientes. Atenta ao simbolismo psicológico,
ela acentua a importância de uma abordagem delicada para
abrir a caixa de Pandora que é a sexualidade, especialmente
nos adolescentes. A relação com os pais e com a violência
abre outro conjunto de complicadores. E levanta um dilema:
Como o médico que atende 20 pacientes por dia para
garantir seu sustento pode conversar a fundo?.
Eis a derradeira lição de Simone Diniz, que assim
a desenvolveu: Precisamos ver a gravidez como um trabalho
social e, da mesma forma que qualquer atividade produtiva, pode
ser visto como livre, criativo, ou escravo. As mães gozam
de direitos desde a Antigüidade os egípcios,
por exemplo, davam uma série de regalias às mulheres
no pós-parto.
Faundes reconheceu que a mulher tem sido usada nos programas de
saúde na gravidez e no puerpério. Antigamente
só existia o pré-natal, e seu único objetivo
era gerar uma criança sadia. Veio o planejamento familiar
para vencer a explosão demográfica, e mais uma vez
a mulher era um meio. O aleitamento materno se dirige à mulher
mas visa ao bem da criança.
No século 21, a mulher precisa deixar de ser objeto e tornar-se
sujeito protagonista do próprio corpo, um corpo que só
gera outro quando pleno de si.
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