O
principal tema de inclusão social se refere à
inclusão política. Em outras palavras, a emergência
dos setores populares como sujeitos políticos – condição
que nunca se verificou na sociedade brasileira – é
a única forma de reverter os processos diversos que produzem
as carências e as exclusões: saúde, lazer, cultura,
educação, habitação etc., incluindo
a melhor distribuição de renda.
O processo
de exclusão política é reflexo da ausência
da participação democrática e do controle concentrado
do poder político e econômico. A construção
de sujeitos políticos é mais duradoura do que a aprovação
de uma lei, no caso o Plano Diretor (PD), que, sem controle social,
corre o risco de não ser aplicada como acontece com toda
lei que fere interesses dos poderosos.
Como
construir sujeitos políticos na formulação
do Plano Diretor? Como superar a falta de informações
– o analfabetismo urbanístico da maioria da população
sobre a cidade com a qual ela convive cotidianamente? Como superar
as questões corporativas, pontuais e geográficas que
afetam cada comunidade para substituí-las pelas demandas
que têm dimensões pública e social? Como superar
também o corporativismo dos urbanistas que restringiram o
acesso da maioria a um debate que se fez, historicamente, hermético
e inacessível? Como fazer com que a discussão do PD
extravase o circuito restrito dos urbanistas, do mercado imobiliário
e dos moradores das áreas de uso exclusivamente residencial?
O debate
sobre São Paulo deveria fazer parte do currículo da
rede escolar municipal (em dez anos teríamos uma geração
de moradores mais informados). Deveria também ser levado
a todos os bairros, sindicatos, associações. Como
proposta prática, sugerimos que a prefeitura produza um kit
com um diagnóstico crítico dos problemas da cidade
– evidenciando o acesso desigual aos benefícios urbanos
– e treine algumas dezenas de estagiários, estudantes
universitários, para disseminar as informações
e orientar o debate para a formulação de prioridades
ou diretrizes do Plano Diretor, com ampla participação
social.
Não
há condições de detalhar aqui, não é
a finalidade destas poucas linhas, o desenvolvimento desse processo
que tem tomado formas diversas em municipalidades que buscam definir
o PD com participação democrática (Diadema,
em 1993/96 e atualmente; Angra dos Reis, 1989/92; Belém,
atualmente; Porto Alegre, 1993/96, entre outras).
De
acordo com o Estatuto da Cidade, os orçamentos municipais
anuais deverão seguir as diretrizes do Plano Diretor. Essa
proposta simples – mas difícil de implementar –
anularia na prática os poderosos lobbies que sempre atuaram
sobre os orçamentos municipais.
A partir
dessas recomendações, a primeira sugestão para
a inclusão social no texto do PD é:
1.
Definir as diretrizes do PD por meio de um amplo processo de participação
popular.
Podemos
adiantar algumas dessas prioridades indiscutíveis, baseadas
nos gritantes problemas que afetam de forma desigual a população
paulistana.
O transporte
público coletivo deve ter prioridade absoluta sobre o transporte
individual.
A prioridade
que foi dada, ao longo da história de São Paulo, ao
urbanismo rodoviarista, mesmo se sua gestão tivesse tido
uma condição mais contínua e racional, tem
sido um grande equívoco para o desenvolvimento de uma das
maiores aglomerações do mundo.
Várias
pesquisas (Metrô 87/97) mostram o fenômeno do “exílio
na periferia” (tese do professor Milton Santos), isto é,
a imobilidade que marca a vida dos moradores dos bairros periféricos,
verdadeiros depósitos de gente e também guetos de
pobreza homogênea. Quero me referir especialmente aos jovens
que dificilmente saem do bairro devido à deficiência
dos transportes. Nesses bairros não há atividades
de lazer, culturais ou esportivas. O restante da cidade é
quase inacessível. É inútil lembrar do impacto
desse fato na violência que aí se verifica e que se
espraia para toda a cidade.
Sem
detalhar mais as afirmações aqui feitas, queremos
enfatizar a segunda proposta de inclusão social:
2.
Prioridade ao transporte coletivo público, nos investimentos
e na gestão urbana, buscando levar maior mobilidade aos moradores
dos bairros periféricos.
Planos
técnicos de integração modal de transportes
na região metropolitana e município de São
Paulo não faltam, mas o setor sudoeste da cidade tem sido
privilegiado pelos investimentos.
Sem ampliar a oferta de moradias populares tanto pelo mercado privado
quanto pelo poder público não há como salvar
São Paulo da predação ambiental, da deterioração
urbana e da segregação territorial.
Atualmente
o mercado imobiliário atinge o patamar mínimo de 12
s.m., deixando sem alternativa mais de 60% da população
de São Paulo. Os diversos níveis de governo não
têm conseguido atender nem mesmo 10% da população
excluída do mercado. As conseqüências da falta
de alternativas saltam aos olhos nas várzeas inundáveis
a leste, áreas de mananciais ao sul, Serra da Cantareira
ao norte, nas beiras dos córregos e nas áreas de risco
em toda a cidade.
As
resistências para democratizar o acesso à moradia e
à cidade numa sociedade do passado recente escravocrata,
são muitas. É preciso ampliar a produção
da chamada HIS (Habitação de Interesse Social) pelos
governos, pelo mercado imobiliário, pelas cooperativas, pelas
associações e por quantos parceiros mais se apresentarem.
E é
preciso induzir e até mesmo tornar compulsória a promoção
da HIS nas áreas bem servidas de infra-estrutura urbana visando
a impedir a expansão horizontal da cidade sobre áreas
ambientalmente frágeis.
3.
O PD deve fixar claramente as áreas de aplicação
dos instrumentos do Estatuto da Cidade, que podem instituir a função
social da propriedade:
a)
utilização, edificação e parcelamentos
compulsórios, IPTU progressivo e desapropriação
com títulos da dívida pública;
b)
direito de preempção (prioridade da Prefeitura de
comprar um imóvel quando ele é posto à venda
em determinada região).
Nesse
sentido, o PD deve buscar a reversão do esvaziamento do centro
histórico de São Paulo, que apresenta 20% dos imóveis
vazios, desenvolvendo um plano específico que preveja um
mix de moradia, atraindo a classe média, mantendo os moradores
de baixa renda e ampliando a HIS.
Para
ampliação da oferta de moradias o PD deverá
remeter a medidas de racionalização dos procedimentos
municipais relacionados à HIS.
4.
Os instrumentos do Estatuto da Cidade deverão se combinar
às Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) para:
a)
ampliar a oferta de HIS;
b)
recuperar e regularizar áreas que apresentam congestionamento
habitacional e deterioração urbanística e ambiental
(cortiços, favelas e loteamentos ilegais).
O PD
deverá remeter, com prazo determinado, a um plano de urbanização
e regularização de favelas e loteamentos ilegais,
onde vivem mais de 4 milhões de paulistanos, comprometendo
em sua execução o Executivo, a Câmara Municipal
e um grupo de trabalho composto por representantes do Judiciário,
Ministério Público, Cartório de Registro de
Imóveis, governo estadual e governo municipal.
Desse
encaminhamento resultará o entendimento para a aplicação
da usucapião especial urbana, da usucapião especial
urbana coletiva e a concessão de direito especial para moradia
social (MP 2220).
Esse
plano deverá incluir projetos e despesas para a remoção
dos moradores de áreas de risco e as remoções
determinadas por obras públicas e áreas com problemas
incontornáveis de fragilidade ambiental.
Outras
medidas destinadas à produção de HIS:
* Empreendimentos
que produzirem HIS poderão ficar isentos da outorga onerosa
apesar de utilizar ampliação do potencial construtivo.
* A
outorga onerosa poderá ser paga em HIS.
* O
zoneamento deverá prever a localização de HIS
em: a) corredores de transporte coletivo, ao longo das vias férreas
e ao longo das linhas de metrô; b) nas áreas de operação
urbana; c) nas áreas industriais (considerando as características
atuais da indústria paulistana.
* Empreendimentos
de grande porte deverão contribuir, obrigatoriamente, com
uma cota de HIS no próprio projeto. Essa compulsoriedade
poderia se dar a partir de terrenos com 5.000 metros quadrados a
7.000 metros quadrados.
* A
prefeitura poderá utilizar a figura do consórcio imobiliário
(EC) para a promoção de HIS em parceria com proprietários
imobiliários, em áreas de Zeis.
Ermínia Maricato é coordenadora
do Laboratório de Habitação e Assentamento
Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP
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