São
poucos os pesquisadores que conseguem misturar rigor científico
e piadas em um mesmo contexto. Mas foi exatamente isso que o historiador
Elias Thomé Saliba fez em sua mais recente obra, Raízes
do Riso, publicada recentemente pela Companhia das Letras. São
366 páginas sobre o período que começa com
a belle époque no Brasil (década de 1880) e vai até
1940, marcado pelo nascimento do jornalismo moderno, do jornal leve,
barato, que traz informações, análises e sínteses
dos assuntos que interessam à população, seja
por meio de reportagens, artigos de opinião, crônicas
ou por meio de piadas, anedotas e charges, objeto da análise
do autor, reconhecido no meio acadêmico por seu estilo leve
e solto. É provavelmente graças a isso, entre outras
coisas, que Saliba conseguiu preservar o humor das piadas descritas,
que acabaram sendo revigoradas ao serem colocadas no seu contexto
histórico. “Além
da análise, concebi o livro para ser também uma coletânea
do humor da época”, explica. “Apesar de ter me
divertido muito, pesquisar e escrever sobre o humor brasileiro sem
perder o bom humor não foi uma tarefa muito fácil”,
diz, numa clara referência às dificuldades enfrentadas
durante suas pesquisas para coletar as piadas e os comentários
de época.
Resultado
de uma adaptação de sua tese de livre-docência,
defendida no Departamento de História da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o livro possui um
subtítulo enorme, que tem a qualidade de situar o leitor
de imediato, sem a necessidade de maiores explicações:
A representação humorística na história
brasileira: da belle époque aos primeiros tempos do rádio.
Diálogo
com as mudanças
Entre
os motivos que o levaram à escolha do tema e do período
se destaca o fato, segundo o historiador, de essa época ter
sido de transição, com a abolição da
escravatura, da passagem da Monarquia para a República, colocando
definitivamente o poder nas mãos dos cafeicultores, e do
surgimento de um forte discurso nacionalista, voltado para a criação
de uma identidade nacional brasileira em que todos, de qualquer
Estado da nação, conseguissem se encontrar, diminuindo
os conflitos internos, tão presentes no período anterior.
“O humor brota exatamente do contraste, estranheza e da criação
de novos significados e linguagens, numa tentativa constante de
compreender as transformações sociais”, afirma
Saliba. “Quando ocorrem mudanças muito rápidas,
as pessoas perdem as referências simbólicas, o que
favorece o deslocamento de significados que dá origem às
piadas.”
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O brasileiro
perplexo e assustado diante do desafio de escolher a “verdadeira”
interpretação da sua realidade |
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Assembléia
de animais debatendo sobre o perigo de se tornar o jogo do
bicho uma atividade legal |
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Caricatura de Olavo Bilac,
publicada em 1915, por ocasião de sua campanha em defesa
da nossa nacionalidade |
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A obra
é dividida em um prólogo, quatro capítulos
e um epílogo. Na primeira parte encontramos a apresentação
dos conceitos utilizados por Saliba e a discussão do que
era considerado humor na belle époque – período
visto com otimismo em muitos países, marcado pela euforia
gerada pelos avanços do processo de industrialização
e urbanização – e suas relações
com o discurso nacionalista. Há ali também a discussão
de uma questão que se faz presente no nosso dia-a-dia: “Por
que o Brasil é o país da piada pronta?”, também
expressa na frase “Brasileiro faz piada de tudo!”, que
reflete a idéia de que nossa realidade é tão
inusitada que por si só ela já é uma grande
piada, sentimento que vem do fato, segundo o pesquisador, de que
a sociedade tem mudado, nas últimas décadas, com uma
velocidade muito grande, levando a esse constante sentimento de
fluidez e busca de novos sentidos por meio da instrumentalização
do humor. “As formas de representação social
na história brasileira são muito efêmeras, o
que explica por que as duas formas mais convencionais de se representar
o País são o futebol e o carnaval.”
Cabe
lembrar que, somente no século 20, a explosão demográfica
brasileira foi da ordem de 800%, com a população saltando
de algo em torno de 21 milhões para os atuais 170 milhões
de brasileiros. Segundo o secretário de Economia e Planejamento
do Estado de São Paulo, Jacques Marcovitch, a cada vinte
e cinco anos o Brasil foi reconstruído, o que deixa claro
os desafios que o País enfrenta, incluindo as constantes
tentativas de interpretação dessa realidade.
Seja
como for, a análise reproduzida por Saliba do mais famoso
humorista dessa época, Aparício Torelly, mais conhecido
como Barão de Itararé, sobre as origens do humor brasileiro,
é bastante ilustrativa: “Se não há contraste
é porque o humor está para o brasileiro assim como
o camelo estava para Maomé: faz parte da vida, portanto é
indistinguível”.
O primeiro
capítulo traz um mapa das primeiras piadas publicadas pela
imprensa brasileira, com ênfase para as do fim da Monarquia
e início da República, baseadas na exploração
dos conflitos e rixas políticas e dos rancores pessoais.
“O mais interessante dessa produção é
que, embora a chacota seja dirigida contra algo ou alguém,
há sempre alguns momentos nos quais seus autores parecem
perder o controle, o que permite desnudar aspectos ou elementos
coletivos da sociedade”, afirma Saliba. “Trata-se do
humor da ‘ilusão republicana’, que tinha como
objetivos explícitos fustigar o regime monárquico,
tendo sido elaborado por intelectuais que se engajaram no jornalismo
abolicionista e republicano”, conta. “Essa produção
foi relativamente vasta, sobretudo na última década
da Monarquia, e dirigiu-se, particularmente com a produção
visual de Ângelo Agostini, à figura do imperador e
ao seu poder pessoal.”
Além
das piadas, Saliba recupera a memória dos nossos primeiros
humoristas, incluindo alguns empresários do setor, como os
irmãos Laemmert, alemães que desde o início
do governo de Pedro II (1848) já se destacavam pelo seu pioneirismo
na indústria gráfica e na edição de
livros. Sob o pseudônimo de Pafúncio Semicúpio
Pechincha, Eduardo Laemmert lança a Encyclopedia do Riso
e da Galhofa, que foi publicada em fascículos e, depois,
reunida em dois grandes volumes. “Trata-se de um registro
sem igual, nos moldes das revistas humorísticas internacionais
do século 19”, conta. “Casou-se com uma brasileira
e aprendeu o suficiente da língua para se tornar escritor.
Sua editora ficou famosa pela edição de inúmeros
escritores importantes, mas se destacou sobretudo pela publicação,
iniciada em 1839, da Folhinha Laemmert, que se transforma, em 1844,
no conhecido Almanak Laemmert.”
Segundo
o pesquisador, a utilização de pseudônimos pelos
humoristas brasileiros era muito comum e, normalmente, não
tinha relação direta com as piadas, mas sim com o
fato de que, na época, esses profissionais não eram
reconhecidos socialmente como escritores, o que os movia a adotar
outros nomes para não desgastar os originais, de batismo.
Quando cotados ou eleitos para a Academia Brasileira de Letras,
diminuíam a importância do humor na sua trajetória,
sendo que alguns até renegaram suas obras satíricas,
transformando-se no que Saliba chama de “engraçados
arrependidos”. Por essa situação passaram Manuel
Bastos Tigre, também compositor, jornalista, poeta e autor
do primeiro disco publicitário do Brasil, Chopp da Brahma
– em parceria com Ary Barroso e gravado pelo iniciante Orlando
Silva em 1935 –, que nunca conseguiu se tornar um imortal,
e Humberto de Campos, eleito em 1920 para suceder a Emílio
de Menezes, que somente conseguiu ser aceito após a morte
de Machado de Assis (1908), que detestava seu caráter boêmio
e sua figura de satírico e humorista desleixado. “Emílio
conseguiu entrar para a academia mas, ainda assim, sua entrada foi
traumática: seu discurso de posse foi várias vezes
recusado ou devolvido, com censuras em algumas partes e acréscimos
em outras. Analisado mais demoradamente, o texto original do seu
discurso de posse parece constituir, para nós, o paradigma
do engraçado arrependido.”
Uma
das figuras recorrentes na obra também é o poeta Olavo
Bilac, na época um jovem humorista que utilizava o pseudônimo
Puff, escrevendo em parceria com Guimarães Passos (Puck)
versos satíricos sobre a cidadania eleitoral e as instituições
republicanas, com pitadas pornográficas e extravagantes,
publicados no livro Pimentões, posteriormente desprezado
por ambos como versos marginais, apesar de Guimarães Passos
ter continuado sua produção de versos cômicos
em suas colunas de jornais, notadamente na Gazeta de Notícias,
de Juó Bananére
O segundo capítulo é dedicado aos humoristas do Rio
de Janeiro, às piadas criadas a partir da desilusão
com os rumos da República, ao começo do mercado publicitário,
com anúncios feitos pelos humoristas, que também estavam
ligados ao desenvolvimento do teatro de revista e da sua linguagem,
marcada pela utilização de músicas e danças
carnavalescas, numa constante busca pelo tipo nacional, e ao estudo
das identidades desses profissionais.
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Capa da revista
Fon Fon satirizando a República: A Monarquia –
Não é por falar
mal, mas com franqueza... eu esperava outra coisa. A República
– Eu também! |
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Caricatura
publicada no O Pirralho mostra miserável que se auto-analisa
em sua situação de fome crônica e total
ausência de perspectivas |
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O terceiro
mostra o humor produzido em São Paulo, cidade cosmopolita
que entra, nessa época, em um processo de desenvolvimento
muito intenso, com forte presença de imigrantes, principalmente
italianos, sintetizada na análise da trajetória, segundo
Saliba, do macarronismo ítalo-caipira de Juó Bananére,
pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, que, quando estreou
no humorismo, ainda era um estudante de Engenharia da Escola Politécnica.
Nos anos 20 ele era considerado por muitos, incluindo o escritor
Antônio de Alcântara Machado, como o cronista mais popular
da cidade de São Paulo. “A deformação
lingüística de Bananére imitava o falante não
letrado, brasileiro ou italiano, que deturpava as palavras porque
lhe faltava a memória escrita”, afirma Saliba, que
acredita que a popularidade do humorista tinha origem exatamente
nessa aproximação do linguajar do homem comum, do
povo, que, paradoxalmente, é o que atualmente dificulta o
entendimento de sua obra, devido ao distanciamento do tempo.
No
último capítulo o historiador analisa a passagem do
humor da linguagem escrita para a linguagem falada do rádio,
e logo em seguida sua utilização na indústria
fonográfica e no cinema dos anos 30. Há uma tabela
onde se pode ver o nome dos primeiros humoristas, sua formação
e programas e uma parte onde a obra do Barão de Itararé
é revista. Para Saliba, todos os recursos empregados pelos
humoristas da belle époque podem ser encontrados na produção
de Aparício Torelly. “Qualquer que seja a resposta,
a representação humorística do mundo e da vida
parece de tal forma entranhada na cultura brasileira que o riso
jamais se esgotará”, afirma. “Porque o brasileiro
rirá sempre, mas no dia em que sua história mudar,
eliminando as raízes dessa ética emotiva que o aprisiona
ao passado, serão outros os móveis do seu riso.”
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