Hermes da Fonseca, Lauro Muller, Nilo Peçanha e Rui Barbosa comemoram o dia da República mostrando a desilusão como o novo regime
 

 
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Anúncio publicitário onde o nome do humorista
que o criou aparece, conferindo autoria ao trabalho
Um dos raros exemplares da Encyclopedia do Riso,
salvo de um incêndio que
destruiu a Livraria Laemmert
Livro de versos satíricos de Guimarães Passos (Puck) e Olavo Bilac (Puff), depois desprezado por ambos
Representação do mundo do teatro de revista feita por Di Cavalcanti em 1929

 

São poucos os pesquisadores que conseguem misturar rigor científico e piadas em um mesmo contexto. Mas foi exatamente isso que o historiador Elias Thomé Saliba fez em sua mais recente obra, Raízes do Riso, publicada recentemente pela Companhia das Letras. São 366 páginas sobre o período que começa com a belle époque no Brasil (década de 1880) e vai até 1940, marcado pelo nascimento do jornalismo moderno, do jornal leve, barato, que traz informações, análises e sínteses dos assuntos que interessam à população, seja por meio de reportagens, artigos de opinião, crônicas ou por meio de piadas, anedotas e charges, objeto da análise do autor, reconhecido no meio acadêmico por seu estilo leve e solto. É provavelmente graças a isso, entre outras coisas, que Saliba conseguiu preservar o humor das piadas descritas, que acabaram sendo revigoradas ao serem colocadas no seu contexto histórico. “Além da análise, concebi o livro para ser também uma coletânea do humor da época”, explica. “Apesar de ter me divertido muito, pesquisar e escrever sobre o humor brasileiro sem perder o bom humor não foi uma tarefa muito fácil”, diz, numa clara referência às dificuldades enfrentadas durante suas pesquisas para coletar as piadas e os comentários de época.

Resultado de uma adaptação de sua tese de livre-docência, defendida no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o livro possui um subtítulo enorme, que tem a qualidade de situar o leitor de imediato, sem a necessidade de maiores explicações: A representação humorística na história brasileira: da belle époque aos primeiros tempos do rádio.

Diálogo com as mudanças

Entre os motivos que o levaram à escolha do tema e do período se destaca o fato, segundo o historiador, de essa época ter sido de transição, com a abolição da escravatura, da passagem da Monarquia para a República, colocando definitivamente o poder nas mãos dos cafeicultores, e do surgimento de um forte discurso nacionalista, voltado para a criação de uma identidade nacional brasileira em que todos, de qualquer Estado da nação, conseguissem se encontrar, diminuindo os conflitos internos, tão presentes no período anterior. “O humor brota exatamente do contraste, estranheza e da criação de novos significados e linguagens, numa tentativa constante de compreender as transformações sociais”, afirma Saliba. “Quando ocorrem mudanças muito rápidas, as pessoas perdem as referências simbólicas, o que favorece o deslocamento de significados que dá origem às piadas.”

 
O brasileiro perplexo e assustado diante do desafio de escolher a “verdadeira” interpretação da sua realidade
   
Assembléia de animais debatendo sobre o perigo de se tornar o jogo do bicho uma atividade legal
   
Caricatura de Olavo Bilac, publicada em 1915, por ocasião de sua campanha em defesa da nossa nacionalidade
 

A obra é dividida em um prólogo, quatro capítulos e um epílogo. Na primeira parte encontramos a apresentação dos conceitos utilizados por Saliba e a discussão do que era considerado humor na belle époque – período visto com otimismo em muitos países, marcado pela euforia gerada pelos avanços do processo de industrialização e urbanização – e suas relações com o discurso nacionalista. Há ali também a discussão de uma questão que se faz presente no nosso dia-a-dia: “Por que o Brasil é o país da piada pronta?”, também expressa na frase “Brasileiro faz piada de tudo!”, que reflete a idéia de que nossa realidade é tão inusitada que por si só ela já é uma grande piada, sentimento que vem do fato, segundo o pesquisador, de que a sociedade tem mudado, nas últimas décadas, com uma velocidade muito grande, levando a esse constante sentimento de fluidez e busca de novos sentidos por meio da instrumentalização do humor. “As formas de representação social na história brasileira são muito efêmeras, o que explica por que as duas formas mais convencionais de se representar o País são o futebol e o carnaval.”

Cabe lembrar que, somente no século 20, a explosão demográfica brasileira foi da ordem de 800%, com a população saltando de algo em torno de 21 milhões para os atuais 170 milhões de brasileiros. Segundo o secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo, Jacques Marcovitch, a cada vinte e cinco anos o Brasil foi reconstruído, o que deixa claro os desafios que o País enfrenta, incluindo as constantes tentativas de interpretação dessa realidade.

Seja como for, a análise reproduzida por Saliba do mais famoso humorista dessa época, Aparício Torelly, mais conhecido como Barão de Itararé, sobre as origens do humor brasileiro, é bastante ilustrativa: “Se não há contraste é porque o humor está para o brasileiro assim como o camelo estava para Maomé: faz parte da vida, portanto é indistinguível”.

O primeiro capítulo traz um mapa das primeiras piadas publicadas pela imprensa brasileira, com ênfase para as do fim da Monarquia e início da República, baseadas na exploração dos conflitos e rixas políticas e dos rancores pessoais. “O mais interessante dessa produção é que, embora a chacota seja dirigida contra algo ou alguém, há sempre alguns momentos nos quais seus autores parecem perder o controle, o que permite desnudar aspectos ou elementos coletivos da sociedade”, afirma Saliba. “Trata-se do humor da ‘ilusão republicana’, que tinha como objetivos explícitos fustigar o regime monárquico, tendo sido elaborado por intelectuais que se engajaram no jornalismo abolicionista e republicano”, conta. “Essa produção foi relativamente vasta, sobretudo na última década da Monarquia, e dirigiu-se, particularmente com a produção visual de Ângelo Agostini, à figura do imperador e ao seu poder pessoal.”

Além das piadas, Saliba recupera a memória dos nossos primeiros humoristas, incluindo alguns empresários do setor, como os irmãos Laemmert, alemães que desde o início do governo de Pedro II (1848) já se destacavam pelo seu pioneirismo na indústria gráfica e na edição de livros. Sob o pseudônimo de Pafúncio Semicúpio Pechincha, Eduardo Laemmert lança a Encyclopedia do Riso e da Galhofa, que foi publicada em fascículos e, depois, reunida em dois grandes volumes. “Trata-se de um registro sem igual, nos moldes das revistas humorísticas internacionais do século 19”, conta. “Casou-se com uma brasileira e aprendeu o suficiente da língua para se tornar escritor. Sua editora ficou famosa pela edição de inúmeros escritores importantes, mas se destacou sobretudo pela publicação, iniciada em 1839, da Folhinha Laemmert, que se transforma, em 1844, no conhecido Almanak Laemmert.”

Segundo o pesquisador, a utilização de pseudônimos pelos humoristas brasileiros era muito comum e, normalmente, não tinha relação direta com as piadas, mas sim com o fato de que, na época, esses profissionais não eram reconhecidos socialmente como escritores, o que os movia a adotar outros nomes para não desgastar os originais, de batismo. Quando cotados ou eleitos para a Academia Brasileira de Letras, diminuíam a importância do humor na sua trajetória, sendo que alguns até renegaram suas obras satíricas, transformando-se no que Saliba chama de “engraçados arrependidos”. Por essa situação passaram Manuel Bastos Tigre, também compositor, jornalista, poeta e autor do primeiro disco publicitário do Brasil, Chopp da Brahma – em parceria com Ary Barroso e gravado pelo iniciante Orlando Silva em 1935 –, que nunca conseguiu se tornar um imortal, e Humberto de Campos, eleito em 1920 para suceder a Emílio de Menezes, que somente conseguiu ser aceito após a morte de Machado de Assis (1908), que detestava seu caráter boêmio e sua figura de satírico e humorista desleixado. “Emílio conseguiu entrar para a academia mas, ainda assim, sua entrada foi traumática: seu discurso de posse foi várias vezes recusado ou devolvido, com censuras em algumas partes e acréscimos em outras. Analisado mais demoradamente, o texto original do seu discurso de posse parece constituir, para nós, o paradigma do engraçado arrependido.”

Uma das figuras recorrentes na obra também é o poeta Olavo Bilac, na época um jovem humorista que utilizava o pseudônimo Puff, escrevendo em parceria com Guimarães Passos (Puck) versos satíricos sobre a cidadania eleitoral e as instituições republicanas, com pitadas pornográficas e extravagantes, publicados no livro Pimentões, posteriormente desprezado por ambos como versos marginais, apesar de Guimarães Passos ter continuado sua produção de versos cômicos em suas colunas de jornais, notadamente na Gazeta de Notícias, de Juó Bananére
O segundo capítulo é dedicado aos humoristas do Rio de Janeiro, às piadas criadas a partir da desilusão com os rumos da República, ao começo do mercado publicitário, com anúncios feitos pelos humoristas, que também estavam ligados ao desenvolvimento do teatro de revista e da sua linguagem, marcada pela utilização de músicas e danças carnavalescas, numa constante busca pelo tipo nacional, e ao estudo das identidades desses profissionais.

 
Capa da revista Fon Fon satirizando a República: A Monarquia – Não é por falar
mal, mas com franqueza... eu esperava outra coisa. A República – Eu também!
   
Caricatura publicada no O Pirralho mostra miserável que se auto-analisa em sua situação de fome crônica e total ausência de perspectivas
 

O terceiro mostra o humor produzido em São Paulo, cidade cosmopolita que entra, nessa época, em um processo de desenvolvimento muito intenso, com forte presença de imigrantes, principalmente italianos, sintetizada na análise da trajetória, segundo Saliba, do macarronismo ítalo-caipira de Juó Bananére, pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, que, quando estreou no humorismo, ainda era um estudante de Engenharia da Escola Politécnica. Nos anos 20 ele era considerado por muitos, incluindo o escritor Antônio de Alcântara Machado, como o cronista mais popular da cidade de São Paulo. “A deformação lingüística de Bananére imitava o falante não letrado, brasileiro ou italiano, que deturpava as palavras porque lhe faltava a memória escrita”, afirma Saliba, que acredita que a popularidade do humorista tinha origem exatamente nessa aproximação do linguajar do homem comum, do povo, que, paradoxalmente, é o que atualmente dificulta o entendimento de sua obra, devido ao distanciamento do tempo.

No último capítulo o historiador analisa a passagem do humor da linguagem escrita para a linguagem falada do rádio, e logo em seguida sua utilização na indústria fonográfica e no cinema dos anos 30. Há uma tabela onde se pode ver o nome dos primeiros humoristas, sua formação e programas e uma parte onde a obra do Barão de Itararé é revista. Para Saliba, todos os recursos empregados pelos humoristas da belle époque podem ser encontrados na produção de Aparício Torelly. “Qualquer que seja a resposta, a representação humorística do mundo e da vida parece de tal forma entranhada na cultura brasileira que o riso jamais se esgotará”, afirma. “Porque o brasileiro rirá sempre, mas no dia em que sua história mudar, eliminando as raízes dessa ética emotiva que o aprisiona ao passado, serão outros os móveis do seu riso.”

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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