PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  
 
  
 
Mulher catando alimento no lixo expressa a realidade de 23 milhões de brasileiros que vivem em situação de indigência, ou extrema pobreza

Já dizia o pioneiro Josué de Castro, autor de livros transformados em marco para o estudo da pobreza no Brasil (Geografia da Fome, 1946; Geopolítica da Fome, 1951): “metade da população brasileira não dorme porque tem fome; a outra metade não dorme porque tem medo de quem está com fome”. Esta realidade continua atual como nunca. A concentração de renda permanece estagnada desde os anos 70; os 10% mais ricos se apropriam da renda dos 50% mais pobres e os 50% mais pobres ficam com cerca de 10% da renda do País. Especialmente nas últimas semanas, o assunto virou vedete na imprensa, provocando discussões quentes entre acadêmicos e toda a sociedade civil desde o anúncio da prioridade número um do novo governo: erradicar a fome no Brasil com a criação de uma política integrada de segurança alimentar.

O principal alvo das críticas gira em torno da forma como se pretende aplicar o programa Fome Zero, menina dos olhos do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. A política integrada de erradicação da fome constitui-se de uma série de instrumentos, incluindo a manutenção de alguns programas da administração FHC, como o Renda Mínima e o Bolsa-Escola. Mas é a extinção do incêndio, ou seja, a estratégia emergencial (aí entra o chamado Cupom Alimentação) para atender de imediato os mais carentes, que vem sendo atacada.

Criticados pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP), pelo candidato derrotado à Presidência, Antony Garotinho, e por uma série de especialistas, os cupons vêm sendo considerados um retrocesso por vários motivos, um deles vinculado à questão ética. Ao distribuir benefícios em dinheiro, como ocorre atualmente, a autonomia dos indivíduos é preservada, pois é possível exercer o poder de escolha no momento da compra. Ao contrário, a pessoa tem sua autonomia restringida ao receber o benefício na forma de alimentos e artigos predeterminados. Além disso, tal prática traz à memória resquícios de clientelismo aplicado à política brasileira e que nada serviu para acabar com a fome no País. Há ainda o aspecto comercial. O comércio local pode ser dinamizado com a introdução de moeda circulante. Outro ponto vulnerável associado aos cupons é que esses poderão ser utilizados como moeda paralela, como já virou costume com vales-transporte e alimentação.

Para o professor Carlos Augusto Monteiro, do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública, a introdução do Cupom Alimentação “não faz nenhum sentido”, ao menos do ponto de vista epidemiológico (a fome no Brasil pode ser vista como epidemia, já que 23 milhões são considerados indigentes, ou seja, estão na linha de extrema pobreza e não têm acesso regular ao alimento). Como medida emergencial, o professor acredita que seja muito mais viável a distribuição direta de renda, a exemplo de programas como o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação. “A distribuição direta de renda faz muito mais sentido. O Cupom Alimentação foi inspirado nos food stamps, inventados para o escoamento de produtos agrícolas nos Estados Unidos”, diz (leia texto de Monteiro na pág 2).

Mas é justamente a possibilidade de mobilizar redes locais e regionais de mercados e incentivar a agricultura familiar os pontos ressaltados pelo PT no que diz respeito à utilização do Cupom Alimentação. Disponível no site do partido, o programa Fome Zero foi lançado no Senado Federal pelo Instituto Cidadania no Dia Mundial da Alimentação, 16 de outubro último. Foi elaborado pelo coordenador da campanha de Lula, o economista José Graziano da Silva, a partir de uma série de consultas realizadas na sociedade civil e a especialistas das mais diversas áreas. Traz o documento: “Para combater a fome, não podemos nos limitar às doações, bolsas e caridade. É possível erradicar a fome por meio de ações integradas que aliviem as condições de miséria. Articuladas com uma política econômica que garanta uma expansão do Produto Interno Bruto de, pelo menos, 4% ao ano, esse objetivo pode ser conseguido em até uma geração”.

Segurança alimentar

Resquício das estruturas herdadas do colonialismo, fruto da dinâmica de produção concentradora de renda, reflexo de políticas governamentais geradoras de injustiças sociais, a fome é o estigma do subdesenvolvimento. Está no Brasil há muitas décadas e começou a ser estudada de forma sistematizada por Josué de Castro nos anos 30. O termo segurança alimentar, introduzido por Castro, chegou às esferas governamentais a partir da década de 80. Em 1986, a partir da I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, o conceito superou a idéia de produção agrícola e abastecimento alimentar, englobando também a noção de acesso a alimentos, carências nutricionais e qualidade dos bens alimentares.
A década de 90 foi, sem dúvida, um marco na busca pela segurança alimentar, impulsionada especialmente pela sociedade civil e organizações não-governamentais. A idéia de um conselho nacional de segurança alimentar, anunciada recentemente por Lula, já existia por volta de 1992, mas não sensibilizou os governos de Fernando Collor de Mello (90-92) e de Itamar Franco (92-94). O Movimento pela Ética na Política –fator social primordial no processo de impeachment do presidente Fernando Collor– deflagrou a campanha Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, comandada por Betinho.

A partir de 1998, o Brasil passou a ter papel importante na elaboração de propostas internacionais para a defesa dos direitos humanos e isso acabou refletindo na criação de uma nova política alimentar e nutricional no País. “Foi a primeira vez que a política alimentar passou a ser elaborada dentro das perspectivas dos direitos humanos”, afirma o médico Flávio Luiz Schieck Valente, Relator Nacional do Direito Humano à Alimentação Adequada para a Organização das Nações Unidas e o governo brasileiro. Valente trabalhou com Betinho, d. Mauro Morelli e Lula na campanha contra a fome e está lançando pela Editora Cortez o livro Direito Humano à Alimentação-Desafios e Conquistas (leia mais na página seguinte).

De acordo com Valente, a desnutrição infantil no País caiu cerca de 30% nos últimos 10 anos e este talvez tenha sido o principal avanço no campo nutricional. Mas aquela porcentagem pode não significar, necessariamente, uma redução em números absolutos, ressalta. Além disso, a situação de miséria e pobreza permaneceu quase inalterada ao longo de 20 anos. Segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 1977, 50% da população estava entre os mais pobres, 40% estava acima da linha de pobreza e apenas 10% eram os mais ricos. Em 1999, a situação permaneceu praticamente a mesma.

Em números absolutos, estudo recente do Ipea mostra que o País possui cerca de 54 milhões de pobres e 23 milhões de indigentes. “Isso significa que 54 milhões de brasileiros estão em condições de insegurança alimentar e 23 milhões não podem comprar a cesta alimentar mínima”, diz Valente. “Portanto, em relação à fome, não houve avanços significativos”, afirma.

O programa Fome Zero do PT considera que 44 milhões de pessoas vivem em estado de pobreza em relação ao consumo. “O número difere do corte de pobreza utilizado pelo Ipea por questões consideradas técnicas”, explica Valente. O PT utiliza o padrão internacional calculado pela ONU, que estabelece US$ 1 por pessoa para o patamar de indigência e US$ 2 para pobreza, “o que no Brasil pode ser traduzido como algo em torno de R$ 40,00 mensais para indigentes e R$ 80,00 mensais para pobres”, afirma Valente.

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]