Ainda
é tempo de se falar de Cora Coralina? Não a conheci
quando de sua longa passagem, 45 anos, pelo interior de São
Paulo: contemplei apenas o seu lugar de entusiasmo poético
– o que não é a mesma coisa – em recente
viagem pela cidade de Goiás e pela Casa Velha da Ponte, primeira
e última de suas residências. Com uma câmera
Nikon a tiracolo, comecei capturando imagens fotográficas
em preto-e-branco do espaço público dentro de um espírito
de reencontro, buscando simultaneamente desconstruir meu olhar paulistano
– não por acaso, Goiás encontra-se no centro
geográfico do Brasil.
A primeira
coincidência histórica da terra natal de Cora: a arquitetura
goiana adaptou a técnica construtiva paulista às condições
ecológicas da região – o ciclo da mineração
havia impelido o homem do litoral para o interior do País.
Goiás foi a única capital de província, fundada
por bandeirantes, que se mantém inalterada até hoje.
Anhangüera batizou-a como Arraial de Sant’Anna em 1727.
Naquela época o atual Estado de Goiás pertencia ao
Estado de São Paulo, tornando-se autônomo em 1749,
quando já possuía a cidade de Goiás como capital,
então chamada de Vila Boa de Goyaz. O declínio do
ciclo do ouro e as dificuldades de acesso colaboraram para a conservação
da rara arquitetura originária do barroco português,
conhecida como “vernacular” pela simplicidade de suas
linhas.
Nas
imagens do fotógrafo carioca Militão Augusto Azevedo,
que produziu o Álbum Comparativo de vistas da cidade de São
Paulo (1862-1887), há fotografias atestando a semelhança
entre as arquiteturas das cidades de São Paulo antiga e Goiás.
Constatei pelas fotografias de Militão, por exemplo, a semelhança
arquitetônica entre o extinto Mercado Municipal de São
Paulo (rua 25 de Março) e o atual Mercado Municipal de Goiás.
Essa relação foi fator determinante na concepção
do projeto para a cidade de Goiás receber o título
de Patrimônio Histórico da Humanidade, outorgado pela
Unesco em 13 de dezembro de 2001. Graças ao apoio da população,
já que a comunidade é a melhor guardiã dos
seus valores culturais, Goiás respondeu às outras
exigências da Unesco, como a instalação subterrânea
de fiações elétricas e telefônicas e
a criação de sistemas de distribuição
de água e esgoto.
A cidade
de Goiás foi fonte de inspiração para Cora
Coralina contar suas histórias. A poetisa, identificando-se
com realidades humanas, enfocou a dinâmica das pessoas tendo
como pano de fundo o lugar público. Com um olhar atento,
Cora narrou a ação do homem na imprevisibilidade do
cotidiano e rebateu, para o jogo das palavras, a visibilidade da
organização estética das construções
urbanas. “Em Goiás, o conjunto arquitetônico
está dentro de uma escala humana”, afirma Edinéa
Ângelo, diretora local do Iphan (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional).
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A
narrativa de Cora Coralina simboliza a cultura do homem do interior.
Para ela, Goiás tornou-se o lugar onde as ruas adquiriam
significados próprios |
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Ana
Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889-1985), ou simplesmente
Cora Coralina – pseudônimo que ela adotou aos 14 anos
–, possui como significado literal o termo “coração
vermelho”. Filha de desembargador, Cora tentou se desvencilhar
dos preconceitos da cultura da época, que destinava o lar
para as mulheres. Apenas aos 75 anos de idade conseguiu lançar
seu primeiro livro. Mas, com quase 90 anos, sua obra chegaria às
mãos de Carlos Drummond de Andrade, responsável por
sua apresentação ao público leitor brasileiro.
“Admiro e amo você como a alguém que vive em
estado de graça com a poesia”, escreveu Drummond a
Cora em 1979.
Observatório doméstico
A narrativa
da poetisa simboliza a cultura do homem que habitou o coração
do continente. Uma de suas fortes características: vivenciou
tudo o que narrou. De seu observatório doméstico Cora
admirou o pequeno mundo da cidade. Para ela, Goiás tornou-se
o lugar onde as coisas aconteciam e as ruas adquiriam significados
próprios: “Goiás, minha cidade. Eu sou aquela
amorosa de tuas ruas estreitas, curtas, indecisas, entrando, saindo
uma das outras. Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa. Eu sou
Aninha”. Importante ressaltar que Cora não se filiou
a nenhuma corrente literária, mas sempre foi espectadora
da gente simples dialogando com a espontaneidade da vida. Recontou
estilos de vida, inquietações humanas, discriminações
da mulher – universos psicológicos que fizeram a vida
interiorana do início do século 20. A autora captou
atores sociais, principalmente mulheres portadoras de novas práticas
e idéias. Sua munição revolucionária
foi a criatividade; sua poesia, a arma (leia abaixo o conto “Miquita”,
de Cora Coralina).
Becos
e bicas, alpendres, janelas de rótulas, coronéis,
mestres-de-guia, beatas e prostitutas embebem tempos e espaços,
ou melhor, as experiências do cruzamento entre passado e presente
precipitam, por assim dizer, tanto nos gestos efêmeros da
vida cotidiana como na mais sólida arquitetura. Ressalto:
sólida porém vulnerável. E, de fato, geograficamente
a cidade de Goiás foi delineada em uma área de risco.
Propensa para a fúria das águas, a topografia da região
facilita o recebimento de todo o volume de chuva das redondezas,
por mais que se mantenham práticas ecológicas como,
por exemplo, o leito do Rio Vermelho limpo e a não-impermeabilização
do solo ou desmatamento.
A cidade
de Goiás ainda convive com as marcas da destruição
após as enchentes do Rio Vermelho, em 31 de dezembro de 2001,
apenas dezoito dias depois do tombamento da cidade. A estrutura
da Casa Velha da Ponte, local do Museu Casa de Cora Coralina, manteve-se
intacta. A parte física que foi danificada (móveis,
piso, muro) já foi restaurada, dando possibilidade a uma
nova concepção museológica. “Baseados
nas novas normas do Conselho Internacional de Museus, agora vamos
passar a valorizar a personalidade que habitou a Casa da Ponte”,
afirma Marlene Velasco, presidente da Fundação Casa
de Cora Coralina, que aproveitou as destruições pelas
enchentes para coordenar as restaurações e renovar
o conceito museológico da Casa de Cora Coralina.
A partir
da reforma, os objetos pessoais de Cora estarão mais em evidência,
como os seus manuscritos, a mobília original, as suas máquinas
de datilografia e de costura, os registros fotográficos em
vida e os prêmios – dentre eles, o Troféu Juca
Pato e o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal
de Goiás. Além disso, a boa-nova está sendo
a recuperação das hortas e das árvores do grande
quintal (resedá, mangueira, cuité, jabuticabeira,
guariroba, jaqueira, laranja-da-terra, cajazinha), que agora já
podem saltar das poesias de Cora para o seu jardim. E da biquinha
d’água que, ainda cristalina, reflui no porão
da Casa Velha.
Como
numa imagem premonitória das últimas enchentes, a
escritora antecipou nos seus autos do passado a sempre determinada
resistência da Casa Velha da Ponte: “Andei por mundos
ignotos e cavalguei o corcel branco do sonho. Pobre, vestida de
cabelos brancos, voltei à velha Casa da Ponte, barco centenário
encalhado no Rio Vermelho, contemporânea do Brasil Colônia,
de monarcas e adventos. Ancorada na ponte, não quiseste partir
rio abaixo, agarrada às pedras. Nem mesmo o rio pôde
te arrastar, raivoso, transbordante, lavando tuas raízes
profundas a cada cheia bravia, velha casa de tantos que se foram”.
Atílio Avancini é professor do Departamento de Jornalismo
e Editoração da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP
Miquita
Cora
Coralina
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No
conto abaixo, publicado no livro Estórias da Casa Velha da
Ponte (Editora Global, 2001), Cora Coralina retrata de forma singela
e emocionanate um pouco da vida e dos habitantes do interior brasileiro.
Miquita
foi moça como toda moça. Contou seus 15 anos como
toda jovem. Era parda. Nem preta, nem morena, nem mulata; de pele
manchada. Seca, sem ancas; de pernas compridas, canela fina e jeito
de boneca de pano malfeita – sem sal e desajeitada.
Nem por tantos negativos da natureza, deixou de achar quem a quisesse.
Casou-se mesmo, de palma e capela, que a mãe era lavadeira
e caprichava com a filha. Tempos depois, o marido a largava sem
dizer nada, abria pé no mundo e nunca deu ligação.
Miquita, nova e sozinha, da beira do rio, onde passara a morar com
a mãe, que aquela vida de bater roupa nas pedras não
era de gente moça, resvalou para o beco onde abriu porta.
Sempre de pele sarapintada, corpo andrógino de boneca de
pano, sem sal e sem jeito, resvalou ainda mais – que o ofício
não dava a ela nem para o aluguel do quarto sujo.
Jogou fora os sapatos cambados. Vestiu uns por cima dos outros,
os três vestidos repuxados que possuía. Ajeitou a rodinha.
Botou pote na cabeça e passou a carregar água, da
Carioca para a casa de uns e de outros. Trabalho mal pago, embora
sempre lhe dava sobra de almoço e de jantar, canto para dormir
e um ou outro cruzeiro para cigarro e pinga – seu maior prazer.
Ia vivendo a Miquita. Pedregulho das ruas não lhe doíam
nos pés. Distância da Carioca ao Largo do Chafariz
nada era. Sempre seca, sorridente, calada... Era curtinha de prosa
e, para dizer verdade, curta era sua pinga, sempre certa. Não
caía nem se alterava. Ficava firme e puxava água.
Lata vai, pote vem, coitezinho nadando em cima, todo dia... De vez
em quando, Miquita suspirava... Tinha uma saudade calada do beco
triste, do quarto sujo e dos homens brutais que a espancavam.
Um dia, ganhou de uma dona, de quem vasculhava a casa e arrumava
os trens de mudança, um vestido usado de arrasto, de seda
ramada, uma bolsa amassada de alça comprida, um par de sapatos
deformados de salto Luís XV, muita ramona, um resto de batom
e cinco cruzeiros.
Miquita, dona de tanta coisa bonita, pensou numa pinga dobrada.
Daí sentiu mais apertadas as saudades do beco sujo, da macheza
dos homens brutais que a espancavam. Resolveu por uma latinha de
pó-de-arroz Lady.
De noite, vestiu o vestido ramado se arrastando por cima dos outros,
que sempre trazia no corpo. Calçou umas meias desfiadas,
botou os sapatos de salto. Besuntou o beiço e a cara de batom,
se branqueou de Lady; atravessou as ramonas na trunfa, deu jeito
no corpo chato e foi se requebrando, num dengo enjoado, rumo à
gafieira animada que fazia um zuadão danado, no fundo de
um bar suspeito. Foi entrando, se requebrando, toda feliz e sorridente.
Uma roda de homens olhava com cinismo o fuzuê do mulherio
assanhado. Miquita passou rente. Esbarrou com propósito canalha
no primeiro e esclareceu:
– Eu também sou mulher-dama...
Ganhou um safanão que a recambiou para o meio do barulho.
E aí foi aquele rolo e taponas. Empurrões, pontapés,
xingos, nomes feios, obscenidades...
Miquita perdeu a bolsa, perdeu os sapatos de salto, rasgou o vestido
de arrasto e desceu rua abaixo arrastando o canhão das meias
soltas.
No dia seguinte, amassada, escoriada, beiço partido, olho
machucado, lata d’água na cabeça, caladona...
– Que foi que não foi, perguntavam.
– Cotadinha da Miquita... Caiu da escada da Carioca com o
pote de água na cabeça... se machucou toda, não
foi Miquita?
– Foi não, dona... Caí nada não... É
só que muié de bem que nem eu, não pode se
misturá com muié-dama.
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