Essa
qualificação, originada no Ministério da Saúde,
é a nosso ver inadequada. A complexidade aludida não
é dos remédios propriamente ditos, pois as drogas
muito simples e baratas também podem ser de uso muito complicado,
mas das doenças em que são empregados e, particularmente,
do preço que têm. Alguns medicamentos novos, como antibióticos,
quimioterápicos e os vários que estão decorrendo
dos progressos da biotecnologia são caros. Quanto mais recentes,
mais caros: é o problema da indústria farmacêutica,
que investiu bastante em pesquisa e em estudos preliminares obrigatórios
para que tais medicamentos pudessem ser licenciados, e ela quer
recuperar esse investimento com juros...
Temos no Brasil, pelo menos na Constituição, assegurados
os direitos à assistência médica e inclusive
ao fornecimento de medicamentos necessários a qualquer cidadão,
conforme encontra-se definido no Sistema Único de Saúde
(SUS). Isso, na nossa opinião, é o correto, já
que fica horrível imaginar alguém doente que não
tenha acesso ao remédio de que precisa porque não
possui meios para comprá-lo.
O grande
problema que se coloca é o uso impróprio de muitos
desses produtos. O emprego de antibióticos custosos de maneira
inadequada, sem âncora em medicina baseada em evidências,
na simples ameaça de infecção ou em caráter
profilático, é extremamente comum. Há até
piadas a respeito e uma delas reza que “no hospital x o antitérmico
de eleição é a ceftriaxona”. Antibiótico
não é recurso para coibir a febre e esta tem muitas
causas além de infecções. A utilização
preventiva prolongada é erro comum no Brasil e esse comportamento
por prazos superiores a catorze horas não só configura
inutilidade como pode ser prejudicial pela seleção
de organismos resistentes, capaz de causar infecções
mais difíceis de tratar, se ocorrerem, do que quando não
se recorre a nenhuma profilaxia.
O que sucede com dispendiosos quimioterápicos é ainda
pior. São adotadas condutas que jamais foram avaliadas em
protocolos adequadamente conduzidos e em tumores que pouco respondem
à quimioterapia, de maneiras jamais imaginadas, e o SUS paga
por essas experiências sem validade científica, já
que são conduzidas na base do “achismo” e da
“olhometria”.
O G-CSF, fator de crescimento de granulócitos, é outro
bom exemplo. Esta é uma droga importante, constituindo um
dos frutos dos avanços em biologia molecular. Todavia, ela
é usada em pacientes que não estão com um número
baixo de neutrófilos e nessas condições não
acrescenta nenhum valor terapêutico, aumentando assim a conta
do SUS, que no final todos nós pagamos.
Qual é a solução? Cremos que se afigura mais
ou menos óbvia: infelizmente não é qualquer
médico – apenas porque tem a licenciatura e o registro
no Conselho Regional de Medicina (CRM) – que pode receitar
remédios indiscriminadamente ou efetuar intervenções
cirúrgicas de variadas naturezas. O diploma dá ao
facultativo o direito de efetuar a generalidade de atos médicos
e isso parece-nos claramente inconveniente. O uso desses medicamentos
ditos de alta complexidade precisa, sim, ficar restrito a serviços
e doutores capazes de empregá-los apropriadamente, sendo
isso documentado de maneira cabal. Muitos
convênios, sem os pruridos éticos do SUS, simplesmente
auditoram as contas e, se percebem comportamento impróprio,
não pagam os tais fármacos. Nunca imaginamos que iríamos,
algum dia, encontrar algo certo nos convênios e seus chatíssimos
auditores, mas desta vez até que agem com razão. O
SUS deveria escolher quem pode receitar o que e como, fazendo com
que os não-enquadrados nas normas justifiquem as prescrições
antes de iniciar tratamentos com esses remédios. Se a utilização
não for justificada, mediante auditoria de gente competente,
eles não devem ser fornecidos.
Regra
equivocada
Ao
persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado.
Este é o término de todas as mensagens dirigidas pela
indústria farmacêutica diretamente ao consumidor final,
o possível doente. Com isso, os mercadologistas pretendem
ressalvar a responsabilidade pela automedicação que
estão incentivando, pois, afinal, se não melhorar,
vá procurar quem entende do assunto. Não é
mais lógico, razoável e racional procurá-lo
antes? Medicina não constitui uma coisa tão simples
assim, desde que exige seis anos de curso e mais residência,
com alguma freqüência ocorrendo pós-graduação,
para entender quando algo é importante e quando uma queixa
não é.
Podemos imaginar uma situação: criança com
meningococcemia fulminante, que começa com febre e algumas
pequenas pintas que podem nem mesmo ser percebidas. O distúrbio,
não rapidamente considerado e tratado, é capaz de
matar num período curto, de quatro a seis horas, e, por vezes,
o fato sucede mesmo ao chegar o paciente a excelentes médicos
ou a ótimos prontos-socorros. A chance de alguém dar
algumas gotinhas para febre e perder a “janela da oportunidade”
– ou seja, o momento no qual o uso do remédio correto
é apto para curar o paciente e evitar uma desgraça
– configura circunstância razoável, havendo possibilidade
de não dar tempo para consultar o médico.
Diz-se
com alguma razão que muitas queixas freqüentes respondem
a qualquer remédio, incluindo placebos, e que não
se tem acesso a um sistema de saúde fácil, rápido
e adequado para toda a população, afigurando-se, nessas
condições, a automedicação um mal menor.
Não concordamos com isso. Na dificuldade para tal acesso,
há que providenciá-lo e pelo menos no papel o Sistema
Único de Saúde (SUS) prevê acesso simples e
solerte do paciente ao atendimento, que se estenderá conforme
a gravidade da afecção. Esse é o elemento crítico
que precisa ser enfrentado e resolvido.
Claro que, para a indústria farmacêutica, o mercado
que a automedicação representa é importante.
Melhor ainda se ela criar necessidades e demandas a seus produtos,
livrando-se da intermediação dos profissionais de
saúde. Estamos em um País onde remédios que
em países do Primeiro Mundo são extremamente controlados
ficam acessíveis em qualquer farmácia. Ninguém
experimente comprar antibiótico sem receita médica
nos Estados Unidos da América ou na Europa. Na verdade, já
temos muita gente praticando não apenas a automedicação
– quando quem se prejudica, em geral, é apenas o cidadão
que a faz –, mas a heteromedicação: existem
muitos leigos, feiticeiros amadores e vizinhos que adoram emprestar
aquele remedinho que deu certo para a sua infecção
urinária para o amigo com alguma coisa que parece igualzinha
à que ele teve há algum tempo e, depois, especula-se
como é que isso pode dar certo.
Seria mais decente a indústria farmacêutica, na propaganda
de qualquer medicamento, inclusive os mais banais, dizer: “Antes
de tomar qualquer remédio, consulte o médico”.
É para isso que ele existe.
A ampla
divulgação, através dos meios de comunicação,
da instrução contida na frase mencionada no início
deste comentário quiçá contenha boa intenção
ao pretender coibir determinados abusos. Contudo, foi infeliz por
propiciar o desvio basicamente criticado neste texto.
Vicente
Amato Neto e Jacyr Pasternak são médicos e professores
universitários |