A
relação entre nutrição e
infecção é conhecida há muito tempo.
Existem estudos muito bem executados documentando isso com precisào
e, inclusive, um analisou no Nordeste brasileiro a mortalidade por
sarampo em crianças que tiveram ou não suplementação
alimentar com vitamina A, tendo sido verificado que o número
de óbitos dos que não receberam a vitamina foi bem
maior. Na América Central, Leonardo Matta mostrou claramente
que desnutrição e infecção formam uma
dupla infernal, constituindo círculo vicioso no qual uma
estimula a outra. Assim, crianças que estão desnutridas
têm infecção com mais facilidade, ficando, além
disso, sem apetite, passando a não comer ou então,
se o acometimento é no tubo digestivo, pode ocorrer diarréia,
além de vômitos, surgindo portanto pior desnutrição,
que aumenta significativamente o risco de mais uma infecção,
para toda essa situação redundar em aumento da mortalidade
infantil.
O papel
da desnutrição em adultos como indutora de infecção
é muito expressivo em pacientes hospitalizados e constitui
uma das razões pelas quais cada vez mais usa-se nutrição
enteral e parenteral em gravemente enfermos, nas unidades de terapia
intensiva (UTIs), afigurando-se mais difícil saber a real
influência dela nos indivíduos que não estão
na condição referida. Sim, os desnutridos por fome,
adultos, sofrem mais de tuberculose e de outras infecções,
mas não ficou até agora bem definido qual o determinante
fundamental para isso, porquanto esses mesmos famintos são
os que moram mal, não contam com saneamento básico
e encontram-se expostos a traumas ou violências, ao lado de
tudo o mais que configura a pobreza brasileira.
Na
verdade, o Brasil é um paradoxo do ponto de vista nutricional.
Com a atual produção de grãos, não deveria
haver nenhum desnutrido por falta de calorias na alimentação.
Países mais pobres, como a China e a Índia, chegaram
a esse ponto. O diabo, no Brasil, é o horroroso índice
de Gini, ou seja, a diferença enorme entre os que ganham
alguma coisa e os que nada ganham. É a piada contada nos
Estados Unidos a respeito do Brasil: um país onde uma parte
não come e a outra parte não dorme, com medo dos que
não comem. Aqui vigora a pobreza rural do Nordeste, onde
realmente acontecem as desnutrições calórica,
protéica e de todas as vitaminas conhecidas pelo homem, enquanto
no resto do território nacional é mais comum o erro
alimentar e não a desnutrição no sentido estrito:
cada vez temos mais obesos, pois, como nos países desenvolvidos,
são os menos favorecidos – cujo acesso a produtos relativamente
baratos mas com alto valor calórico, cheios de gordura, é
possível – os que por falta de informação
e educação acabam ficando obesos. No Sul do Brasil
a obesidade de crianças e adultos é provavelmente
problema maior do que a fome.
Aliás,
o Brasil, às vezes, resolve as coisas de maneira diferente.
Como exemplo disso figura a mortalidade por sarampo, que praticamente
desapareceu, mas não por melhor nutrição e
sim por vacinação em massa bem efetuada.
Muitas doenças infecciosas arrefeceram muito nos últimos
20 anos, sem que o Brasil tenha resolvido os problemas sociais que
as causaram. Assim, a doença de Chagas transmitida pelo “barbeiro”
está em extinção porque o Estatuto da Terra
fez com que os fazendeiros não quisessem continuar tendo
colonos morando nas suas propriedades, decidindo por demolir as
casas de pau-a-pique, o ecótipo do inseto. A esquistossomose
ficou menos importante não porque tenha ocorrido amplo saneamento,
mas porque tratamento eficiente relativamente simples, individual
ou em massa, provou ser muito valioso para diminuir o impacto da
verminose. As verminoses, que atingiram destacadamente a população
rural, diminuíram bastante, desde quando a população
rural resolveu deixar o campo, onde morria de fome e de ancilostomose,
e foi para as cidades. Nelas, por maior que seja a miséria,
pelo menos sobra comida e sapatos são disponíveis.
O programa
Fome Zero teria um enorme impacto em doenças infecciosas
se fosse feito em 1950 ou 1960. Claro que deve ser implantado em
2003, até porque hoje é uma vergonha maior persistirem,
como diz Lula, gente que come cinco vezes por dia e gente que passa
cinco dias sem comer. Contudo, o impacto nas doenças infecciosas
endêmicas vai ser muito menor em comparação
com o que sucederia naquelas épocas, se governantes, incluindo
os da ditadura militar, tivessem um pouco mais de vergonha na cara,
decidindo por realização de algo semelhante. E seguramente
o grande êxito desse programa vai ser no Nordeste rural. Mais
ainda se o bom senso prevalecer e não for criada burocracia
criticável destinada a garantir que o beneficiado use sua
verba em arroz e feijão e não em iogurte. O ideal
é ser menos paternalista e deixar o faminto comer o que ele
quiser. Por que não iogurte? Só rico tem direito?
Vicente Amato Neto é Professor Emérito
da Faculdade de Medicina da USP. Jacyr Pasternak é doutor
em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Previdência
1
No
artigo, “Para os aposentados, Auschwitz?” [Jornal
da USP, número 630, de 10 a 16 de fevereiro de 2003,
página 7], o professor Tibor Rabóczkay diz que
os servidores públicos, “ao se beneficiarem do
regime previdenciário público, abrem mão
do fundo de garantia”. Nesse caso, o professor comete
um engano. Fundo de garantia por tempo de serviço foi
criado com o objetivo de substituir a estabilidade que possuíam
os trabalhadores da iniciativa privada. Assim, os funcionários
públicos “abrem mão do fundo de garantia”
em função da estabilidade mantida até
os dias atuais e negada ao conjunto dos trabalhadores.
Sistema
de aposentadoria, no caso, é uma outra discussão,
que ouso me intrometer. Acho injusto qualquer trabalhador
(público ou da iniciativa privada) se aposentar com
salário inferior ao da ativa. No entanto, como bem
lembrou o professor Tibor Rabóczkay em seu artigo,
o conjunto dos trabalhadores brasileiros recebe suas aposentadorias
limitadas por um teto desde 1992. De 1992 para cá,
quantas vezes os funcionários públicos se manifestaram
em defesa da aposentadoria integral dos demais trabalhadores?
Ser professor da USP torna as pessoas superiores a um trabalhador
braçal? Nas greves do magistério, e da USP em
particular, recorremos ao apoio da população
dizendo que somos todos trabalhadores, mas na hora de se aposentar,
para nós tudo, para o demais o teto. Isso é
justo?
José
Cássio Másculo (caco@usp.br), educador da Escola
de Aplicação da Faculdade de Educação
da USP
Resposta
do professor Tibor Rabóczkay
É
incorreta a afirmação de que o Fundo de Garantia
tem apenas o papel de substituir a estabilidade, uma vez que,
ao se aposentar, o trabalhador recebe o fundo de garantia,
caso já não o tenha usufruído. Também
é falsa a hipótese de que o servidor público
tenha uma estabilidade totalmente garantida.
A
aposentadoria que o trabalhador recebe do INSS é injusta
e o arbitrário abaixamento do teto de 20 salários
para 10 por Collor foi uma violência que afetou profundamente
a vida do cidadão e a credibilidade do Estado. Qualquer
reforma da Previdência, se com intenções
honestas, deveria começar no restabelecimento do teto
anterior. Trabalhadores braçais ou intelectuais, não
devemos permitir que aqueles interessados em implantar a previdência
privada insuflem-nos uns contra os outros, pois o interesse
deles é nivelar por baixo. Pessoalmente,
sou a favor de nivelar por cima. O aposentado bem pago é
um promotor da vida econômica, já que, com suas
perspectivas e expectativas moderadas pela idade, recicla
o dinheiro com certa rapidez. A saúde, assim como a
previdência, não podem ser privatizadas: o empresário
visa ao lucro, conseqüentemente, para ele o doente bom,
ou o aposentado bom, é o morto. Resumindo: sou a favor
de uma aposentadoria integral para todos que tenham contribuído
efetivamente durante o tempo legal previsto. Até que
isso se torne realidade, convido a todos que acham que o servidor
público é privilegiado a prestarem concurso
e juntarem-se a nós, servidores. Com maior ou menor
esforço, poderão se tornar até professores.
Quanto a esses, sou daqueles que se batem pelo fim da aposentadoria
compulsória e almejam trabalhar até os 100 anos.
Não
confrontei apenas o servidor público com o trabalhador
do setor privado, mas os “esfomeados” donos de
instituições financeiras nacionais e internacionais,
para os quais – professores ou trabalhadores braçais
–, uma vez aposentados, passamos a ser unnecessary eaters,
estorvos desnecessários, enquanto eles destroem não
só o trabalhador, mas o próprio sistema produtivo
(com juros altos, por exemplo). Trabalhadores braçais
e intelectuais, liberais, servidores públicos, empresários
do setor produtivo etc., estamos todos no mesmo barco (enquanto
os donos da grana se asseguram em seus transatlânticos!)
Tibor
Rabóczkay (trabocka@iq. usp.br), professor do Instituto
de Química da USP
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