Sua
grande arte é a conversa. Deviam pôr um taquígrafo
atrás dele e vender suas anotações em uma loja
de frases, dizia sobre ele Nelson Rodrigues.
A declaração
rodrigueana é verdadeira. Rei da conversa, capaz das mais
brilhantes tiradas, do humor mais exato e cortante, Otto Lara Resende
acabaria por entrar para a história como frasista exímio.
São dele máximas que entraram para o folclore nacional:
“O mineiro só é solidário no câncer”,
“Abraço e punhalada a gente só dá em
quem está perto”, “A Europa é uma burrice
aparelhada de museus”.
A fama,
no entanto, acabaria por esconder-lhe suas outras artes com o verbo,
como jornalista e escritor. Alçado em vida à categoria
de personagem, era o mais célebre entre os famosos, mas acabou
para o grande público como um enigma. Um desconhecido ilustre.
Para ajudar a enxergar através do véu que por tantos
anos cobriu o mito e a tirar a máscara que lhe esteve colada
à cara, o livro Três Ottos por Otto Lara Resende, do
Instituto Moreira Salles (IMS), dá voz a quem sempre foi
alvo de controvertidas histórias. Reunião de 23 textos
autobiográficos, muitos deles inéditos, Três
Ottos surgiu a partir da primeira exploração sobre
o arquivo pessoal do escritor, doado por sua família ao IMS
e que desde dezembro pode ser consultado pelo público. A
organização tanto do volume quanto do enorme acervo
(são cerca de 20 mil documentos) ficou a cargo da equipe
coordenada pela pesquisadora Tatiana Longo dos Santos, sob orientação
da professora Telê Ancona Lopez, e é resultado de uma
parceria firmada pelo IMS com o Instituto de Estudos Brasileiros
(IEB) da USP em 1998. “O IEB foi procurado por ser a maior
referência nessa área. Seus pesquisadores têm
larga experiência na organização de outros arquivos
importantes”, explica Tatiana.
Feixe
de contradições
– O título Três Ottos por Otto Lara Resende faz
referência à personalidade multifacetada do autor mineiro
e também à maneira como o volume foi dividido, em
três partes. Logo na primeira, “Caderno Novo”,
o homem amigo da galhofa e da pilhéria revela em textos curtos
o seu quinhão de amargura. “Meu destino gira nos meus
dedos. Não me pertenço e nem me encontro”, escreveu.
Também nesse capítulo, em uma de suas raras incursões
pelos versos, há o poema “Otto”, em que tenta
decifrar o mistério encerrado em seu nome, sua infinidade
de “eus”. Palíndromo, Otto pode ser lido por
qualquer lado, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda.
Dois
tês, cercados, aprisionados por um duplo o.
Muitos,
inesgotável, Otto era o pai inveterado — “Como
pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe
exemplar” —, o católico, devoto a ponto de dizer
que “domingo sem missa não é domingo”,
o boêmio, amante do wisky, o amigo das personalidades mais
diversas — “Sou visceralmente conciliador” —,
trazia unidos em afeto Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade,
Carlos Lacerda e Samuel Wainer – o jornalista que polemizava
até consigo próprio (talvez nenhum outro tenha conseguido
contestar no editorial de um jornal vespertino o editorial que ele
mesmo escrevera em um matutino). Capaz de escrever, com uma rapidez
incomum, páginas e páginas para os jornais, era também
o escritor incapaz de satisfazer-se, de aceitar sua prosa. Trazia
em si, absolutamente diferentes, mas cindidos num só, dois
artífices da palavra. “Havia dois Ottos muito distintos.
O jornalista e o escritor. A pessoa que exigia de si tanta perfeição
publicava diariamente nos jornais”, diz Tatiana.
Caçador
da sua literatura, Otto tinha com a criação uma relação
obsessiva e persistiu ao longo dos anos na “luta mais vã”.
Para se definir usava imagens contraditórias: “Sou
um sujeito delicado e violento. Delicado pra fora, violento pra
dentro. Um poço de contradições”. O dividido
personagem, de conversa tão plena de humor, de trato tão
delicado, inundava sua literatura de sombras, voltas e voltas em
torno da morte. O tema perseguia-o e rodeava seus personagens. “Sendo
uma pessoa de temperamento jovial, tendente à irreverência
e à brincadeira, sou ao mesmo tempo um deprimido e um depressor.
Literariamente,
ficcionalmente a morte me persegue como tema obsessivo”, disse
certa vez. “No fundo, o único assunto é a morte.
O resto é paisagem.” Além da morte, ou melhor,
junto dela, a infância. “Em meu vocabulário,
há uma palavra insistindo em todas as páginas, malbaratando
a boa ordem alfabética: a palavra infância.”
Incapaz
de desistir, impedido de seguir adiante, passou a vida a lapidar
os seus poucos livros num reescrever sem fim, elaborando, refazendo,
trocando as letras, os pontos, as frases, até que cada um
encontrasse o seu lugar. Por que esse homem de inteligência
incomum, dono das palavras, escolheu guardar-se, ser um grande escritor
menor? Pode-se dizer que padecia de uma bibliofobia crônica.
A relação neurótica com seus livros prosseguia
mesmo depois que estavam prontos. Se entrasse em uma livraria e
topasse com algum deles, virava a capa para baixo e saía
aborrecido.
|
|
|
Da
esquerda para a direita: Otto Lara Resende com o dramaturgo
e amigo Nelson Rodrigues, na década de 1960. Com Jayme
Ovalle e Vinícius de Morais, em 1953, e com o pintor
Cândido Portinari, no mesmo ano. |
Seu
único romance, O braço direito, foi publicado em 1963.
Na década de 1980, a editora Círculo do livro propôs-lhe
uma reedição. Otto aceitou, mas depois disso pôs-se
a reler o livro e a reescrevê-lo através dos anos.
Cinco versões, milhares de páginas e 29 anos depois,
por ocasião de sua morte, o romance continuava inacabado.
Foi concluído pela escritora Ana Miranda, a partir de indicações
do autor e publicado pela Companhia das Letras em 1993. No último
capítulo de Três Ottos, intitulado “A criação”,
o próprio autor narra seu sofrimento com o texto: “Não
posso desistir e sei que o sacrifício vai continuar. A idéia
de desistir me é inaceitável. Tenho de ir até
o fim, mesmo com a certeza prévia de que vou alcançar
um resultado pífio”.
Portas
abertas
– Mineiro, nascido em São João Del Rei em 1o
de maio de 1902, Otto descobriria ainda em menino a paixão
literária que manteve sempre intacta. “Profissionalmente
sou essa coisa indefinida que é todo sujeito da minha geração
que um dia cismou que podia ser escritor. Só pensava nisto.
Meu projeto era esse. Escrever. O quê? Sei lá. Escrever.
Ser escritor.”
Bacharel
de formação — “Fui estudar Direito porque
os escritores estudavam Direito, muitos” —, foi adido
cultural, professor e diretor de banco, ocupação que
abandonou depressa, mas se via sobretudo como jornalista, carreira
que abraçou desde os 16 anos. “Entrei no jornalismo
exatamente como cachorro entra na igreja: porque achei a porta aberta”,
gostava de dizer. Havia uma dose de verdade na pilhéria.
Seu pai era um dos dirigentes do jornal O Diário e foi lá
que ele pisou pela primeira vez em uma redação. Em
1946, mudou-se para o Rio de Janeiro, destino natural para quem
tivesse as suas pretensões, onde já o esperavam os
amigos – também mineiros desterrados – Fernando
Sabino e Paulo Mendes. Com o psicanalista Hélio Pellegrino,
eles formariam o célebre grupo dos “quatro mineiros”,
chamados por Otto de “cavaleiros de um íntimo apocalipse”.
“Sou
jornalista, especialista em idéias gerais. Sei alguns minutos
de muitos assuntos. E não sei nada”, definia-se. Teve
mil empregos, entrevistou meio mundo, registrou diversos momentos
decisivos da história do País. Esteve em todos os
jornais e várias vezes em dois deles ao mesmo tempo. A prosa
que espalhou ao longo do tempo pelas páginas efêmeras
– “Texto de jornal é estação de
trem depois que o trem passou. Deixou de ter interesse”, disse
– é uma enorme obra literária dispersa, produção
que ele nunca se preocupou em reunir em livro, mas que soube preservar.
“Talvez aí, dispersa no dia-a-dia, esteja a sua grande
obra. Otto guardou grande parte dos jornais em que publicou, textos
que, se não fosse por ele, teriam desaparecido”, afirma
Tatiana. “Ele parecia ter consciência do valor desse
material e vontade de que ele fosse explorado porque deixou muitas
notas explicativas. Há uma pequena lista de afazeres em que
consta o nome de uma pessoa e, acima, uma identificação
de quem era ela. O curioso é que a lista é de 1956
e a explicação foi escrita em 1991.” Imortal,
eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1979, Otto Lara Resende
está ainda por ser descoberto.
|
|
Os
manuscritos de O braço direito, corrigidos
à exaustão; e foto de Otto Lara Resende ao lado
das rotativas da Revista Manchete na década de 1990. |
Exímio
datilógrafo, não havia um erro em suas páginas.
Escrevia limpo e correto, com absoluto domínio da língua,
aprendida e debatida em casa, à mesa do jantar, pelo pai
gramático. O mais carioca dos mineiros começaria como
repórter do Diário de Notícias, depois passaria
pelo O Globo, O Diário Carioca, Correio da Manhã,
Revista Manchete — onde foi o responsável por uma grande
reforma, levando para a revista nomes como Rubem Braga e o artista
plástico Amílcar de Castro —, Jornal do Brasil,
Última Hora (onde se aventurou até pela crítica
de cinema, assinando sob o pseudônimo de J. O.), Folha de
S. Paulo e Rede Globo. Na televisão, em meados dos anos 60,
estreou apresentando “O pequeno mundo de Otto Lara Resende”.
Certo é que jamais houve programa como aquele. Todas as noites,
sem script, ele entrava no ar. Acesa a luz vermelha, disparava a
falar por 60 segundos. O método era infalível, pelo
menos até o dia em que o escritor Guimarães Rosa resolveu
fazer-lhe um pedido: “Minha neta não acredita que sou
famoso. Só vai acreditar se você disser o meu nome
do ar”. Otto concordou, mas no dia marcado, quando a luz acendeu,
ele teve pela primeira vez um branco. Os segundos passavam. Ao vivo,
ele aparecia mudo, impassível diante da câmera. Foi
cortado pelos comerciais. Saiu arrasado do estúdio. No entanto,
quando parou o carro aquela noite, estacionou ao seu lado o ministro
Nascimento e Silva, que, ao vê-lo, abriu os braços
dizendo: “Otto, meus parabéns. Você, hoje, na
televisão, foi genial. Só Charles Chaplin faria uma
crítica tão inteligente a essa lei da censura que
aprovamos hoje no governo”.
|
|
|
Otto
Lara Resende escreve à máquina, no escritório
de sua casa |
|
Apresentando
o programa "O pequeno mundo de Otto Lara Resende"
|
|
|
|
Brincando
com seu filho Bruno em Bruxelas, em 1958 |
|
Obcecado
pelo tema da morte, Otto no cemitério brasileiro de
Pistoia |
Quem?
– “Eu sou aquele tipo de chato a quem não se
pode perguntar como vai. Porque respondo, explico, entro em pormenores”,
disse em uma entrevista a Paulo Mendes Campos que abre o segundo
capítulo de Três Ottos, “Quem é OLR?”.
Escrita à maneira de confissão, essa entrevista é
documento curioso, uma espécie de auto-retrato, o mais próximo
da autobiografia que Otto sempre se recusou a escrever. Além
de “chato”, o autor de O braço direito se diz
um obcecado pelos livros — “Livro é meu objeto
sagrado, totêmico. Só gosto de ler. Meu
único esporte. Não faço ginástica”
—s e também um leitor compulsivo dos jornais. Já
às 8 da manhã havia lido todos. Começava
então a ligar para os amigos, já indignado, reclamando
disso e daquilo. Dizia odiar o telefone, mas não resistia
a ele e passava horas dependurado no aparelho. Também escrevia
cartas e bilhetes sem conta para os amigos com quem não tinha
conseguido falar e para aqueles com quem tinha acabado de falar.
Se dizia grafômano e epistológrafo, atormentado pela
mania de escrever. Espalhou centenas e centenas de cartas. Do seu
arquivo, no IMS, constam, entre correspondência ativa e passiva,
mais de 8 mil.
Morreu,
bestamente, em 1992, depois de uma complicação resultante
de uma simples cirurgia de hérnia. “Vivo, sobrevivo,
porque tenho um recado, um telegrama a entregar”, dizia. Passou
os anos cumprindo a tarefa, escrevendo. Escreveu, escreveu. A doença
que tinha era sem cura.
|