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Três Ottos por Otto Lara Resende
188 páginas
R$ 39,00
Instituto Moreira Salles
Organização de Tatiana Longo dos Santos

O telefone para agendar consultas ao acervo de Otto Lara Resende é 3825-2560

Sua grande arte é a conversa. Deviam pôr um taquígrafo atrás dele e vender suas anotações em uma loja de frases, dizia sobre ele Nelson Rodrigues.

A declaração rodrigueana é verdadeira. Rei da conversa, capaz das mais brilhantes tiradas, do humor mais exato e cortante, Otto Lara Resende acabaria por entrar para a história como frasista exímio. São dele máximas que entraram para o folclore nacional: “O mineiro só é solidário no câncer”, “Abraço e punhalada a gente só dá em quem está perto”, “A Europa é uma burrice aparelhada de museus”.

A fama, no entanto, acabaria por esconder-lhe suas outras artes com o verbo, como jornalista e escritor. Alçado em vida à categoria de personagem, era o mais célebre entre os famosos, mas acabou para o grande público como um enigma. Um desconhecido ilustre. Para ajudar a enxergar através do véu que por tantos anos cobriu o mito e a tirar a máscara que lhe esteve colada à cara, o livro Três Ottos por Otto Lara Resende, do Instituto Moreira Salles (IMS), dá voz a quem sempre foi alvo de controvertidas histórias. Reunião de 23 textos autobiográficos, muitos deles inéditos, Três Ottos surgiu a partir da primeira exploração sobre o arquivo pessoal do escritor, doado por sua família ao IMS e que desde dezembro pode ser consultado pelo público. A organização tanto do volume quanto do enorme acervo (são cerca de 20 mil documentos) ficou a cargo da equipe coordenada pela pesquisadora Tatiana Longo dos Santos, sob orientação da professora Telê Ancona Lopez, e é resultado de uma parceria firmada pelo IMS com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP em 1998. “O IEB foi procurado por ser a maior referência nessa área. Seus pesquisadores têm larga experiência na organização de outros arquivos importantes”, explica Tatiana.

Feixe de contradições – O título Três Ottos por Otto Lara Resende faz referência à personalidade multifacetada do autor mineiro e também à maneira como o volume foi dividido, em três partes. Logo na primeira, “Caderno Novo”, o homem amigo da galhofa e da pilhéria revela em textos curtos o seu quinhão de amargura. “Meu destino gira nos meus dedos. Não me pertenço e nem me encontro”, escreveu. Também nesse capítulo, em uma de suas raras incursões pelos versos, há o poema “Otto”, em que tenta decifrar o mistério encerrado em seu nome, sua infinidade de “eus”. Palíndromo, Otto pode ser lido por qualquer lado, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda. Dois tês, cercados, aprisionados por um duplo o.

Muitos, inesgotável, Otto era o pai inveterado — “Como pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe exemplar” —, o católico, devoto a ponto de dizer que “domingo sem missa não é domingo”, o boêmio, amante do wisky, o amigo das personalidades mais diversas — “Sou visceralmente conciliador” —, trazia unidos em afeto Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade, Carlos Lacerda e Samuel Wainer – o jornalista que polemizava até consigo próprio (talvez nenhum outro tenha conseguido contestar no editorial de um jornal vespertino o editorial que ele mesmo escrevera em um matutino). Capaz de escrever, com uma rapidez incomum, páginas e páginas para os jornais, era também o escritor incapaz de satisfazer-se, de aceitar sua prosa. Trazia em si, absolutamente diferentes, mas cindidos num só, dois artífices da palavra. “Havia dois Ottos muito distintos. O jornalista e o escritor. A pessoa que exigia de si tanta perfeição publicava diariamente nos jornais”, diz Tatiana.

Caçador da sua literatura, Otto tinha com a criação uma relação obsessiva e persistiu ao longo dos anos na “luta mais vã”. Para se definir usava imagens contraditórias: “Sou um sujeito delicado e violento. Delicado pra fora, violento pra dentro. Um poço de contradições”. O dividido personagem, de conversa tão plena de humor, de trato tão delicado, inundava sua literatura de sombras, voltas e voltas em torno da morte. O tema perseguia-o e rodeava seus personagens. “Sendo uma pessoa de temperamento jovial, tendente à irreverência e à brincadeira, sou ao mesmo tempo um deprimido e um depressor. Literariamente, ficcionalmente a morte me persegue como tema obsessivo”, disse certa vez. “No fundo, o único assunto é a morte. O resto é paisagem.” Além da morte, ou melhor, junto dela, a infância. “Em meu vocabulário, há uma palavra insistindo em todas as páginas, malbaratando a boa ordem alfabética: a palavra infância.”

Incapaz de desistir, impedido de seguir adiante, passou a vida a lapidar os seus poucos livros num reescrever sem fim, elaborando, refazendo, trocando as letras, os pontos, as frases, até que cada um encontrasse o seu lugar. Por que esse homem de inteligência incomum, dono das palavras, escolheu guardar-se, ser um grande escritor menor? Pode-se dizer que padecia de uma bibliofobia crônica. A relação neurótica com seus livros prosseguia mesmo depois que estavam prontos. Se entrasse em uma livraria e topasse com algum deles, virava a capa para baixo e saía aborrecido.

Da esquerda para a direita: Otto Lara Resende com o dramaturgo e amigo Nelson Rodrigues, na década de 1960. Com Jayme Ovalle e Vinícius de Morais, em 1953, e com o pintor Cândido Portinari, no mesmo ano.

Seu único romance, O braço direito, foi publicado em 1963. Na década de 1980, a editora Círculo do livro propôs-lhe uma reedição. Otto aceitou, mas depois disso pôs-se a reler o livro e a reescrevê-lo através dos anos. Cinco versões, milhares de páginas e 29 anos depois, por ocasião de sua morte, o romance continuava inacabado. Foi concluído pela escritora Ana Miranda, a partir de indicações do autor e publicado pela Companhia das Letras em 1993. No último capítulo de Três Ottos, intitulado “A criação”, o próprio autor narra seu sofrimento com o texto: “Não posso desistir e sei que o sacrifício vai continuar. A idéia de desistir me é inaceitável. Tenho de ir até o fim, mesmo com a certeza prévia de que vou alcançar um resultado pífio”.

Portas abertas – Mineiro, nascido em São João Del Rei em 1o de maio de 1902, Otto descobriria ainda em menino a paixão literária que manteve sempre intacta. “Profissionalmente sou essa coisa indefinida que é todo sujeito da minha geração que um dia cismou que podia ser escritor. Só pensava nisto. Meu projeto era esse. Escrever. O quê? Sei lá. Escrever. Ser escritor.”

Bacharel de formação — “Fui estudar Direito porque os escritores estudavam Direito, muitos” —, foi adido cultural, professor e diretor de banco, ocupação que abandonou depressa, mas se via sobretudo como jornalista, carreira que abraçou desde os 16 anos. “Entrei no jornalismo exatamente como cachorro entra na igreja: porque achei a porta aberta”, gostava de dizer. Havia uma dose de verdade na pilhéria. Seu pai era um dos dirigentes do jornal O Diário e foi lá que ele pisou pela primeira vez em uma redação. Em 1946, mudou-se para o Rio de Janeiro, destino natural para quem tivesse as suas pretensões, onde já o esperavam os amigos – também mineiros desterrados – Fernando Sabino e Paulo Mendes. Com o psicanalista Hélio Pellegrino, eles formariam o célebre grupo dos “quatro mineiros”, chamados por Otto de “cavaleiros de um íntimo apocalipse”.

“Sou jornalista, especialista em idéias gerais. Sei alguns minutos de muitos assuntos. E não sei nada”, definia-se. Teve mil empregos, entrevistou meio mundo, registrou diversos momentos decisivos da história do País. Esteve em todos os jornais e várias vezes em dois deles ao mesmo tempo. A prosa que espalhou ao longo do tempo pelas páginas efêmeras – “Texto de jornal é estação de trem depois que o trem passou. Deixou de ter interesse”, disse – é uma enorme obra literária dispersa, produção que ele nunca se preocupou em reunir em livro, mas que soube preservar. “Talvez aí, dispersa no dia-a-dia, esteja a sua grande obra. Otto guardou grande parte dos jornais em que publicou, textos que, se não fosse por ele, teriam desaparecido”, afirma Tatiana. “Ele parecia ter consciência do valor desse material e vontade de que ele fosse explorado porque deixou muitas notas explicativas. Há uma pequena lista de afazeres em que consta o nome de uma pessoa e, acima, uma identificação de quem era ela. O curioso é que a lista é de 1956 e a explicação foi escrita em 1991.” Imortal, eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1979, Otto Lara Resende está ainda por ser descoberto.

Os manuscritos de O braço direito, corrigidos à exaustão; e foto de Otto Lara Resende ao lado das rotativas da Revista Manchete na década de 1990.

Exímio datilógrafo, não havia um erro em suas páginas. Escrevia limpo e correto, com absoluto domínio da língua, aprendida e debatida em casa, à mesa do jantar, pelo pai gramático. O mais carioca dos mineiros começaria como repórter do Diário de Notícias, depois passaria pelo O Globo, O Diário Carioca, Correio da Manhã, Revista Manchete — onde foi o responsável por uma grande reforma, levando para a revista nomes como Rubem Braga e o artista plástico Amílcar de Castro —, Jornal do Brasil, Última Hora (onde se aventurou até pela crítica de cinema, assinando sob o pseudônimo de J. O.), Folha de S. Paulo e Rede Globo. Na televisão, em meados dos anos 60, estreou apresentando “O pequeno mundo de Otto Lara Resende”. Certo é que jamais houve programa como aquele. Todas as noites, sem script, ele entrava no ar. Acesa a luz vermelha, disparava a falar por 60 segundos. O método era infalível, pelo menos até o dia em que o escritor Guimarães Rosa resolveu fazer-lhe um pedido: “Minha neta não acredita que sou famoso. Só vai acreditar se você disser o meu nome do ar”. Otto concordou, mas no dia marcado, quando a luz acendeu, ele teve pela primeira vez um branco. Os segundos passavam. Ao vivo, ele aparecia mudo, impassível diante da câmera. Foi cortado pelos comerciais. Saiu arrasado do estúdio. No entanto, quando parou o carro aquela noite, estacionou ao seu lado o ministro Nascimento e Silva, que, ao vê-lo, abriu os braços dizendo: “Otto, meus parabéns. Você, hoje, na televisão, foi genial. Só Charles Chaplin faria uma crítica tão inteligente a essa lei da censura que aprovamos hoje no governo”.

 
Otto Lara Resende escreve à máquina, no escritório de sua casa
Apresentando o programa "O pequeno mundo de Otto Lara Resende"
 
Brincando com seu filho Bruno em Bruxelas, em 1958
Obcecado pelo tema da morte, Otto no cemitério brasileiro de Pistoia

Quem? – “Eu sou aquele tipo de chato a quem não se pode perguntar como vai. Porque respondo, explico, entro em pormenores”, disse em uma entrevista a Paulo Mendes Campos que abre o segundo capítulo de Três Ottos, “Quem é OLR?”. Escrita à maneira de confissão, essa entrevista é documento curioso, uma espécie de auto-retrato, o mais próximo da autobiografia que Otto sempre se recusou a escrever. Além de “chato”, o autor de O braço direito se diz um obcecado pelos livros — “Livro é meu objeto sagrado, totêmico. Só gosto de ler. Meu único esporte. Não faço ginástica” —s e também um leitor compulsivo dos jornais. Já às 8 da manhã havia lido todos. Começava então a ligar para os amigos, já indignado, reclamando disso e daquilo. Dizia odiar o telefone, mas não resistia a ele e passava horas dependurado no aparelho. Também escrevia cartas e bilhetes sem conta para os amigos com quem não tinha conseguido falar e para aqueles com quem tinha acabado de falar. Se dizia grafômano e epistológrafo, atormentado pela mania de escrever. Espalhou centenas e centenas de cartas. Do seu arquivo, no IMS, constam, entre correspondência ativa e passiva, mais de 8 mil.

Morreu, bestamente, em 1992, depois de uma complicação resultante de uma simples cirurgia de hérnia. “Vivo, sobrevivo, porque tenho um recado, um telegrama a entregar”, dizia. Passou os anos cumprindo a tarefa, escrevendo. Escreveu, escreveu. A doença que tinha era sem cura.

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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