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Hussein: "Esta guerra é imoral e um crime contra a humanidade"

Na superfície, a água abundante dos rios Tigre (1.718 km) e Eufrates (2.330 km); no subsolo, enormes lençóis de petróleo; no poder, um ditador implacável, cercado e ameaçado por exércitos que vêm de longe, de outros continentes, interessados nessas riquezas e no firme propósito de estabelecer ali um ponto de apoio para melhor controlar o Oriente Médio. Entre tiranias e cobiças, um povo boicotado e empobrecido. A antiga Mesopotâmia, berço das civilizações suméria, acádica, babilônica, assíria e hitita, pioneira da pesquisa científica, da matemática moderna, da astronomia e da álgebra, cenário das Mil e Uma Noites, está em pé de guerra. De longe, da USP em São Paulo, um professor nascido em Bagdá, com especialização em física nuclear nos Estados Unidos, docente titular do Instituto de Física, acompanha com apreensão o conflito no Iraque. Mahir Saléh Hussein não se preocupa apenas com a sorte de seu país, em geral; teme pela vida de duas irmãs e dos muitos primos que vivem na capital iraquiana. Pessoalmente, reclama de injustiça de que seria vítima por parte do consulado norte-americano em São Paulo que, segundo ele, há mais de dois meses vem retendo seu passaporte, impedindo que atenda a convite de cientistas da Universidade do Texas para participar de um projeto em sua especialidade. Considera que esse é o preço que paga por ter origem árabe e, sobretudo, por levar o mesmo sobrenome do ditador Saddam Hussein, tão comum no Iraque como Silva no Brasil. “Eu sou brasileiro desde 1978, cientista com estreito contato com universidades norte-americanas, francesas e japonesas, e considero o seqüestro do meu passaporte um ultraje a todos os cientistas brasileiros.”

Sempre ressaltando que não apóia Saddam, o professor da USP considera imoral a provável guerra dos Estados Unidos e seus aliados contra o Iraque, porque os motivos alegados não têm fundamento: o ditador não tem condições de fabricar bomba nuclear, nem possui armas de destruição em massa; trata-se mesmo de guerra de conquista à moda antiga, do tempo em que ainda não existiam as Nações Unidas para cuidar da harmonia entre as nações. Para acabar com a ditadura em seu país de origem, o professor diz que é preciso tempo, paciência e o fim do boicote econômico; o próprio povo iraquiano se encarregará do resto. Derrubará Saddam assim como os romenos acabaram com o tirano Ceausescu.

É blablablá — Se as condições políticas do Iraque não se tivessem alterado drasticamente, o país teria mesmo condições de fabricar bombas atômicas, com a ajuda dos EUA e da Inglaterra, confirma Mahir Hussein. Mas, depois da guerra do Golfo, tudo foi destruído, inclusive as instalações para produção de plutônio, quando Israel bombardeou o reator adquirido da França. Um relatório do Centro de Los Alamos confirma que a fábrica de combustíveis foi destruída. Na década de 80, o Iraque mantinha acordos de cooperação com muitos países, incluído o Brasil, o único que ainda em 1974 conseguiu quebrar o bloqueio das multinacionais. Empresas brasileiras construíram estradas e cidades no Iraque, outras exportaram armamentos.

“Hoje não existe bomba nenhuma. É blablablá. É preciso ir até lá para ver como a população está vivendo. Muito pior do que no norte e nordeste do Brasil. Há fome e mesmo com todo o histórico de Saddam é impossível pensar na existência de armamentos que ameacem os vizinhos. Daí tanta oposição do mundo, até do papa, à guerra.” Segundo o professor Hussein, a situação econômica da população é dramática, a classe média, embora residindo em grandes vivendas construídas no tempo de fartura, não dispõe de comida, e a desnutrição e a falta de remédios são ameaça constante. Na sua última visita a Bagdá, em 2000, o professor do Instituto de Física da USP levou como presente para suas irmãs grandes frascos de aspirina para que a distribuíssem entre os mais necessitados, pois as farmácias estão vazias. A inflação é tão galopante que o valor do dinheiro (dinar) não se conta mais, se pesa. Em restaurantes, por exemplo, para onde as pessoas vão carregando dinheiro em pacotes, tantos gramas dão direito a determinado número de quibes ou esfihas. O professor atribui parte da responsabilidade por essa situação à ONU, que impôs o embargo econômico ao Iraque, prejudicando a população em geral. Isso teria sido reconhecido pelo próprio representante do organismo internacional em Bagdá, que pediu demissão do cargo, depois de ver crianças morrendo de fome e sem remédios.

Por ser rico em água e petróleo, que dão ao país uma posição muito especial no mundo árabe e muçulmano, o Iraque sempre foi alvo muito visado e sofreu ocupações por muitos povos — mongóis, persas, otomanos, ingleses e agora é ameaçado pelos Estados Unidos. Depois da Primeira Guerra, em 1921, passou a ser governado por um primo do rei Hussein da Jordânia, mas sempre controlado pelos ingleses. Só em 58 esse regime caiu sob violenta revolução popular, mas as divisões internas se mantiveram por conta de comunistas, nacionalistas (partido Baas) e nasseristas. Em 1968, aparece Saddam Hussein, o homem forte que em 79 assume o poder total e se mantém até hoje.

“Para governar um país dividido Saddam optou pela violência”, lamenta o professor Hussein. “A minha família sofreu muito. Minha mãe foi ameaçada de expulsão porque somos xiitas, não sunitas. Em 96, fui ajudar uma das minhas irmãs a sair para a Líbia. Eu sou contra a guerra, não para defender Saddam. Pelo contrário, ele abusou demais. Mas porque esta guerra é imoral, uma invasão para controlar o petróleo e a água. Será um crime contra a humanidade.”

A guerra lhe parece inevitável. “Acredito que com a presença de mais de 200 mil soldados americanos e ingleses postados nas fronteiras será difícil retirar as tropas, mesmo usando como desculpa a confusão criada pela Coréia do Norte. Se o Conselho de Segurança optar pela guerra, ou contra ela, os Estados Unidos vão invadir o Iraque. Vão matar milhares e milhares de civis, outros morrerão de fome.”

Embora mantenha contato pela Internet com os familiares residentes em Bagdá, o professor não tem notícias muito claras sobre o ânimo dos iraquianos, pois as comunicações costumam ser censuradas e nesses contatos evita-se falar de política. O que ele sabe mesmo é que todos os iraquianos residentes no Brasil e em outros países são contra a guerra, apesar da oposição a Saddam, “porque sabem o que vai acontecer”. Ninguém aceita o argumento do governo dos EUA de que o Iraque tem ligações com o terrorismo. “Depois de 11 de setembro de 2001, a maneira como estão conduzindo a guerra contra o terror é completamente errada”, garante o professor. “No Paquistão acabaram de pegar agora mes-
mo um terrorista, o terceiro na hierarquia da Al-Qaeda, não bombardeando o país, mas através de processos policiais. O combate ao terrorismo tem que usar a inteligência, a polícia, fazer um esforço grande para pegar a pessoa certa, não infernizar a vida da população em geral.”

Vizinhos apreensivos — Para fazer entender a geopolítica da região, o professor analisa a posição de alguns países vizinhos do Iraque. Diz que a Arábia Saudita, sentindo-se ameaçada durante a primeira guerra do Golfo, pediu ajuda aos norte-americanos. Bin Laden, que havia tentado convencer o Iraque e a própria Arábia Saudita de que ele era o preferido dos EUA e da Inglaterra por ter ajudado a expulsar os russos do Afeganistão, com a ajuda dos ingleses, americanos e árabes em geral, ficou furioso com a decisão saudita e partiu para a violência na clandestinidade. Atualmente, a Arábia Saudita, centro do islamismo, está agindo com muito cuidado, sabendo distinguir as ameaças reais, como as de 1990, das ameaças imaginárias divulgadas pelos EUA. Condena a guerra, não aceita a desculpa de que o Iraque patrocina o terrorismo e não cedeu suas bases às forças anglo-americanas. Segundo o professor Hussein, o mundo árabe ainda espera convencê-la a não permitir o uso de seu espaço aéreo para a guerra. Muitos sauditas ricos são absolutamente contrários à presença norte-americana no país; isso seria um insulto ao islamismo.

Quanto à Turquia, outro país muçulmano, embora não árabe, a população, por intermédio do Parlamento, decidiu negar permissão aos norte-americanos de usar seu território militarmente, apesar das pressões e da oferta bilionária em ajuda econômica. O país tem relação muito estreita com o Iraque por vários motivos. Grande parte do petróleo iraquiano é levado aos portos para exportação através do território turco, o que lhes rende muito dinheiro. O mesmo vale para a Síria e a Jordânia. A Turquia teme ainda que, depois da provável guerra, os curdos instalem no norte do Iraque um Estado independente, atraindo para lá também os curdos do sul de seu país, o que poderia constituir séria ameaça a sua segurança. A resistência turca pode ser considerada heróica. Com a promessa de ajuda econômica, diz o professor, “está em jogo o preço de cada civil que vai morrer se houver guerra: oferecem-se US$ 15 bilhões ou 20 bilhões de ajuda à Turquia, o que é praticamente o preço dos iraquianos ameaçados”.

No Golfo, países como o Kuwait e o Catar são “protetorados dos EUA”, segundo o professor. “Ficam gritando independência, que não existe. Lá estão as forças americanas que não vão sair nunca.”

Coréia do Norte — Mahir Hussein não se conforma com o “desprezo à inteligência das pessoas”, quando os Estados Unidos dizem que vão negociar diplomaticamente a crise com a Coréia do Norte, que confessadamente possui armas nucleares, e ameaçam com invasão o Iraque, onde os inspetores da ONU nada encontraram de perigoso para outros países. Segundo o professor, a própria Coréia do Norte está se armando nuclearmente por culpa do Ocidente: “Quando se força um país a morrer de fome é como força-lo a se suicidar. Por isso os coreanos estão no processo de fabricar bombas atômicas. Dizer que isso é secundário é absurdo”.

Na opinião do professor da USP, seria mais coerente e menos imoral se os EUA dissessem claramente que buscam no Iraque água, petróleo e presença política. Como está, é guerra imoral e imperialista. No passado, a Inglaterra fez guerras de conquista, mas seguindo as regras do jogo de então. Hoje existe a ONU. Além do mais, as votações iniciais no Conselho de Segurança deveriam ser decididas por unanimidade como se faz nos júris populares, não por maioria simples dos seus membros, pois se trata de vida e morte de milhares de pessoas. A dúvida sempre favorece o réu.

Se Saddam Hussein for deposto pelos Estados Unidos, qual será o futuro do Iraque? O professor Hussein não tem dúvida de que continuará dividido, pois cada uma das tendências — curdos, xiitas, sunitas — tentará dominar o país. Hoje, o ditador consegue manter a unidade, mesmo que às custas de muita violência. A Arábia Saudita teme pelo futuro de seu vizinho e já na guerra dos anos 90 teria pedido ao governo norte-americano que não avançasse até Bagdá, preservando o governo de então e a unidade nacional. “Se retirarem o embargo econômico e derem melhores condições de vida, o povo do Iraque decidirá o que fazer.”

Mahir Hussein insiste em que se registre um elogio ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se mantém firmemente aliado à posição dos países que lutam pela preservação da paz no Oriente Médio. E não esquece do seu passaporte: “Espero que o consulado americano o devolva. Não tenho nada com o Iraque, sou brasileiro de carne e osso, tenho filhos brasileiros, estou quase me aposentando na USP. Tirei minha licença-prêmio para cuidar disso e da viagem a convite da Universidade do Texas. Apenas por ter nascido no Iraque estou recebendo do consulado tratamento totalmente errado. Eles têm de me tratar como brasileiro, como cientista que mantém contatos com universidades dos Estados Unidos. Espero que alguém faça alguma coisa”.

Mahir Saléh Hussein partiu para os Estados Unidos aos 22 anos, depois de concluir a Universidade de Bagdá. Permaneceu durante cinco anos e meio no MIT (Massachusetts Institute of Technology), até que, a convite do pesquisador brasileiro Antonio de Toledo Piza, veio para o Brasil em 1971. Na USP leciona Física Teórica e Física Nuclear, na graduação e na pós. É da Comissão de Pesquisa do Instituto de Física, portanto, integra o Conselho Central da Universidade. Além do MIT, colabora com grupos de pesquisa das universidades de Michigan, Califórnia, Berkeley e da Carolina do Norte. Suas aulas têm atraído o interesse de alunos do exterior, entre os quais ele inclui uma estudante russa e um japonês. Os caçadores de terroristas podem ficar tranqüilos: o professor Hussein não fabrica bombas; é especialista em física teórica ou “física quântica em muitos corpos”.

Procurado pelo Jornal da USP, o Consulado Americano em São Paulo preferiu não se manifestar sobre o caso do passaporte do professor Hussein.

 

Um abraço pela Paz

Praça do Relógio, cartão-postal por excelência da Cidade Universitária, é percurso quase que obrigatório para todos que circulam na USP. Lugar de encontro, passagem ou meditação, a praça, no último dia 10, desempenhou um outro tipo de papel: o de cenário para uma manifestação pela paz mundial. Naquele dia nublado, ao meio-dia, quase uma centena de pessoas se reuniu ao redor da Torre do Relógio para “abraçá-la” e, ao mesmo tempo, dizer não à guerra que os Estados Unidos querem patrocinar contra o Iraque e se solidarizar com as atitudes em prol da paz que vêm acontecendo em todas as partes do mundo. Vestidas de branco e empunhando uma faixa onde se lia “Queremos Paz”, as pessoas na praça deram sua contribuição antibelicista.

O abraço à torre do relógio foi idealizado pela Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) e promovido pela Associação dos Alunos da Universidade Aberta à Terceira Idade (Aauati). Luísa Vacaro, 65 anos, participante do curso de ioga do Centro de Práticas Esportivas da USP, o Cepeusp, achou “o máximo” esse tipo de iniciativa. “Temos que unir as forças e os pensamentos para promover a paz.”

Para a organizadora do ato, Constantina Melfi, todos responderam bem à idéia de se fazer uma corrente pela paz. “Pedimos a colaboração dos alunos da Aauati e dos professores do Cepeusp e eles corresponderam à nossa expectativa. Muitos participaram e todos vestiram branco”, afirmou.

Alunos de vários cursos de graduação também se uniram ao “abraço” ao relógio. Alguns, desavisados, ao passarem pela praça foram atraídos pelo pessoal da terceira idade. Já a maioria foi para o ato consciente do que estava fazendo. “Vimos cartazes sobre a manifestação pendurados em murais e nos programamos”, afirmou a estudante de Psicologia Artemis Pavoni, 24, que integrava um grupo de alunos do Instituto de Psicologia. “Manifestar-se é um impulso”, declara. “Estamos dando um recado. Pode ser que não adiante nada, mas é o que podemos fazer e não devemos nos eximir de participar”, resume Tânia Canhadas, 22, graduanda em Terapia Ocupacional.

LAURA LOPES

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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