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Bosi: o mesmo escritor pode ser inovador e conformista

Do primeiro artigo que escreveu para o colégio onde lecionava até ser eleito, no dia 20 de março, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), passaram-se 45 anos. Um tempo que no caminho das letras passou tão rápido. Mas foi muito bem pontuado em tantos outros ensaios, prefácios, estudos. Esse novo título – foi eleito com 27 dos 38 votos para a cadeira número 12, deixada vaga com a morte do cardeal dom Lucas Moreira Neves – não muda a rotina dedicada às pesquisas, ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, do qual é vice-presidente, ou junto dos netos Daniel e Tiago. Mas acha interessante “o privilégio e a oportunidade desse novo convívio com pessoas ricas de memória e experiência”, como ele próprio define.

Alfredo Bosi, paulistano, 66 anos, pretende construir uma “ponte” entre a ABL e a USP. “Gostaria de estreitar os contatos entre a Academia e a Universidade. Lá estão pessoas luminosas como o economista Celso Furtado, o historiador político Raymundo Faoro, as escritoras Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles, os romancistas João Ubaldo Ribeiro e Carlos Heitor Cony. E, aqui na USP, há tantos mestres e pesquisadores que também poderiam ser ouvidos na ABL.”

Também vai continuar preferindo café a chá (tradicional nos encontros da Academia). E o mais importante: vai continuar mostrando que a literatura não é só o espelho da sociedade e que esse espelho tem um lado opaco que ninguém vê. É o avesso da ideologia dominante.

Bosi defende a idéia de que o belo é muito raro. Incentiva os alunos a ler, buscar, questionar, a não perder tempo. Faz, ainda, questão de registrar um apelo na defesa dos professores que se aposentam compulsoriamente ao completar 70 anos de idade. “Até o termo ‘inativo’ é injusto. Será que o pensamento fica paralisado? Deveria haver uma luta, uma conscientização de toda a USP. As congregações, as unidades tinham de ter uma atitude coerente no reconhecimento do valor desses docentes.” A seguir, trechos da conversa de Bosi com o Jornal da USP.

Jornal da USP – O senhor se lembra do primeiro ensaio que escreveu?

Alfredo Bosi – Minha primeira incursão literária foi um artigo que escrevi para o jornal do Colégio Estadual Macedo Soares, na Barra Funda, onde lecionava português. Era um comentário sobre a História da literatura brasileira, de José Veríssimo. Ainda na faculdade, a pedido do saudoso professor Italo Bettarello, elaborei para um jornal italiano um texto chamado “O barroco e o sentimento do infinito”. É curioso reparar, depois de tanto tempo, que essas duas estréias juvenis apontavam para caminhos que iria trilhar. Na época, tinha 21 anos. Não podia sequer imaginar que iria me dedicar a vida inteira para estas duas literaturas: a brasileira e a italiana.

JUSP – Como foi o início de sua trajetória na Universidade?

Bosi – Depois que terminei a faculdade, fui estudar literatura italiana em Florença. Quando voltei, recebi um convite para ser professor de Literatura Italiana na USP. Lecionei durante dez anos, mas sempre muito interessado em literatura brasileira. Em 1964, fiz uma tese sobre a narrativa de Pirandello e, em 1970, concluí minha tese de livre-docência, “Mito e poesia em Leopardi”. Nessa época, José Paulo Paes, que era consultor literário da Editora Cultrix, me convidou para escrever dois livros sobre literatura brasileira. Escrevi O pré-modernismo e a História concisa da literatura brasileira. Em 1970, houve a reforma universitária e os professores puderam migrar para outros departamentos. Naquela época, eu me sentia encaminhado nos estudos brasileiros. Passei então a lecionar literatura brasileira. É a estrada que continuo trilhando até hoje.

JUSP – Os alunos da época eram diferentes dos de hoje?

Bosi – As turmas eram pequenas, 20 ou 30 alunos, e mais homogêneas do que as atuais. O interesse cultural, e especificamente literário, era muito forte. A cultura de massa ainda não tinha invadido os cursos superiores, o que não significa que não tenhamos hoje alunos excelentes, mas, pesa-me dizê-lo, são minoria.

JUSP – Em seu percurso como professor, ensaísta e crítico literário, quais foram as suas prioridades e metas?

Bosi – Minhas prioridades são as mesmas dos meus colegas de letras: estudar com afinco os temas que devem ser objeto de ensino, ler o que é bom dentro e fora de nossa especificidade, amar o ensino e despertar a consciência progressista dos alunos para que resistam às mentiras do sistema capitalista e do imperialismo belicoso.

JUSP – A literatura brasileira pode ter um papel multidisciplinar?

Bosi – Acho que é preciso ter uma interação muito forte entre a literatura, a história social, a história da arte e a história do pensamento. A minha intenção é sempre fazer relações fortes entre o texto literário e o contexto. Desse projeto de vida nasceram outras obras que fui escrevendo ao longo do tempo, como A dialética da colonização, um livro publicado em 1992 que reflete os meus estudos sobre a história colonial dentro e fora do País. É uma visão geral desde a colônia até nossos dias.

JUSP – Por que dialética?

Bosi – Porque sempre procuro detectar a contradição nos autores. Eles resistem ao sistema e, ao mesmo tempo, aderem ao sistema. Existe uma dialética de não e de sim. O autor resiste ao sistema opressivo, mas existe o outro lado da cultura, que é conformista. Essa é uma dialética entre os dois pólos: resistência e conformismo dentro do mesmo autor. Ou seja, o mesmo autor pode ser inovador e, em outro momento, conformista. Há uma dialética interna. Isso sempre me preocupou muito. Então procurei mostrar, dentro da literatura brasileira, como esses pólos se alternavam. Não sei se consegui, mas foi a minha proposta.

JUSP – O que mais o senhor produziu dentro dessa proposta?

Bosi – Dentro dessa idéia de resistência, escrevi outras obras, entre elas um livro só sobre poesia, chamado O ser e o tempo da poesia, de 1977, em que há um capítulo que se chama “Poesia e resistência”. Nele, esse aspecto de contestação e rebeldia é aprofundado. Essa atitude de inconformismo aparece ainda em vários ensaios posteriores, que acabei reunindo em Literatura e resistência, um livro recém-lançado pela Companhia das Letras. Quis mostrar que a literatura não é só o espelho da sociedade. Ela é, às vezes, resistência à sociedade.

JUSP – Como assim?

Bosi – O espelho tem um lado transparente, que reflete a nossa imagem, mas também tem um lado opaco, o seu avesso. Nesse lado opaco existe uma resistência à imagem. A sociedade não se vê porque é o oposto da imagem dominante. Existe, então, uma dialética. A literatura tem as duas funções: a do espelho, onde está a imagem especular, e tem um lado resistente, que é o avesso da ideologia dominante, que a própria sociedade não percebe. Porém, os bons escritores percebem. Acredito que 99% dos livros que estão nas livrarias são espelhos. São as crônicas que estão aí, os best sellers, a literatura da massa. Agora, quem lê João Cabral, Carlos Drummond, Graciliano Ramos observa um questionamento através da crítica, da sátira, do humor. Acredito que esse é o eixo da minha trajetória cultural. Observar e buscar o avesso do espelho, o avesso da ideologia dominante. Defendo a idéia de que o belo é muito raro. Muitas vezes, destacamos só cinco ou seis bons autores que valem pelo século todo e uns dez mil em algumas décadas que acabam desaparecendo rapidamente. Digo aos meus alunos para irem direto ao melhor.

JUSP – Aos 66 anos, o senhor está se aproximando da aposentadoria compulsória, quando completar 70. Como o senhor vê essa situação?

Bosi – Acho que toda a Universidade deveria ter uma atitude coerente com os aposentados. Até o termo “inativo” é injusto. Será que o pensamento do professor de repente ficou paralisado? Creio que a Universidade poderia apoiar e incentivar os professores aposentados que, muitas vezes, estão no ponto alto de sua maturidade e, por motivos regimentais, não podem assumir funções que, no dia anterior, estavam cumprindo e que foram exercidas por uma vida inteira. Veja o exemplo do projeto Universidade Aberta à Terceira Idade, da USP, coordenado por minha mulher, Ecléa Bosi, que é um incentivo muito importante para os idosos que têm vontade de aprender. Deveria haver também uma luta, uma conscientização de toda a USP no sentido de valorizar os professores aposentados. Faço um apelo a todas as congregações, a todas as unidades, para que reconheçam o valor desses docentes e os tratem condignamente.

 

 




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