PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  
 
Leopoldo e Silva: aperfeiçoamento
   
 
Avansi: espaço para investigação

Passado e futuro: se fosse para escrever a história da Universidade de São Paulo, que momentos deveriam ser destacados?; e se fosse para imaginar o que vai acontecer nas próximas décadas, que razões alegar para justificar os prognósticos? O passado tem respostas múltiplas, mas o destaque é para o tempo em que as salas de aula eram em sua maioria ocupadas, em tempo integral, por professores comissionados da rede pública de ensino, que, depois de formados, voltavam à atividade docente nos ginásios e colégios, bem remunerados, respeitados e em condições de formar a próxima geração. Quanto ao futuro, depende de recuperar essa abertura para o aperfeiçoamento do ensino médio e do perfil do professor. Não só: depende também da continuidade da pesquisa básica — a razão de ser da universidade — ameaçada quando não atende diretamente às expectativas da sociedade produtivista e competitiva em que se insere. A análise — embora não tão compactada — é do professor de História da Filosofia Moderna e Contemporânea Franklin Leopoldo e Silva, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, que informa ter tido colegas cursando a academia como professores comissionados.

Outro professor da mesma unidade e pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária, Adilson Avansi de Abreu, concorda que a investigação é fundamental, mas também o é a Universidade assumir o papel de responder às necessidades da sociedade.

Da elite à classe média — Leopoldo e Silva considera que, depois da fundação da USP e da missão estrangeira encarregada de ensinar os primeiros passos à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um momento marcante foi a abertura, no final da década de 30 e início de 40, para um certo tipo de aluno que até então não tinha acesso à Universidade, o professor do que atualmente se chama ensino fundamental e médio, na época ginásio e colégio. Até então não havia cursos de formação de professores de português e de ciências em geral, limitados ao curso normal. Comissioná-los na Universidade em tempo integral, para depois retornarem aos locais de origem, foi idéia do professor Fernando Azevedo, um misto de geógrafo, cientista social, historiador e educador — figura típica de uma época em que as fronteiras do conhecimento ainda não estavam bem demarcadas. Foi um tempo de a Universidade — inicialmente dirigida para a formação da elite — se voltar para a classe média. Os professores comissionados eram de extração social que não lhes dava condições de freqüentar as grandes escolas que formavam bacharéis, como medicina, direito e engenharia. A eles se deve a excelente qualidade do quadro docente da rede pública paulista que havia pelo menos até os anos 60. “A USP era um projeto que, embora paulista, tinha repercussão nacional”, observa Leopoldo e Silva, e esse grupo de professores, liderado por Fernando Azevedo, tinha entre suas propostas a criação de obras didáticas, um setor muito deficiente na época e que precisava recorrer à importação de material. Não se tratava propriamente de obras didáticas como entendidas hoje; a própria pesquisa gerava esse tipo de livro. Escrevê-los era a preocupação dos professores estrangeiros e também dos seus alunos mais destacados, como José Cretela Jr., Antonio Candido, Cruz Costa, Florestan Fernandes, Luiz Pereira.

Por que a USP acabou perdendo essa vocação formadora de professores? Por duas razões, diz Leopoldo e Silva. Primeiro, em razão do avanço do ensino universitário, que levou a outras preocupações e ofereceu novos atrativos; segundo, pela desvalorização social e funcional do professor do ensino fundamental e médio. A expansão das escolas e da demanda do ensino público elevou os gastos públicos e comprimiu os salários dos professores. “Contudo, se a Universidade tivesse acompanhado o crescimento, a defasagem não teria ocorrido”, afirma Leopoldo e Silva. A prova ele situa na Europa, na França em particular, onde os professores de liceus e escolas primárias continuam tendo boa posição social, porque a universidade acompanhou a expansão da demanda. Uma terceira razão lembrada pelo professor do Departamento de Filosofia é a proliferação de universidades particulares, muitas de fraco nível e voltadas prioritariamente para o mercado.

Diante disso, à Universidade cabe retomar a formação de professores e ao Estado, recuperar o status do docente. “São muitas gerações perdidas num processo contínuo desde os anos 70 e é preciso começar a investir na formação acadêmica do professor. Antes (anos 50 e 60), não havia diferença entre professor universitário e professor de colégio, alguns destes eram até melhores. Depois, veio a formação rápida, a título precário, de mão-de-obra para atender à expansão.”

Com Fernando Azevedo, instala-se na Universidade, ainda nos anos 40, a consciência crítica, dando início ao processo de pensar o Brasil de maneira ampla e radical, do que resultaram novos rumos para a geografia (o próprio Fernando Azevedo), a sociologia (Florestan Fernandes e Octávio Ianni), a literatura (Antonio Candido) e a história. A efervescência renovadora e crítica ficou ativa, segundo Leopoldo e Silva, até 1968, ano do AI-5, quando o trabalho de esclarecimento da realidade nacional e de preparação de rumos políticos para o País foi quebrado pelo golpe militar de 64.

Seguiu-se uma fase de contestação, de radicalização crítica ainda maior, com a união das oposições. “Nos anos 60, dá-se a transformação do projeto nacional da elite em projeto revolucionário”, analisa Leopoldo e Silva. E a elite, vendo perdido o controle do processo, associou-se à oposição. É o paradoxo do liberalismo: “Só se lembra que é liberal quando vítima de outro poder”.

A última fase importante na história da USP é a da redemocratização, mas com forte componente tecnocrático. Leopoldo e Silva explica: “A Universidade, que durante todo o período militar teve de estar voltada para a sua própria preservação e autodefesa, agora faz uma reconstrução mais burocrática do que política. Até hoje a carga dos departamentos é de trabalho, não de decisão. Na verdade, não são nem instâncias burocráticas. O poder de decisão continua centralizado”. A própria autonomia da Universidade é só de gestão financeira. Ela é responsável pela gestão de recursos externos, sem poder de mudar nada. “Mais um fim que um meio”, diz o professor. “Oprime as finalidades que tinha que promover.”

Para o professor Adilson Avansi, nessa fase merece destaque a valorização das atividades de cultura e de extensão e a criação de núcleos de apoio, em espaços diferenciados dos departamentos. Além da conquista da autonomia, foram então criadas as Pró-Reitorias. Mas, antes disso, Avansi considera importante destacar a época de origem da USP, que coincidiu com o fim da Segunda República e a instalação do Estado Novo. Nesse contexto, o Estado de São Paulo perdeu representação política. Já no início do século passava por mudança no seu perfil, que passa de agrícola e rural para industrializado e urbanizado, dominado econômica e politicamente pela burguesia. Um espelho da velha Europa, especialmente a França. A USP aparece então como projeto de modernização e internacionalização, refletindo as condições do próprio País. As grandes escolas que a antecederam — e logo a ela incorporadas —, como as de Direito, Medicina e Politécnica, eram profissionalizantes. Faltava conhecimento especializado e a USP veio para isso.

Futuro — O que virá nos próximos anos e décadas depende, segundo o pró-reitor, de a Universidade saber assumir o papel de responder às necessidades da sociedade. “Sem isolamento em gabinete, mas com espaço para a investigação e um papel forte no processo de educação continuada.” Os meios técnicos mudam rapidamente; o importante é apoiar os conceitos e a essência”, conclui Adilson Avansi.

O professor Leopoldo e Silva observa que a Universidade está inserida em uma sociedade produtivista e competitiva e não pode deixar de se influenciar por esse perfil. Seus alunos vêm desse meio e refletem aqui seus interesses profissionais. “É a instrumentalização da Universidade para a ascensão privada do indivíduo e um desvirtuamento de uma instituição pública.” Segundo o professor, o aluno deveria encontrar o equilíbrio entre o privado e o público e tomar consciência de seu papel social.

Leopoldo e Silva está convencido de que a pesquisa básica vem sofrendo sucessivos golpes por não oferecer oportunidades ao mercado. “Enfraquece-se, assim, o núcleo básico da Universidade.” Se a situação persistir, ele teme que a lacuna que se cria hoje seja sentida profundamente dentro de 20 anos.

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]