Lá
estava ele, pronto para assumir novamente o trabalho. Seus braços
grossos eram a força motriz que fazia a moenda girar e espremer
os feixes de cana colocados no tabuleiro. O caldo verde fluía
sem cessar, enquanto escorria o suor por aquele rosto negro e por
todo o tronco robusto e desajeitado. As
mãos cheias de calos ardiam, mas não era permitido
parar. Dos
lábios, nem uma só palavra, sequer um monossílabo.
Os sons que materializavam a dor confundiam-se com os ruídos
produzidos pelas engrenagens e dissolviam-se. Passava ele despercebido
dentre os outros tantos nativos africanos que perambulavam pelas
instalações do engenho. Localizado no sopé
do Morro da Caneleira, no município de Santos – antiga
Capitania de São Vicente –, esse engenho foi um dos
primeiros a serem construídos no litoral brasileiro e um
dos pioneiros a alavancar a produção e exportação
de açúcar para o Velho Mundo.
Antes
da chegada dos negros escravos, foram os índios tupinambás,
que povoavam as matas do litoral, os responsáveis pela produção
do açúcar nas dependências do Engenho São
Jorge dos Erasmos – como foi batizado. Hoje, cinco séculos
depois da sua construção, o que se vê são
apenas os remanescentes arquitetônicos de modelo açoriano
de um dos primeiros centros de produção econômica
do Brasil.
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As
ruínas do Engenho dos Erasmos, em Santos: segredos
do passado |
Mas
o que aos olhos emerge como um cenário composto por tímidos
escombros soerguidos é, na realidade, um sítio arqueológico
de importância internacional, tombado pelas três instâncias
governamentais (municipal, estadual e federal). “O Erasmos
é um sítio arqueológico muito importante porque
representa uma expressão concreta daquilo que foi o início
da formação da sociedade nacional”, destaca
o arqueólogo José Luiz de Morais, do Museu de Arqueologia
e Etnologia (MAE) da USP, coordenador-geral das pesquisas atualmente
realizadas no Engenho dos Erasmos.
Ainda
que tenha uma atmosfera envolvida por certa nostalgia, o engenho
não carrega consigo apenas lembranças de um tempo
esquecido. Ao contrário: lá os seres e os objetos
estão muito presentes, contando eles mesmos a sua própria
história. É o que puderam comprovar arqueólogos
da USP e da Universidade Católica de Santos (Unisantos) em
junho passado, quando, em meio às escavações,
se depararam com restos de esqueletos, provavelmente de índios
do século 16, e com indícios de um sambaqui –
sítio arqueológico pré-histórico –
na encosta do engenho. A análise desses restos materiais
da cultura dos povos que lá viveram permite que os arqueólogos
remontem uma parte da história do País. “Nós,
arqueólogos, estamos habituados a estudar a via indireta
do trabalho humano: os objetos e as construções. Agora,
temos no engenho os próprios agentes da construção
desse cenário”, afirma Morais.
Uma
mandíbula – A existência de um suposto cemitério
no engenho é uma informação antiga, mas que
nunca havia se confirmado de fato. Como ponto de partida, a equipe
de arqueólogos teve algumas indicações feitas
pelo historiador Jayme Caldas, que, em 1957, havia inspecionado
buscas no terreno atrás desse cemitério. A única
informação precisa era de que ele ficava próximo
à “capela”. Restava aos arqueólogos descobrir
onde ela estava. “Fomos caminhando com as sondagens até
que a pá trouxe um fragmento de mandíbula. O cemitério
estava localizado”, conta a arqueóloga Silvia Cristina
Piedade, do MAE.
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Os
arqueólogos em atividade: escavações
revelaram ossos de 19 indivíduos |
O próximo
passo tomado pela equipe – formada por 17 pessoas, entre arqueólogos,
técnicos, estagiários e um auxiliar – foi organizar
um cronograma de trabalho, que exigiu um mês de escavações.
“Escavar por escavar não tem sentido. Tudo precisa
ser registrado de modo a recompor o que se está desmontando,
senão perdem-se materiais que poderiam fornecer informações
de extrema relevância”, alerta Morais. E foi dessa forma
que a equipe procedeu. Todo o material encontrado foi devidamente
fotografado, documentado e muitas amostras foram colhidas para análises
em laboratórios, tais como exames de DNA, parasitológico,
de ph. e de datação.
Os
arqueólogos escavaram 15 metros quadrados do terreno e lá
foram localizadas 33 ocorrências de ossos humanos de 19 indivíduos:
18 adultos e uma criança. Foram encontrados crânios,
dentes, ossos longos e esqueletos completos – um deles estava
articulado e estendido da mesma forma como foi enterrado. Mas o
que chamou bastante a atenção dos arqueólogos
foi a posição em que se encontravam os crânios
desses indivíduos. No primeiro quadrante aberto, estavam
todos voltados para o norte e nordeste e os ossos estavam todos
estendidos, o que revela a existência de um padrão
de enterramento. “Isso é característica de enterramento
indígena, porque os índios sempre enterravam seus
mortos com a face voltada para o norte e nordeste. Nós encontramos
nesse material muitos incisivos em forma de pá, que é
significativo de populações asiáticas. Então,
provavelmente os indivíduos desse quadrante são índios”,
explica a arqueóloga Silvia.
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O
engenho foi um dos primeiros centros de produção
econômica do Brasil |
Ela
ressalta que, no segundo quadrante aberto, percebe-se um outro padrão
de enterramento. “O que se vê é um emaranhado
de ossos longos, misturados com crânios, mandíbulas
e dentes que remetem a enterramentos secundários, ou seja,
o indivíduo foi tirado e enterrado novamente lá. Crânio
completo há apenas um, localizado bem abaixo dos outros e
que, pelas características morfológicas, provavelmente
é de um negro. Por
esse motivo, achamos que estamos lidando com um cemitério
que foi usado em várias épocas e não só
no início da operação do engenho.” Segundo
a arqueóloga, a presença desse crânio que possivelmente
é de um negro leva a crer que naquele quadrante todos os
ossos sejam de negros. “Mas eles não foram enterrados
ali. Disso temos certeza. Provavelmente foram retirados de algum
lugar e colocados lá dessa forma caótica. Mas essas
informações só se confirmarão com as
análises das amostras colhidas”, completa.
Os
arqueólogos optaram por não exumar os ossos. Depois
de feito um mapeamento detalhado que aponta exatamente o local,
o tamanho e a posição em que se encontravam, esses
ossos foram cobertos e novamente enterrados. “A idéia
era não exumar porque eles estão em péssimo
estado de conservação. Se fossem levados a algum laboratório,
chegariam lá apenas fragmentos”, diz Silvia. Legalmente,
todos os materiais coletados são bens da União e resta
ao MAE – detentor da autorização e responsável
pela pesquisa – encaminhar os procedimentos de análise
e guarda dos materiais. A equipe se ateve a processar esse material.
Oito amostras devem ser enviadas aos Estados Unidos para serem devidamente
datadas, mas, para isso, a equipe solicitará verba à
Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária
da USP, já que cada datação por radiocarbono
custa, em média, US$ 720. É possível que mais
material seja encontrado, tendo em vista que, até o momento,
menos da metade do cemitério foi escavado.
Arquitetura
e história – A USP e a Unisantos – que tem um
órgão especializado em arqueologia, o Instituto de
Pesquisas em Arqueologia (Iparq) – firmaram um convênio
em maio de 1995 com o objetivo de implementar ações
conjuntas relacionadas à pesquisa, proteção
e valorização do Engenho dos Erasmos, sendo ambas
responsáveis pelos trabalhos arqueológicos hoje desenvolvidos
no local. “Cabe à arqueologia, associada à arquitetura
e à história, proporcionar a revivescência do
engenho”, diz Morais.
O programa
de pesquisas arqueológicas no Engenho dos Erasmos foi concebido
por uma equipe do MAE e está dividido em duas fases. Na primeira,
que ocorreu entre 1996 e 1997 e foi coordenada pela professora Margarida
Andreatta, os arqueólogos realizaram o levantamento e prospecção
do local. “Realizamos
intervenções no solo e evidenciamos algumas estruturas,
fizemos limpeza da área e um trabalho de coleta”, destaca
Eliete Brito Maximino, arqueóloga da Unisantos, que também
participou daquela fase da pesquisa.
A partir
dos resultados obtidos, a equipe coordenada pelo professor Morais
se propôs, na segunda etapa, agora em andamento, a resolver
questões que ainda permaneciam como uma incógnita
para os pesquisadores e envolviam, a princípio, três
setores do engenho: o Pavilhão Saya – local onde antigamente
ficava instalada a moenda –, o cemitério com a capela
e o sambaqui. A equipe contou com o apoio financeiro da Fapesp.
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No
Engenho dos Erasmos, esqueletos do século 16 indicam
traços do Brasil colonial, enquanto os sambaquis remontam
a comunidades que habitavam o litoral paulista há milhares
de anos |
Os
arqueólogos fizeram algumas intervenções no
solo do pavilhão, com o intuito de verificar o que havia
feito Luís Saya – chefe do 4º Distrito da Diretoria
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
– nos anos 60, quando aquele cenário fora reconstituído.
De acordo com Morais, o registro arqueológico permitiu que
se obtivessem informações interessantes acerca das
intervenções que não foram anteriormente mapeadas.
Em seguida, os arqueólogos dedicaram-se à procura
do cemitério. A outra questão a ser respondida era
se, de fato, existia no engenho um sambaqui.
A equipe
realizou intervenções no então chamado terraço,
setor do engenho que fica próximo à capela. “Na
minha opinião, a intervenção que foi feita
dá a idéia de que lá existe um sambaqui de
encosta, extremamente perturbado pela exploração de
conchas que eram utilizadas desde o período colonial. A destruição
do sambaqui começa com o império português.
As conchas eram aproveitadas para fazer argamassa de assentamento
ou revestimento. Nós percebemos que em vários trechos
dos remanescentes arquitetônicos do engenho há argamassa
com conchas de sambaqui”, explica Morais, que está
trabalhando com sua equipe na consolidação dos dados
obtidos.
A equipe
pretende dar continuidade às pesquisas, mas adotando um outro
enfoque: a arquitetura. Os arqueólogos pretendem realizar
uma arqueografia do engenho, ou seja, um levantamento métrico
arquitetônico das ruínas, pedra a pedra. Mas, de acordo
com Morais, a decisão “fica a critério do conselho
curador do engenho, colegiado responsável pela discussão
e indicações de uso qualificado daquele bem cultural”.
A
herança de Erasmos Shetz
Nos
primórdios do século 16, vivia-se o auge do
comércio de açúcar na Europa e não
foi por acaso que o rei de Portugal, D. Manuel, decidiu expandir
a sua produção para a colônia. O Brasil
era o território ideal para o cultivo do produto, já
que tinha uma costa com extensão de 8 mil quilômetros
de terras férteis. Foi com essa intenção
que Martim Afonso de Souza desembarcou na Capitania de São
Vicente em 1532, onde fixaram-se os primeiros engenhos de
cana-de-açúcar.
A
partir da necessidade de infra-estrutura para abrigar todos
esses engenhos, Martim Afonso de Souza fundou em 1532 a vila
de São Vicente, no litoral paulista, primeiro município
do Brasil. Martim Afonso foi responsável também
pela construção, provavelmente em 1534, do Engenho
do Governador. A escolha do terreno deu-se em função
de dois importantes fatores: além de não pertencer
a ninguém, próximo a ele passava um riacho que
facilitava o transporte da cana e do açúcar
e permitia o funcionamento do engenho à base de energia
hidráulica. Na plataforma foram construídos
muros de arrimo, em posição de domínio
sobre a paisagem, de forma que o engenho fosse protegido dos
ataques dos índios pelo Morro da Nova Cintra, na retaguarda.
Seis
anos depois, o engenho foi adquirido por Erasmos Shetz, que
pertencia à tradicional família Shetz, de Antuérpia,
conhecida por imprimir sua marca em diversos produtos de forte
penetração no mercado europeu e por ter ligações
de caráter comercial com italianos, holandeses, franceses,
portugueses e alemães, além da Companhia de
Jesus. Erasmos
Shetz, dono de uma empresa em Leipzig, tinhas negócios
que envolviam uma casa bancária, seguros marítimos
e minas de cobre e prata. E, sem dúvida, o período
mais próspero do Engenho dos Eramos foi aquele em que
esteve sob o comando dos Shetz. Lá foram produzidos
cana para exportação, rapadura e aguardente
para o consumo interno. A
decadência da propriedade começou no século
18.
Em
1943, as ruínas foram adquiridas por Otávio
Ribeiro de Araújo, que, após lotear a propriedade,
doou o engenho para a então Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (FFCL) da USP. Por esse motivo, a
partir de 1955, como um bem imóvel, o engenho é
propriedade da USP, ficando hoje a cargo da Pró-Reitoria
de Cultura e Extensão Universitária propor políticas
de uso qualificado.
O
São Jorge dos Erasmos é o que permite maior
facilidade de acesso de pesquisadores e de estudantes, mas
não é o único exemplar daquele período
que resta na baixada santista. Segundo Eliete Brito Maximino,
arqueóloga da Universidade Católica de Santos
(Unisantos), existem mais engenhos seiscentistas na antiga
Capitania de São Vicente e, destes, o mais velho é
o Madre de Deus, fundado por Pero Góis em 1532. Localizado
na Ilha das Neves, o seu acesso torna-se um grande entrave,
já que é preciso ir de barco, mas Eliete ressalta
que há grande interesse por parte dos arqueólogos
de estudarem também aquele território, da mesma
forma como está sendo feito com o Erasmos. “Acho
que vale a pena resgatar esse outro engenho da região
porque são poucos os engenhos seiscentistas”,
destaca.
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Diferentes
padrões de enterramento dos esqueletos levam
os pesquisadores a achar que o terreno foi usado como
cemitério em diferentes períodos da história |
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