O
rei da Bretanha tinha uma filha, o rei da Inglaterra
tinha um filho. O rei da Bretanha era cristão e sua Úrsula
resplandecia de honestidade, sabedoria e beleza; o rei da Inglaterra
adorava ídolos, era temido e feroz, e seu filho, um pagão
ardente. O rei malvado quis casar seu filho com a virgem Úrsula.
Ela aceitou sob a condição de que lhe dessem dez acompanhantes
virgens muito distintas e mais mil virgens para cada uma das acompanhantes.
Exigiu também navios bem equipados para viajar durante três
anos, ela e todo o séquito de moças virgens. Tempo
suficiente para o noivo se decidir pelo batismo e ela se preparar
para o fim da virgindade. O pai da moça quis mais: determinou
que sua filha querida e as companheiras fossem protegidas por muitos
homens fortes. Tudo acertado, a notícia correu o mundo e
foi um deus-nos-acuda: de todos os lados acorreram virgens, homens
musculosos e todo tipo de gente interessada no espetáculo.
Bispos trouxeram virgens de suas dioceses, rainhas embarcaram no
projeto com suas filhas, magnatas acorreram curiosos. O papa Ciríaco
recebeu as donzelas em Roma com muito júbilo e renunciou
ao trono, sob protesto dos fiéis que o acusavam de trocar
o papado pelas virgens. Antes disso, ainda nos barcos, as virgens
e seus protetores fizeram exercícios de guerra, pressentindo
que Deus lhes ofereceria a coroa do martírio. Não
deu outra: quando se encontravam em Basiléia, sitiada pelos
hunos, todos — as 11 mil virgens, os protetores, o noivo já
convertido à fé católica, os bispos e o papa
renunciante — foram massacrados pelos bárbaros. E passaram
a morar no céu.
|
São Jorge e o Dragão/São Jorge
libertando a princesa, 1455
|
Na
Legenda áurea — Vidas de santos, de Jacopo (lê-se
Iácopo) de Varazze (1226-1298), que o professor Hilário
Franco Júnior, do Departamento de História, traduziu
do latim, anotou e apresentou, e a Companhia das Letras editou,
há material para muito roteiro de filme de aventura ou de
ficção, debates teológicos, historietas para
crianças e até recordes dignos do Guinness Book —
por exemplo, São Cristóvão, que transportava
nas costas pessoas que precisavam atravessar um rio, tinha de altura
12 côvados, isto é, 7,92 metros (e que altura teria
o pé-direito de sua casa?); e o exército das 11 mil
virgens dispostas ao martírio, alguém já encontrou
agrupamento mais singular? No calendário litúrgico,
são lembradas dia 21 de outubro.
|
Santo
Ambrósio e Vuolvínio, 830-840 |
Tempo
de sumas — Mas a história dos santos escrita pelo arcebispo
de Gênova não é apenas um delírio de
imaginação ou mil páginas de histórias
fantásticas. É obra significativa porque constitui
uma das grandes sumas (resumos) que caracterizaram o século
13, ao lado das sumas de teologia (São Tomás), poesia
(Dante Alighieri), ciência (Vicente de Beauvais) e arte (as
catedrais). Segundo Franco Júnior, o século 13 é
menos criativo que o século 12, mas é mais sistematizador;
se o 12 é considerado um primeiro Renascimento (na agricultura,
no comércio, na urbanização, nas literaturas
vernáculas, na música, nas universidades, na filosofia
escolástica, nas catedrais), o 13 sente a necessidade de
preservar e organizar a produção do anterior. E não
se pense que organizar uma suma seja apenas juntar material atabalhoadamente
e publicar; a empreitada exige espírito enciclopédico,
faro de pesquisador, critérios para selecionar o melhor entre
muitas fontes (eruditas, populares, apócrifas, orais), trabalhar
o conjunto, ordenando, sistematizando e redigindo em estilo próprio.
No caso da suma hagiográfica, a vida do mesmo santo tinha
muitas versões, era preciso fazer opções e
mostrar isso aos leitores. Jacopo o fez magistralmente e contou
tudo em estilo leve, direto e atraente. E a tradução
ficou melhor ainda.
Os
homens da Idade Média respiravam religião, transpiravam
milagre e, na falta de cinema, televisão, vídeos e
computador, faziam teatro religioso, o que é preciso levar
em conta quando se lê a Legenda áurea. Como observa
Franco Júnior, a questão da crendice e da superstição
é inerente a todas as religiões. Ainda
hoje, as pessoas tendem a considerar crendice e superstição
aquilo que o outro diz ou faz; mas o que elas mesmas dizem ou fazem
é expressão de seu Deus ou de seus santos. “Quando
saímos disso, com distanciamento, qualquer religião
tem dessas manifestações, que não são
racionais, mas subjetivas, intuitivas.” Apesar da tecnologia
e da racionalização dos tempos modernos, é
certo que as mentalidades não mudaram muito no século
21 e quase toda a gente continua acreditando em anjos, santos e
milagres e se identifica com textos medievais como o do arcebispo
dominicano. É certo que dos milagres atribuídos aos
bem-aventurados que o papa Paulo II costuma elevar ao grau de santidade
em suas perambulações pelo mundo se espera maior autenticidade.
A ciência e a modernidade o obrigam. Mas não será
de admirar se a Legenda áurea cair nas graças dos
leitores brasileiros e encabeçar as listas semanais dos livros
mais procurados, assim que se tomar conhecimento das cenas teatrais
e de suspense que permeiam a obra. Apesar do preço, R$ 85,00
(R$ 80,75 nas livrarias da Edusp), que para os padrões nacionais
não parece exagerado, tendo em vista o capricho do editor
e as ilustrações, selecionadas pelo tradutor.
|
Maria
Madalena,
século 13 |
Jacopo
de Varazze já tinha provado em outra obra — Crônica
de Gênova — ser um bom historiador, fiel a fatos e datas,
mas nesta vida dos santos não menciona o tempo de muitos
casos narrados e evita em geral citar datas, talvez porque o seu
objetivo imediato tenha sido apenas fornecer aos frades material
para preparar sermões. Mesmo assim, a consciência do
historiador obriga o religioso mendicante a alertar o leitor que
certas informações que aproveitou eram contestadas
por autoridades da época. Leia-se, a propósito, o
conto da assunção de Nossa Senhora ao céu,
de corpo e alma, uma polêmica que só foi resolvida
pela Igreja na forma de dogma em 1950.
|
Retrato
de São Francisco, 1278-1280 |
Coisa
de estranhar é que obra tão importante para a história
só tenha conseguido tradução para a língua
portuguesa agora, por iniciativa de um professor da USP, especializado
em Idade Média, e da editora Companhia das Letras. Logo depois
de escrita, Legenda áurea foi um sucesso de público
e de copistas — existem dela 1.100 manuscritos —, tendo
sido traduzida em catalão, alemão, francês,
holandês e checo. Isso até 1360. Entre
1470 e 1500, a Bíblia teve 128 edições e a
Legenda áurea, 156. Que na época em que apareceu não
tenha sido passada para o português, explica-se: a língua
estava em formação e Portugal era a periferia da Europa,
sem o dinamismo cultural e econômico da França, Alemanha,
Holanda e Espanha; mas que tenha sido necessário esperar
até 2003...
|
Apresentação
de Jesus ao Templo, 1316 |
Trecho
São Paulo, Eremita
Paulo,
o primeiro eremita, conforme o testemunho de Jerônimo
que escreveu sua vida, durante a violenta perseguição
de Décio retirou-se para um vasto deserto onde viveu
sessenta anos no fundo de uma caverna, totalmente afastado
dos homens. Esse Décio teve dois nomes, sendo também
conhecido por Galiano, e começou a reinar no ano do
Senhor de 256.
Vendo
os cristãos submetidos a toda sorte de suplícios,
São Paulo fugiu para o deserto. Nessa mesma época,
dois jovens cristãos foram capturados. Um deles teve
o corpo inteiro untado de mel e foi exposto, sob o ardor do
sol, às picadas das moscas, dos insetos e das vespas.
O outro foi posto numa cama das mais macias, situada num jardim
encantador, onde uma temperatura amena, o murmúrio
dos córregos, o canto dos passarinhos, o cheiro das
flores, eram embriagadores. Esse jovem foi amarrado com cordas
da cor das flores, de sorte que não podia se valer
nem das mãos, nem dos pés. Veio então
uma rapariga belíssima e impudica, que impudicamente
começou a acariciar o jovem, cheio de amor a Deus.
Sentindo na carne movimentos contrários à razão,
mas privado de armas para escapar do inimigo, ele cortou a
própria língua com os dentes e cuspiu-a na cara
da impudica, vencendo desta forma a tentação
pela dor e merecendo um troféu digno de louvores.
Preocupado
com estes e outros tormentos, São Paulo foi para o
deserto. Antônio, que se imaginava o primeiro a viver
como eremita, foi prevenido em sonho que existia alguém
muito melhor que ele na vida eremítica. Pôs-se
então a procurá-lo através das florestas,
onde encontrou um centauro, ser metade homem metade cavalo,
que lhe disse que se dirigisse à direita. Logo depois
encontrou um animal cuja parte inferior era de bode e a superior
de homem, segurando alguns frutos de palmeira. Antônio
conjurou-o em nome de Deus a dizer-lhe o que ele era. O animal
respondeu que era um sátiro, deus dos bosques conforme
a errônea crença dos gentios. Enfim, encontrou
um lobo que o levou à cela de São Paulo.
Mas
este pressentira que Antônio vinha, e como não
queria encontrar ninguém, fechara a porta. Antônio
rogou-lhe que abrisse, garantindo que caso contrário
não sairia dali, ficaria até morrer. Paulo cedeu
e abriu, e ambos se abraçaram. Quando
chegou a hora do almoço, um corvo trouxe uma dupla
ração de pão. Como Antônio ficou
admirado com aquilo, Paulo explicou que Deus o servia todos
os dias daquele modo, mas que dobrara a porção
em função de seu hóspede. Seguiu-se um
piedoso debate entre eles para saber quem era mais digno de
partir o pão: Paulo queria conceder essa honra a seu
hóspede, e Antônio a seu decano. Por fim ambos
seguraram o pão ao mesmo tempo e dividiram-no igualmente
em dois.
|
Meu
amigo Le Goff
Traduzir
latim? O mínimo que se imagina de quem se propõe
tarefa desse tipo hoje em dia é que tenha freqüentado
excelentes escolas de línguas, tenha estudado com grandes
mestres e se especializado na modalidade. Com Hilário
Franco Júnior não aconteceu nada disso. Ele
estudou latim oficialmente só nos primeiros anos do
antigo ginásio, no colégio Dante Alighieri,
até que essa disciplina (junto com o francês)
caísse do currículo, em mais uma reforma da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Depois
disso, a língua de Virgílio e da Igreja ficou
hibernando na cabeça de Franco Júnior durante
anos, enquanto ele se formava em contabilidade na Fundação
Getúlio Vargas e, como bico, dava aulas de história
geral no cursinho da GV. Coisas da família, pois o
seu pai, nascido em Itapira, era economista, contador e auditor.
Numa confirmação de que a primeira opção
profissional nem sempre é a melhor, o preparador de
alunos para o vestibular acabou gostando demais de história,
especialmente da do Egito, da Grécia e da Idade Média
— “o bicho da história foi tomando conta
de mim”. Prestou vestibular na USP, passou, mas por
pouco não perde a matrícula pela dificuldade
de conciliar atividades e horários. Acabou
se matriculando anos depois (portaria do reitor previa essa
possibilidade na época), começando o curso no
meio do ano, o que não era comum.
Mas
cadê o latim? Do latim e da necessidade de aprofundá-lo
Franco Júnior se lembrou ao perceber que muitos documentos
referentes à Idade Média, período pelo
qual acabou optando, eram escritos nessa língua. Comprou
então manuais do tipo “aprenda você mesmo”,
primeiro no Brasil, depois na França, país que
é para ele até hoje um ponto de referência
importante e que lhe forneceu também obras dirigidas
ao aprendizado do latim medieval. Do curso de graduação
em História na USP guarda a lembrança e os conhecimentos
de dois grandes professores: Pedro Moacir Campos (estudos
medievais) e Fernando Novais (história moderna) —
um grande erudito, outro grande sistematizador. Com a morte
de Moacir Campos, faltava em sua carreira a especialização
com orientação de um medievalista de renome
e é aí que apareceu a boa surpresa. Com projeto
pronto (o papel do mito de Adão na cultura medieval),
Franco Júnior escreveu para o maior de todos, o francês
Jacques Le Goff, que respondeu de pronto, aceitando com entusiasmo
o aluno brasileiro, e ainda mandou uma carta de recomendação
para ser apresentada à Fapesp, a agência financiadora
de pesquisas do Estado de São Paulo. A
partir daí foram três anos de trabalho conjunto,
de amizade, de idas e vindas a Paris e de produção.
O projeto inicial continua aberto e já produziu “vários
filhotes”. Os mitos e as utopias medievais são
seus temas preferidos e nessa área publicou, entre
outras obras, A Eva Barbada e Cocanha. Está preparando
nova coletânea de utopias.
Le
Goff tirou da cabeça do pesquisador brasileiro aquilo
que se dizia dos franceses — que são arrogantes
e menosprezam a gente de là-bas. Em homenagem aos 80
anos do mestre medievalista (que completa em 2004) a Associação
Brasileira de Estudos Medievais (Abrem) lhe dedica o número
5 de sua revista Signum. Em meio a colaborações
de pesquisadores brasileiros ligados a Le Goff, o dossiê
traz também um artigo do homenageado sobre Os Limbos,
um dos poucos textos do historiador francês que, segundo
observação dos editores, não estava ainda
traduzido para o português.
A
tradução dos 175 capítulos da Legenda
áurea deu trabalho e suor a Franco Júnior. Se
em geral o texto fluía bem, havia passagens em que
empacava horas até encontrar a melhor palavra, a frase
que transmitisse bem o espírito do original, e para
isso era necessário consultar edições
em várias línguas, ir a bibliotecas. As da USP,
diz o tradutor, embora tenham melhorado muito nos últimos
anos, ainda são pobres em literatura medieval. Ao contrário
da França, onde o leitor encontra 98% das obras pedidas
e, se não encontra, logo se providenciam exemplares
de bibliotecas de outros países. De oito a dez horas
de trabalho por dia, boa parte isolado em escritório
só conhecido de pouquíssimos amigos, venceram
os obstáculos e, quatro anos depois de combinar com
a editora o lançamento da vida dos santos, a obra está
na praça. Rica e colorida.
Se
é verdade o que diz Jacopo de Varazze sobre a origem
do nome do santo chará do tradutor, Hilário
pode vir de hilaris (alegre), de alarius (elevado em virtude)
ou ainda de hylé, “que significa matéria
primordial escura, e com efeito em suas obras há uma
grande obscuridade e uma grande profundidade”. Profundidade
tem mesmo, mas obscuridade o tradutor não deixou passar.
A cultura do Hilário da USP é eclética.
No curso de pós-graduação, que continua
tocando mesmo aposentado, o próximo assunto do ex-ponta-direita
amador é futebol. Ele vai analisar o esporte preferido
do brasileiro sob múltiplos aspectos, inclusive a similaridade
com alguns jogos de bola da Idade Média. Mais uma obra
à vista.
|
Legenda
áurea — Vidas de santos
Jacopo de Varazze
tradução
do latim, apresentação, notas e seleção
iconográfica de Hilário Franco Júnior
Companhia
das Letras
1.040 páginas
R$ 85,00
(R$ 80,75 nas livrarias da Edusp) |
|
|