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Sempre à espreita, a morte pode nos atraiçoar e chegar sem aviso, sem alarde. Pegos de surpresa, não teremos, como Manuel Bandeira, “a casa limpa/a mesa posta/com cada coisa em seu lugar”, para quando chegar a indesejada das gentes. Roberto Ventura não esperava a visita. Se tudo acontecesse como previa, o professor de Teoria Literária da USP terminaria, até o final de 2002, a biografia de Euclides da Cunha na qual trabalhava havia mais de uma década. Mas seus planos foram interrompidos. Ventura morreu em agosto daquele ano, depois de um acidente de carro, quando voltava da tradicional Semana Euclidiana, em São José do Rio Pardo, e o livro, tal como ele o concebera, nunca viria a ser concluído.

O que restou, na memória de seu computador, foi Euclides da Cunha – Esboço biográfico, um arquivo de 189 páginas que, organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana, é agora publicado pela Companhia das Letras. “Não é o livro que Roberto publicaria por razões literárias, sobretudo, e pela falta de ênfase nas interpretações que ele gostaria de frisar”, explica Carvalho. Para ele, o texto encontrado pode ser classificado como um “guia sumário”: “guia”, porque obedece à ordem cronológica – o que não deveria ser o modelo narrativo que escolheria, segundo indicações de Ventura –, e “sumário” porque lhe falta o desenvolvimento das principais interpretações que fez sobre o autor de Os sertões. Entre elas está a relação que estabeleceu entre a vida do escritor-engenheiro e a de Antônio Conselheiro.

Ruínas da igreja velha de Santo Antônio, em Canudos

Euclides e Conselheiro seriam uma espécie de duplo, tal qual o do escritor argentino Jorge Luis Borges, com vidas paralelas e invertidas. A idéia chega a se insinuar em passagens do livro – ambos eram órfãos, sofreram com o adultério e tiveram suas trajetórias marcadas pela República, um lutando contra ela, o outro, a favor –, mas foi em conversas com os amigos que Ventura deixou pistas mais contundentes sobre onde queria chegar. “Para o círculo íntimo de Roberto”, conta Carvalho, “nem Euclides nem o Conselheiro foram os mesmos depois que esse duplo começou a circular entre nós.”

Apoiado na vasta documentação que reuniu, Ventura percorreu o País seguindo todos os passos do escritor. Ele ainda arrisca-se a apresentar Antônio Conselheiro como uma projeção psicanalítica das maiores obsessões de Euclides: o temor da sexualidade, da irracionalidade, do caos e da loucura. O livro do falecido professor da USP revela um Antônio Conselheiro alfabetizado, coisa rara para os padrões da época, e defensor de um cristianismo primitivo – um tanto distante do ameaçador fanático à espera da volta de D. Sebastião que aparece nas páginas de Os sertões. A imagem que a história guardou do líder de Canudos não seria mais que uma construção literária do escritor.

Para reinterpretar a guerra de Canudos, que cobriu como correspondente de O Estado de S. Paulo, e escrever seu livro, Euclides usou fontes orais, como os poemas populares e profecias religiosas, encontrados em papéis e cadernos nas ruínas do povoado destruído. Tomou por base teorias apocalípticas que erroneamente teria atribuído ao Conselheiro.

Os manuscritos realmente produzidos por Antônio Maciel, a que Euclides não teve acesso enquanto escrevia, revelam “um sertanejo letrado, capaz de exprimir corretamente suas concepções políticas e crenças religiosas, que se vinculavam a um catolicismo tradicional”, explica Ventura. Ao contrário dos textos citados por Euclides, os sermões de Conselheiro não teriam nenhuma referência a D. Sebastião, e Canudos, diferente de outros movimentos religiosos, como os de Juazeiro e Contestado, não seria uma comunidade predominantemente milenarista, com esperanças na criação do paraíso na Terra.

República, a musa traiçoeira – Existe em Euclides da Cunha – Esboço biográfico, conforme alertam os editores em nota, uma certa desigualdade entre os capítulos e subcapítulos. Alguns, como o que trata do cotidiano familiar do escritor e da sua reação ao adultério da mulher, Ana, ainda estavam em fase de desenvolvimento. Outras partes, no entanto, já têm um caráter mais analítico. Ventura descreve em detalhes a relação de Euclides com episódios históricos, como a proclamação da República e a Revolta da Armada, esmiúça sua incerta carreira profissional, que oscilava entre o exército, a engenharia e o jornalismo, e também não se furta a uma análise interpretativa de Os sertões.

Barracão às margens do rio Pardo, onde Euclides escreveu Os Sertões

Publicado cinco anos depois do fim da Guerra de Canudos, Os sertões foi um absoluto sucesso para os padrões da época. Em oito dias, mais da metade da edição, de cerca de 600 exemplares, havia sido vendida. O livro surpreendia ao desprezar o tratamento meramente documental e descritivo e impregnar a narrativa histórica com formas literárias. Além de relatar o conflito, seu autor revelava ambições de romancista – com uma escrita abarrocada e de alto apuro estilístico – e de cientista, tratando do clima e da vegetação do semi-árido, das formações geológicas, da raça e dos costumes. À sua concepção naturalista da história somou o uso de imagens próprias ao teatro. Deu à natureza dos sertões ares de cenário trágico, antevendo nos seus galhos secos e retorcidos as cabeças degoladas dos sertanejos. Com um ritmo binário, que alternava partes rápidas e lentas, e uma sintaxe labiríntica, recriou ainda as oscilações do clima, entre a seca e a chuva, e as formas conturbadas de suas plantas e habitantes.

Sem que sejam feitas afirmações categóricas ou oferecidas explicações simplificadoras, o que surge, através das páginas da biografia de Ventura, são características da formação e da vida do escritor-engenheiro que impregnaram a sua obra maior. Leitor de Victor Hugo e do historiador Jules Michelet, Euclides adotava, desde os tempos de estudante, uma postura romântica, oscilando entre a melancolia e a utopia. Sentindo-se desajustado no mundo urbano e civilizado, onde a beleza e a moral se degradavam e ameaçavam a linha reta de caráter que traçara para si, reivindicava o título de último dos românticos, “não já do Brasil apenas”, teria dito, “mas do mundo todo, nestes tempos utilitários”.

Além do romantismo, outra forte marca de seus escritos são o positivismo e o determinismo, cujas origens podem ser encontradas em sua formação militar. Sem muitos recursos para custear os estudos, Euclides ingressou, em 1886, na Escola Militar da Praia Vermelha, na época um centro de irradiação das idéias positivistas, evolucionistas e republicanas. Benjamin Constant, que se tornaria um dos líderes do golpe militar que proclamou a República, foi seu professor e ídolo. Tratava, além da álgebra geométrica – cadeira pela qual era responsável –, de assuntos filosóficos e políticos, como as leis que regem a história e a ciência, que racionaliza o governo dos povos, iluminando-lhes o futuro.

Pouco antes do fim da monarquia, Euclides começa a escrever para jornais, entre eles A Província de São Paulo, depois chamado O Estado de S. Paulo. Apresentada como uma etapa histórica necessária, em conformidade com as leis gerais da evolução, a República será sempre tema presente em seus artigos. O tom inicial é entusiasta, mas já em 1890 cederia lugar às primeiras críticas ao novo regime. O País não havia encontrado um novo rumo, a corrupção alastrava-se e o sonho republicano começava a ruir. Quando chegaram as notícias do conflito de Canudos, o escritor teria visto aí uma oportunidade para regenerar a República que perdera o seu rumo. “A Guerra de Canudos preenchia o vazio político e existencial em que Euclides se encontrava desde o fim da luta heróica pela República”, escreve Ventura. A cobertura da guerra, contudo, acabaria por lançá-lo em um vazio ainda maior.

À esquerda, o escritor Euclides da Cunha.
Ao lado, seu biógrafo Roberto Ventura

O tom das reportagens que envia permanece patriótico, e ele silencia sobre as atrocidades da guerra. No calor da hora não soube erguer a voz. No entanto, Os sertões, livro que escreveria em São José do Rio Pardo enquanto fiscalizava as obras de reconstrução de uma ponte, seria bem diferente daquele que planejara anos antes, quando partiu em um navio em direção à Bahia. Ao fazer uma espécie de autocrítica da sua omissão, ele retomou a história da campanha militar tratando-a como crime, responsabilizando o exército e o governo pelo massacre de uma cidade, cuja população fora estimada entre 10 mil e 25 mil habitantes. Sua fé no progresso fora atirada no vácuo ao ver a barbárie que tragava soldados e conselheiristas. “Das páginas escritas em um pequeno barracão”, conta Ventura, “no canteiro de obras, às margens do rio, surgia uma nação em ruínas que devorava os seus próprios filhos.”

Euclides da Cunha – Esboço biográfico
Roberto Ventura
organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana
Companhia das Letras
349 páginas
R$ 42,00.

 

 




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