Por
quatro dias, a pequena Paraty, localizada quase que democraticamente
a meia distância do Rio de Janeiro e de São Paulo,
reassumiu seu destino de cidadela imperial. Seus cerca de 30 mil
habitantes reverenciaram a Coroa inglesa, realizando, pacificamente,
um desvario de enredo de escola de samba. E, como pede a tradição
britânica, quem governou foi uma mulher, Liz Calder, sócia
da Bloomsbury – editora mundial da conhecidíssima série
Harry Potter –, assistida pelo historiador Eric Hobsbawn,
uma das últimas reservas de lucidez da vida cultural contemporânea.
Vamos,
primeiro, à rainha. Liz Calder, com seus olhos azulíssimos
e seus esvoaçantes cabelos brancos, prestou ao Brasil, sua
pátria de eleição, uma das maiores provas de
amor de que é capaz uma mulher: apaixonada, usou todo o seu
prestígio para trazer para nosso país o conceito de
festival literário, comum já na Europa e nos Estados
Unidos, mas desconhecido por aqui. Descrentes, patrocionadores e
órgãos públicos e uma certa elite que admira
a limpeza das ruas de Londres e cospe nos transeuntes no Brasil
disseram não. Mas, abraçada ao seu sonho, acreditando
que a cultura liberta, Liz Calder, com a ajuda de uns poucos loucos
visionários, construiu a 1ª Festa Literária Internacional
de Paraty (Flip), entre 31 de julho e 3 de agosto, um evento que,
queiram ou não, já faz parte do calendário
cultural internacional.
Agora,
o rei. Eric Hobsbawn estava entre esses loucos visionários.
Aliás, manteve-se louco e visionário. Lenda viva –
desculpem-me o lugar-comum –, podia ser visto caminhando sozinho
pelo calçamento irregular de Paraty, que visitava pela segunda
vez; foi flagrado em conversas bem-humoradas com cozinheiros e copeiros,
após o café da manhã, na pousada onde estava
hospedado; um começo de tarde entreolhou-o em meio a pedras
e árvores a examinar um bambu-gigante nas imediações
de um restaurante fora da cidade. Curioso de tudo, importava-lhe
tanto o público que boquiaberto bebia suas palavras no palco
da Casa de Cultura, quanto os trabalhadores que rapidamente recolhiam
o lixo após cada apresentação. Assediado,
mostrava-se incansável, tanto nas solicitações
das tevês e fotógrafos de jornais, quanto nas de jovens
que pediam-lhe uma imagem congelada para sempre.
Um
palco armado às pressas na Praça da Matriz, patrocinado
à última hora por uma estatal – incrível
a insensibilidade do governo para a importância do evento
–, deu a senha para o início da festa. Engalanada,
a cidade assistiu, sem acreditar, a um pocket show em homenagem
ao poeta e compositor Vinícius de Morais, que reuniu Antônio
Cícero, Adriana Calcanhoto, Chico Buarque e o ministro da
Cultura, Gilberto Gil. Além de declamarem, Adriana, Chico
e Gil cantaram, para delírio do público.
Durante
os três dias de programações oficiais e extra-oficiais,
o sonho de Liz Calder foi tomando corpo. O que inicialmente consistia
numa tímida festa transformou-se numa enorme confraternização.
Os hotéis, pousadas e casas para alugar – que nessa
época do ano já estão praticamente vazios –
ficaram lotados. Os bares, restaurantes, botequins e assemelhados
esparramaram cadeiras pelas ruas. Ingleses, norte-americanos, latino-americanos,
europeus (do continente...), brasileiros e portugueses falavam uma
só língua: aquela que reverencia a palavra como arte.
Nas
esquinas, acotovelavam-se as notícias. “Olha lá,
aquele não é o Julian Barnes?” “Nossa,
como o Hanif Kureishi é bonito!” “Meu Deus, eu
abracei o Ferreira Gullar!” “Dizem que viram o Verissimo
dando uma canja numa festa ontem à noite...” “Alguém
aí conseguiu ingresso para a palestra do Don DeLillo?”
“Eu estava ontem conversando com o Milton Hatoum...”
“O Marçal Aquino estava sentado naquele bar da esquina...
eu estava bem pertinho dele...” “Aquela lá é
a Patrícia Melo, eu já vi ela uma vez...” “Aqui
ó, o autógrafo da Ana Maria Machado.” “Doutor!
Doutor!” (Grito de populares nas ruas, abordando Drauzio Varella).
Para
quem menospreza a cultura brasileira, a Flip foi o contraponto.
Quem imaginava, em maio (ou mesmo em junho) deste ano, que pessoas
iriam se deslocar até Paraty para assistir aos escritores
lendo seus textos e ainda pagar por isso?! Quem iria acreditar que
não só isso aconteceu como muitos e muitos não
tiveram a oportunidade de participar desse grande congraçamento
porque não havia mais ingressos, nem lugar para ficar? E
os patrocinadores? Qual deles apostaria que um evento reunindo escritores
num país de analfabetos daria algum retorno de mídia?
E os jornais não se ocuparam da Flip? As tevês não
falaram da Flip? Até mesmo o Jornal Nacional, o mais caro
espaço publicitário brasileiro, não abriu espaço
para a Flip? Isso significa algo? Fica no ar a pergunta.
Mas,
falemos de alegria. A alegria que se estabeleceu em Paraty. A dos
escritores, pela oportunidade de manter contato com os leitores,
abraçá-los, acarinhá-los, dialogar com eles.
A dos leitores, de poder conversar com os escritores, esbarrar com
eles nas esquinas, falar sobre literatura. A dos promotores, de
ver vingar o projeto, contra o pessimismo de muitos, e orgulhar-se
de moldar os passos seguintes. A dos comerciantes e hoteleiros,
que viram seus bares e restaurantes e suas pousadas cheios numa
época do ano em que as férias já acabaram.
A da população em geral, que conseguiu emprego, num
momento em que o emprego se esfuma.
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