Depois
do petróleo e do álcool, agora “o biodiesel
é nosso”. Essa que deve se tornar a mais nova integrante
da matriz energética brasileira promete mais que economizar
divisas. Quer ser ecologicamente correta, 100% renovável,
nacional e socialmente eficaz. O biodiesel brasileiro pode levar
riquezas às regiões mais pobres do País, minimizar
desigualdades sociais e gerar boa parte dos empregos prometidos
nas últimas eleições presidenciais.
E não
se trata de sonho acadêmico. Uma equipe de técnicos
de 11 Ministérios da República vem ultimando relatório
sobre a viabilidade do produto como fonte de energia alternativa.
Estima-se que já em 2005 esteja implantado um amplo programa
de biodiesel em escala comercial no Brasil. O combustível
deve ser utilizado em caminhões, máquinas agrícolas,
ônibus, embarcações, trens e na geração
de energia em usinas termoelétricas.
Outra
iniciativa, desta vez do Congresso Nacional, se refere à
recente aprovação de emenda que visa ao “fomento
à pesquisa e ao desenvolvimento de projetos para viabilizar
a produção e o uso de biodiesel, baseados em tecnologia
e fornecimento nacional”. A emenda foi apresentada pela deputada
federal Mariângela Duarte (PT-SP) ao Plano Plurianual 2004-2007
e prevê a aplicação de R$ 15 milhões
em dez projetos. Eles devem visar ao desenvolvimento regional e
à inclusão social na substituição de
importação de petróleo e diesel. Contemplarão
instalações de indústrias de biodiesel de pequeno
porte em locais estratégicos, incentivando o desenvolvimento
tecnológico, econômico e socioambiental de pequenas
e médias propriedades rurais.
Tecnologia
inédita – Colocar em prática um modelo de produção
com tecnologia eficiente, 100% nacional e “verde” é
a base para tornar realidade esses projetos. Essa é a proposta
do Laboratório de Desenvolvimento de Tecnologias Limpas (Ladetel)
do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. Liderados
pelo professor Miguel Joaquim Dabdoub, os pesquisadores oferecem
ao programa nacional de implantação do biodiesel na
matriz energética brasileira (Probiodiesel) o projeto BiodieselBrasil.
Usando
tecnologia inédita, a equipe conseguiu produzir um combustível
de alta qualidade a partir da reação química
entre o etanol (álcool da cana-de-açúcar),
óleos vegetais ou gorduras animais e catalisadores (substància
química que promove a transformação). O uso
eficiente do etanol no processo é que faz todo o diferencial
do BiodieselBrasil. O professor Dabdoub explica que a tecnologia
que utiliza o metanol (álcool derivado de petróleo)
é dominada e amplamente comercializada na Europa e Estados
Unidos. Já com o etanol não ocorre o mesmo, “devido
à disponibilidade limitada e ao alto custo do álcool
de cana nesses mercados”. Além
disso, existe outro agravante: “a falta de capacitação
técnica adequada dos fabricantes para usar o etanol como
substituto do metanol”.
Para
sorte do Brasil, o etanol não é tóxico –
ao contrário do metanol –, tem origem vegetal, é
100% renovável (não polui nem deixa resíduos)
e é nacional. O Brasil é o maior produtor mundial
desse álcool. E mais: pode produzir biodiesel etílico
com tecnologia totalmente nacional por meio de um método
novo e economicamente viável desenvolvido pelos pesquisadores
do Ladetel.
Dabdoub
garante que a tecnologia evoluiu de tal forma que “hoje é
possível produzir com alta eficiência o biodiesel de
etanol, empregando qualquer óleo vegetal”. E essa tecnologia
já está disponível para ser transferida e aplicada
na produção comercial. A baixa viscosidade do biodiesel
produzido “está perfeitamente de acordo com os requerimentos
de viscosidade dos mais modernos motores, que utilizam bombas de
injeção ciclorrotativas e de injeção
eletrônica, fazendo dele o maior competidor do diesel derivado
de petróleo”, assegura.
O Brasil
e o mundo sabem fazer biodiesel de metanol. “A tecnologia
é fácil”, garante Dabdoub. Mas por que utilizar
um produto que pode colocar em risco a segurança dos trabalhadores,
uma vez que é tóxico, quando se pode usar o álcool
de cana? Como se a agressão à saúde dos trabalhadores
e ao ambiente não bastassem, o metanol tem a desvantagem
econômica.
Atualmente,
o Brasil importa cerca de 15% do petrodiesel necessário para
a movimentação de sua frota de transporte –
o que representa uma remessa de divisas equivalente a US$ 1,2 bilhão
por ano somente nesse segmento. Quanto ao metanol, o País
já importa 50% do que usa para outras finalidades. “Imagine
para produzir biodiesel”, alerta o pesquisador.
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Desenvolvido
por pesquisadores da USP, o biodiesel deverá trazer inúmeros
benefícios sociais e econômicos quando estiver
integrado à matriz energética brasileira: “Nos
últimos anos o governo investiu em ciência e tecnologia
e o resultado disso é que o Brasil hoje pode produzir
biodiesel em larga escala, sem precisar importar nenhuma tecnologia”,
afirma o professor Miguel Dabdoub (abaixo) |
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Pensando
nessa realidade e já alcançando nova etapa do projeto,
a equipe do Ladetel e seus parceiros avançam nos processos
produtivos. Eles desenvolveram uma unidade industrial de produção
barata – com custo em torno de R$ 35 mil – e de “montagem
simples”. Essa microusina é capaz de produzir 90 litros
de biodiesel por hora. Graças à tecnologia que emprega,
a produção de biodiesel etílico tornou-se mais
econômica e eficiente em relação a outros modelos.
As reações químicas ocorrem em cerca de 30
minutos, ao contrário do processo europeu e americano, que
demora seis horas. “Com isso somos 12 vezes mais produtivos”,
afirma Dabdoub.
O incremento
agrícola é outro item positivo nesse processo. Na
produção de biodiesel, muitos tipos diferentes de
óleos podem ser utilizados: soja, girassol, milho, pequi,
dendê, babaçu, macaúba, algodão, amendoim
e mamona. O Brasil é o maior produtor de soja do mundo, porém
maior destaque deve ser dado a outras oleaginosas. Da soja, obtém-se
apenas 400 quilos de óleo por hectare, enquanto o girassol
rende o dobro e o amendoim, 900 quilos por hectare. Além
disso, a extração do óleo de amendoim e girassol
é muito mais simples que a da soja.
O rendimento
das palmeiras é muito superior ao dos grãos. O babaçu
rende 1.600 quilos por hectare, a macaúba, 4.000 quilos e
o dendê, 5.900 quilos. O pequi, fruto originário do
cerrado brasileiro, rende 3.200 quilos de óleo por hectare.
A melhor
notícia – comprovada cientificamente – é
que, a partir de qualquer um desses óleos, a tecnologia vinda
da USP de Ribeirão Preto garante um biodiesel de alta qualidade
e ainda pode gerar muitos empregos se o biodiesel for implantado
na matriz energética brasileira. Levaria desenvolvimento
regional através das plantações de oleaginosas.
Nas Regiões Norte e Nordeste, isso ocorreria com a produção
de óleos de dendê, babaçu, amendoim e mamona.
Na região do cerrado, com o óleo de pequi. Na região
do semi-árido, com o amendoim forrageiro.
Com
a utilização do biodiesel etílico, “geraríamos
emprego mesmo com a mecanização da colheita de cana.
Geram-se dois empregos a cada 100 hectares colhidos”, comenta
Dabdoub. Mas,
num programa em que o B-5 (mistura de 5% de biodiesel para 95% de
diesel) fosse empregado, “geraríamos 10 mil empregos
só com a cana, 190 mil com a soja e até 1 milhão
de empregos novos com outras culturas de óleo vegetal”.
Testes
e parceiros – A legislação vigente no Brasil
autoriza testes com biodiesel na proporção de até
20% para 80% de diesel de petróleo. As pesquisas coordenadas
pelo grupo do Ladetel utilizam o biodiesel etílico –
a partir de qualquer tipo de óleo vegetal (virgem ou residual)
e álcool de cana. Para sanar as incertezas da indústria
automobilística, resistente a um biocombustível de
álcool de cana até então desconhecido, uma
série de parcerias foi estabelecida para os testes em motores.
Com
a PSA-Peugeot Citröen, estão sendo realizados testes
em veículos leves simultaneamente na França e no Brasil.
O biodiesel de Ribeirão Preto passou pelos testes de qualidade
e foi aprovado para a utilização dentro das normas
e padrões europeus. Com a Valtra, a segunda maior fabricante
de tratores do mundo, foram aprovadas diversas misturas do biodiesel,
tanto em testes de bancada (no laboratório) quanto de campo.
Para os trabalhos, os pesquisadores da USP contam com a colaboração
da Unesp de Jaboticabal, através do Departamento de Engenharia
e Mecanização Agrícola. São realizados
testes com misturas que vão do B-5 ao B-100.
O rendimento,
consumo, tração e capacidade de puxar carga são
medidos por um sistema de aquisição de dados informatizado
(Datalog). Esse mesmo acompanhamento é realizado com os motores
de veículos leves da PSA-Peugeot Citröen na Escola de
Engenharia de São Carlos (EESC) da USP. Os testes de campo
são feitos em Ribeirão Preto, pela equipe do Ladetel.
A América
Latina Logística (ALL), do Grupo Delara, com sede em Curitiba
(PR), tem a concessão da malha ferroviária do Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, além de parte
do Estado de São Paulo. Essa parceira colocou duas locomotivas
rodando com biodiesel B-25, obtendo grande sucesso. O interesse
da ALL é evidente, já que consome 15 milhões
de litros de diesel por mês em suas locomotivas e outros 2
mil litros no setor rodoviário. O biodiesel puro B-100 tem
sido testado em caldeiras, caminhões e geradores de energia
também com ótimos resultados. Os geradores são
fornecidos pela empresa Branco.
Nas
pesquisas são utilizados motores a diesel sem nenhuma adaptação.
A maior parte da produção de biodiesel é obtida
a partir de óleos virgens doados por outra parceira, a Cooperativa
dos Agricultores da Região de Orlândia, a Carol, maior
do País e responsável por 2% da produção
de grãos do Brasil.
Outra
fonte de óleo, não tão volumosa mas importante
sob o ponto de vista ambiental, é a dos residuais. O Ladetel
mantém um subprojeto do Projeto BiodieselBrasil que utiliza
óleos descartados de refeitórios universitários
da USP – nos campi de Ribeirão Preto, Pirassununga,
Piracicaba e São Paulo – e da Unesp de Jaboticabal.
Além
desses, o laboratório recebe cerca de 100 mil litros de óleo
por mês doados pela rede de lanchonetes McDonald´s do
Estado de São Paulo. Essa parceria visa a uma ação
social: ajudar o Grupo de Apoio à Criança com Câncer
(Gacc), que já recebe assistência de outros setores
da USP e dessa mesma rede de lanchonetes.
Inclusão
social – O projeto BiodieselBrasil foi concebido para render
frutos para o Brasil e seu programa social. Esta é uma questão
estratégica da qual o professor Miguel Dabdoub não
abre mão. Empresas privadas, governos e órgãos
internacionais estão atentos ao caminhar do projeto no Brasil,
mas Dabdoub acredita nos valores nacionais. Ele lembra que nos últimos
15 anos o governo brasileiro investiu em pesquisas científicas
e tecnológicas e, como resultado, hoje o País conta
com recursos humanos altamente capazes no setor. “Centros
de pesquisa e universidades brasileiras estão qualificados
para assessorar e, com a indústria nacional, construir usinas
necessárias para que o País passe a produzir biodiesel
em larga escala, sem necessidade de importar tecnologia nenhuma”,
garante o professor.
Essa
fórmula valoriza o conhecimento nacional e estimula o desenvolvimento
de regiões pobres, com o incremento da agricultura e de produtos
tipicamente brasileiros. Estimula também a educação
ambiental, aumentando a consciência ecológica da alternância
de culturas agrícolas, diminuindo a emissão de poluentes,
reciclando produtos orgânicos e residuais (com o uso de óleo
descartado de frituras) e utilizando todos os subprodutos do processo
do biodiesel, que é 100% renovável. Além do
biocombustível, obtém-se também glicerina (utilizada
em indústria de higiene e limpeza, cosmética e hospitalar)
e um fertilizante.
O processo
– Iniciando o processo, Dabdoub substituiu o metanol pelo
etanol, usando tecnologia amplamente difundida para produção
de biodiesel. As taxas de conversão foram baixas: parte do
óleo vegetal não se transformou em biodiesel. A
separação das fases também apresentou problemas.
Na reação do álcool com o óleo vegetal
é gerado um novo produto – o biodiesel – e um
subproduto, a glicerina. Esta precisa ser retirada porque, se queimada,
gera um composto chamado acroleína, que é tóxico
e corrosivo ao motor.
Mas
a extração da glicerina é importante também
por outro motivo. Ela tem um alto valor econômico, por ser
utilizada na indústria farmacêutica, de cosméticos
e nas indústrias de explosivos, passando a ser fundamental
a sua comercialização para tornar viável o
biodiesel. É que a glicerina com alta pureza pode ser comercializada
a US$ 1.300 a tonelada.
O desafio
do professor nesse momento era aumentar a taxa de conversão
e separar a glicerina, além de refinar de forma eficiente
o biodiesel, até conseguir um padrão de qualidade
que atendesse às necessidades de qualquer motor diesel. Levou
cerca de dois anos e chegou ao resultado esperado mudando o catalisador.
No caso do metanol, esse catalisador é a soda cáustica.
Já nas pesquisas de Ribeirão Preto, a substância
utilizada como catalisador não é divulgada por estar
em fase de registro de patente. Além dele, foi utilizado
um co-catalisador, que cumpre a mesma função do catalisador,
que é a de promover a reação e acelerar o tempo
da reação. Para surpresa do professor, o co-catalisador
resolveu um dos grandes problemas: separou completamente o biodiesel
da glicerina e tornou o processo equivalente ao metílico.
Outra grande surpresa foi a taxa de conversão, que variou
de 98% a 100%, e ainda diminuiu o tempo de reação
de seis horas para 30 minutos. Nesse momento estava desvendado o
segredo para a produção do biodiesel etílico.
Para o BiodieselBrasil ser totalmente ecológico, só
faltava sua produção não ter nenhuma interferência
de química tóxica. Para tanto, pesquisas em estágio
avançado já demonstraram a eficiência do emprego
de enzimas extraídas de microorganismos na produção
do biodiesel etílico, substituindo catalisadores químicos.
A utilização dessa biotecnologia traz inúmeras
vantagens. A transformação total, eficiente e limpa
de óleos vegetais em biodiesel etílico, com as enzimas
biológicas, está sendo realizada em parceria com o
professor Pietro Ciancaglini, do setor de Bioquímica do Departamento
de Química da FFCLRP.
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