O
“Minhoca” não apareceu na festa de
encerramento da semana de recepção aos calouros. Estranho
que ele não viesse, mas o suspense não durou muito.
A notícia foi como uma bomba. Um amigo seu chegou correndo,
esbaforido. Disse que tinha certeza de que ele havia caído
“na mão dos homens”.
Era
um sábado. Dia 17 de março de 1973. Os novos alunos
das Ciências Sociais comemoravam sua entrada na USP. “Minhoca”
era o apelido de Alexandre Vanucchi Leme, 22 anos, estudante do
Instituto de Geociências da USP. Naquele sábado, ele
fora preso pelo aparelho policial da ditadura militar. Nunca se
soube como, nem onde, nem em que condições. Naquele
mesmo dia, um pouco antes das 19 horas, seu corpo dava entrada no
IML.
Para
reconstituir os dias posteriores à morte de Vanucchi Leme
e seus desdobramentos, que não são poucos, o jornalista
Caio Túlio Costa escreveu Cale-se. Lançado no final
de 2003, o livro recorre a um ritmo cinematográfico para
contar 70 tormentosos e decisivos dias na história dos 70
anos da USP. O
recorte preciso, exatos 70 dias, não é aleatório.
É esse o período que separa a morte de Vanucchi Leme
do ponto máximo da mobilização para denunciá-la,
um célebre show de Gilberto Gil, na Cidade Universitária.
Nele, a canção Cálice, parceria de Gil com
Chico Buarque, seria executada publicamente pela primeira vez.
Foi
também nesses dias de luto que o movimento de massas, reprimido
desde 1968, ressurgiu e que os grupos políticos, que depois
ajudariam a criar os grandes partidos de hoje, como o PSDB e o PT,
se formaram. “Líderes atuais desses e de vários
outros partidos mais à esquerda estavam presentes naquele
show, naquele momento, naquelas discussões, naqueles problemas”,
explica o jornalista.
Durante
um ano, Túlio Costa dedicou-se à pesquisa para o livro.
Nos arquivos do Dops, resgatou panfletos, relatos de assembléias
e outros documentos – tudo aquilo que os estudantes e também
a polícia produziram. O autor acredita que a ditadura militar
não seja um período da história do Brasil devidamente
estudado. “Momentos importantes dessa época ainda não
foram pesquisados”, disse ele ao Jornal da USP. “Para
isso, também é preciso que os arquivos sejam abertos.
O acesso aos arquivos é de importância determinante
para a reconstituição da história.” Para
esclarecer as lacunas dessa história que ainda não
havia sido contada por inteiro, ele também se valeu de uma
série de entrevistas com pessoas envolvidas no episódio.
Aldeia
gaulesa – Até 1973, a esquerda estava enfraquecida,
dividida em grupos clandestinos. Os líderes estavam no exílio,
fora do País ou na luta armada. Foi naquele momento que a
história mudou.
A missa
de sétimo dia que os estudantes organizaram por Alexandre
Vanucchi Leme pode ser considerada o primeiro protesto antigovernamental
de grande porte da década de 70. Na
Catedral da Sé, conduzida por Dom Paulo Evaristo Arns, figura
respeitada até pelos generais, a celebração
reuniu milhares de pessoas. Entidades da sociedade civil, que até
então preferiam fechar os olhos, começavam a se levantar
contra a tortura. Vista sob esse ângulo, a morte do estudante
pode ser considerada historicamente tão importante quanto
a do jornalista e professor da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP Vladmir Herzog, morto pelos militares dois
anos depois.
A morte
de Vanucchi Leme era diferente das que se viam até então.
Ele não era um terrorista, não participava da luta
armada. Era um estudante. Para justificar sua morte, o DOI-CODI
criou, como de costume, uma história falsa. Disseram que,
numa tentativa de fuga, ele fora atropelado por um caminhão.
O rapaz foi enterrado como indigente, sem caixão, em uma
cova rasa. O corpo, a família só conseguiria reaver
dez anos depois, em 1983.
No
campus da USP, nas salas de aula, nos centros acadêmicos,
os estudantes se mobilizavam. A revolta contra o assassinato do
colega do Instituto de Geociências e outras 44 prisões
de alunos da USP fazia ressurgir o movimento estudantil. A ditadura,
vivendo ainda as glórias do milagre econômico, começava
a perder o controle. Os militares pouco entenderam. Quanto mais
ampliavam sua máquina de tortura e repressão, menos
medo causavam.
As
discussões se acirravam entre os estudantes. De um lado,
um grupo que acreditava que os alunos deveriam privilegiar questões
ligadas à qualidade do ensino. Do outro, aqueles que queriam
denunciar as prisões. Como nas histórias em quadrinhos
de Asterix, sonhavam a Universidade como uma espécie de aldeia
gaulesa, o reduto de obstinada resistência ao Império
Romano. Se ninguém conseguia resistir em todo o Brasil, então
a USP deveria ser um ponto de luta. A pretensão era enorme,
com ares quase megalomaníacos. Mas deu certo.
Quem
continuava na Universidade deveria trabalhar para mudar aquela situação.
Os estudantes, então, conceberam um plano: chamar Gilberto
Gil. Em um dos momentos mais críticos da ditadura, em condições
totalmente hostis, o músico tropicalista fez um show na Escola
Politécnica para denunciar as prisões em curso.
Com
Chico Buarque de Holanda, Gil acabara de compor a canção
Cálice. A música, que deveria ser apresentada no festival
que a gravadora Phonogram promovera naquele ano, havia sido censurada
no palco, com a retirada do som dos microfones. Seriam os alunos
da USP os primeiros a ouvi-la.
Num
claro gesto de desobediência civil, o cantor também
levantou assuntos delicados: política, movimento estudantil,
arte engajada versus arte pura, o imperialismo americano. O show
que deveria ser de 30 minutos durou três horas. Era aquele
o momento do desequilíbrio, da virada.
“Pode-se
dizer que o show organizado pelos estudantes da USP, com a participação
de Gilberto Gil, 70 dias depois da morte de Vanucchi, foi o fato
novo que conseguiu reunir cerca de mil pessoas num evento cultural
e reforçou a alternativa de um movimento político
estudantil voltado para a mobilização pacífica
das massas – contra o regime, mas também contra a idéia
de oposição armada”, explica Túlio Costa.
Depois do silêncio imposto pelo AI-5, em 1968, os estudantes
voltavam a se reagrupar e a questionar tanto os métodos da
luta armada como os dos tradicionais partidos de esquerda. Novas
correntes políticas, que não estavam atreladas aos
partidos, ganham espaço. É o caso da Liberdade e Luta,
a Libelu, corrente de inspiração trotskista, e da
Refazendo, primeira diretoria eleita para o DCE Livre da USP. No
dia 26 de março de 1976, o DCE foi reconstituído e
batizado com o nome de Alexandre Vanucchi Leme.
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Cale-se
de Caio Túlio Costa
Editora A girafa
350 páginas
R$ 43,00 |
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