Um
dos fatores que muito contribuíram para o bom desempenho
da Universidade de São Paulo nos últimos anos, e ajudaram
a elevar o seu conceito em nível mundial, é o exercício
da autonomia financeira, aliado a uma forte responsabilidade social.
Está implantada na Universidade a cultura da autonomia nas
quatro dimensões destacadas na lei constitucional: didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial. De acordo
com a professora Nina Ranieri, secretária-geral da USP, a
autonomia das universidades existe como garantia de fidelidade aos
princípios e aos fins que nortearam a criação
dessas instituições, isto é, o ensino, a pesquisa
e a extensão. Principalmente quando se trata de escolas públicas,
a tríplice finalidade, que afinal se resume no benefício
da sociedade, existe desde o nascimento, na Alta Idade Média,
das primeiras universidades, quando o ensino na Europa era monopolizado
pela Igreja. Ensino e pesquisa supõem liberdade nas decisões,
ensina a professora da Faculdade de Direito. “No longo processo
de institucionalização das universidades, o que esteve
em jogo foi a elaboração social do princípio
de que o saber e a difusão de conhecimentos eram um tipo
de trabalho específico cujo exercício – tanto
quanto o dos demais ofícios – exigia organização
própria e certa independência em relação
aos interesses da Igreja e do Estado”, escreve Nina no seu
livro Autonomia Universitária (Edusp). Daí porque
os poderes soberanos que reconheceram a autonomia das universidades
transformaram-se logo em agentes de sua retração,
temendo um poder paralelo representado pelo saber: “Os privilégios
reais e pontifícios que visavam garantir as universidades
em face das oposições locais constituíram débitos
a serem saldados. Presas a esse esquema perverso, as instituições
aceitaram a situação jurídica que as colocava
sob a dependência dos poderosos, e assim tiveram a autonomia
e a liberdade intelectual desnaturadas oficialmente sob a forma
de ‘privilégios’”. Depois de ter alcançado
o apogeu no século 13, o exercício da autonomia declinou
e só voltou a ter resgatadas as suas potencialidades no século
19, sob a influência do liberalismo.
No
século 20, a autonomia universitária foi inserida
nas Constituições de muitos países, notadamente
na espanhola e na francesa. No Brasil, em 1988 – “As
universidades gozam de autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão
ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa
e extensão” (art. 207) –, mas já era prevista
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), considerando-se
as universidades como instituições que mereciam legislação
acima da lei ordinária. Nina
Ranieri lembra que não se trata de ser autônomo em
relação ao Estado, sem controle, mas de ser autônomo
dentro dos limites fixados pelo ordenamento constitucional tendo
em vista os finc do Estado, os quais a universidade, como órgão
público, deve necessariamente perseguir. Nem a autonomia
deve ser alegada para defesa de privilégios, “característica
do corporativismo moderno que preconiza a organização
das instituições como grupos de interesses individuais,
sem levar em conta o contexto social mais amplo onde atuam, o que
deturparia a essência da universidade”.
A autonomia
didática reconhece às universidades a capacidade de
organizar o ensino, a pesquisa e as atividades de extensão:
a criação, modificação e extinção
de cursos; definição de currículos e sua organização;
estabelecimento de critérios e normas de seleção
e admissão de estudantes; determinação de oferta
de vagas em seus cursos; estabelecimento de normas e critérios
para avaliação do desempenho dos estudantes; outorga
de títulos acadêmicos etc. Tudo isso se refere às
universidades públicas; as particulares têm os mesmos
fins gerais, mas desfrutam de autonomia própria, de direito
privado. São mais autônomas que as públicas,
mas também enfrentam problemas específicos. Exemplo:
a quem cabe decidir sobre cursos e currículos, às
entidades mantenedoras ou às mantidas; às mantenedoras
ou aos professores? Na opinião de Nina, esse poder deve caber
às congregações. Mais ou menos como nas universidades
federais: o Ministério da Educação decide,
mas ele não é o detentor da autonomia.
A USP
como exemplo – Na Universidade de São Paulo está
a prova de que a autonomia se conquista no dia-a-dia. Nina Ranieri
lembra que a autonomia está no plano da fundação
da Universidade e antes mesmo do decreto do governador do Estado,
de 89, que concedeu às universidades públicas autonomia
de gestão e recursos derivados de parcela do ICMS, a Consultoria
Jurídica da Universidade já exigia um orçamento
separado. A aprovação do seu Estatuto foi outro marco
de independência em relação ao governo. A conquista
e a cultura da autonomia administrativa fazem da USP parâmetro
para o Brasil e, na opinião da professora, o balanço
dos resultados até agora é altamente positivo.
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Nina:
autonomia com limites |
A mesma
avaliação faz o ex-reitor e agora secretário
de Estado do Meio Ambiente José Goldemberg. Segundo ele,
a autonomia administrativa e a destinação às
universidades públicas do Estado de um percentual do ICMS
“fez a diferença entre a água e o vinho”.
Antes do decreto do governador Orestes Quércia, sempre que
faltava dinheiro a Universidade tinha que pedir ao governo, o que
criava constrangimentos e não estimulava a responsabilidade
dos gestores. Agora, entre outras prerrogativas, a própria
Universidade fixa os salários dos seus professores. “Se
dependesse do sistema antigo, os vencimentos dos docentes”,
diz Goldemberg, “certamente estariam no patamar dos técnicos
do governo”.
Outro
ex-reitor, Flávio Fava de Morais, atualmende presidindo a
Fundação da Medicina, descreve assim a autonomia administrativa:
é como se um pai desse mesada para o filho, dizendo: dou-lhe
a mesada e nenhum tostão a mais. Mostre-me que você
sabe usar o dinheiro adequadamente. Não para a droga, nem
para jogo, nem desperdice; você será o responsável.
Foi assim com a Universidade, que mostrou ao governo que não
precisa temê-la. Ela faz da mesada o melhor que pode, para
orgulho do próprio governo. Assim deveria ser em outros setores,
na Secretaria da Saúde, por exemplo: você tem tantos
pacientes, dou a mesada, você atende tantos pacientes, quero
uma gestão de resultados. Quem administra bem ganha credibilidade
e pode esperar mesada maior. Quanto à autonomia didática,
prossegue Fava, é um princípio da universidade no
mundo inteiro e pressupõe liberdade de expressão e
de pensamento. Na pesquisa, o professor não pode ser sectário,
só ensinar a ideologia em que acredita. Tem que ministrar
todo o leque de pensamento, e os alunos que se identifiquem, criticamente,
com o que lhes parecer melhor e escolham o caminho a seguir. Se
houver patrulhamento sobre aquilo que o professor chama de liberdade,
não haverá universidade, mas tirania, lavagem cerebral.
Será
que o modelo de autonomia das universidades públicas paulistas
pode ser adotado pelas federais? “Digo sempre que pode e ela
não foi dada ainda por uma questão política
do governo federal, que é míope e não vê
que a autonomia universitária seria antes de tudo um grande
negócio para ele mesmo”, afirma Fava. Mas o ex-reitor
não se entusiasma com os vários projetos de reforma
universitária em debate no País. “O
Brasil está adquirindo uma coisa perigosa, que vira tradição;
parece que a rotina é reformar sempre.” Segundo Fava,
o importante é fazer corretamente aquilo que se tem como
missão: ensinar bem, pesquisar bem e fazer boa prestação
de serviços. Cumprindo bem a missão cai-se naquele
provérbio: não me importa o regime, quero saber quem
vai mandar. Importa mais saber quem está na gestão
do processo. O resto é tapa-buraco.
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Brito
Cruz: heterogeneidade |
Para
Nina Ranieri, em princípio o exemplo da USP poderia ser seguido
pelas federais, mas tudo depende fundamentalmente da responsabilidade
institucional e de garantia de repasse de recursos. Existem 52 universidades
federais, algumas bem sólidas (RJ, TS, PE, MG), outras nem
tanto, e essa diversidade complica o processo. Do ponto de vista
de gestão, seria interessante conceder autonomia apenas às
instituições consolidadas, mas esse procedimento enfrentaria
restrições do ponto de vista jurídico. Se a
autonomia que o Brasil concedeu às universidades fosse como
a da Espanha (artigo 27, nš 10, da Constituição),
mais restrita, seria correto do ponto de vista do direito considerar
autônomas algumas federais e outras não; como está,
apenas os centros universitários poderiam ser beneficiados.
Também
o reitor da Unicamp, professor Carlos Henrique de Brito Cruz, considera
difícil o processo de concessão de autonomia plena
às federais, por entender que a grande heterogeneidade delas
requer muita atenção. Mas poderiam ter alguma autonomia
de gestão se houvesse orçamentos plurianuais confiáveis.
Sobre a USP, septuagenária, Cruz disse: “É um
excepcional modelo para nós”.
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