Um
procedimento ainda pouco comum no mundo pode representar a cura
para uma jovem carioca de 22 anos portadora de leucemia. Na semana
retrasada, ela recebeu, na medula óssea, células-tronco
provenientes de cordão umbilical. O
transplante foi realizado no Instituto Nacional do Câncer
(Inca), no Rio de Janeiro, o único do País a possuir
um banco público desse tipo de célula. O doador, entretanto,
não era brasileiro, pois não se encontrou uma amostra
compatível com a paciente, e por isso foi necessário
trazer o material de Londres. Com capacidade de armazenamento para
3 mil unidades e um estoque de cerca de 500, o Inca ainda não
realizou nenhum transplante com doador brasileiro.
Muitos
cientistas crêem que o uso desse tipo de técnica para
tratar doenças genéticas ou degenerativas ainda sem
cura promete ser a grande revolução na medicina do
século 21. Entre as enfermidades a ser potencialmente combatidas
estão, por exemplo, diabete, males como Parkinson e Alzheimer,
esclerose múltipla, doenças do sangue, traumas da
medula espinhal e distrofias musculares. Para alguns tipos de leucemia,
já se sabe que células-tronco obtidas de cordão
umbilical podem ser implantadas na medula para substituir as células
doentes – o que se fez no caso da jovem paciente do Inca.
“As
células-tronco de cordão são muito melhores
para esse tipo de transplante do que as células da medula”,
diz a professora Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos
do Genoma Humano do Instituto de Biociências da USP. “Só
isso justificaria a criação de muitos bancos de cordão
públicos no País, o que é apenas questão
de vontade política, pois a tecnologia já existe.”
As
células-tronco são células imaturas capazes
de gerar células-filhas diferenciadas – ou seja, podem
dar origem a qualquer tipo de célula existente no organismo,
nos diversos tecidos e órgãos, inclusive os do sistema
nervoso. Entre os cerca de 75 trilhões de células
que um ser humano adulto possui, são encontrados em torno
de 200 tipos celulares distintos. Todos eles derivam das células-tronco.
O processo de diferenciação que vai gerar o material
encontrado nos tecidos humanos – da pele, do sangue, das cartilagens
e dos músculos, por exemplo – é regulado, em
cada caso, pela expressão de genes específicos na
célula-tronco. Compreender em detalhes esse processo e controlá-lo
são os desafios que a ciência enfrenta na atualidade.
Estima-se que, dados esses passos, os tratamentos efetivos poderiam
se tornar realidade em cerca de dez anos.
Prioridade
– A pesquisa feita na USP, nesse campo, não deixa nada
a dever em relação ao que se faz nos países
desenvolvidos. No Centro de Estudos do Genoma Humano, um grupo tem
trabalhado com células-tronco de cordão em cultura.
“A idéia é tentar conseguir com que essas células
ce diferenciem em músculo”, explica a professora Mayana.
“Essa, para nós, é a prioridade número
um.” Outro grupo está trabalhando com células-tronco
de camundongos. Na USP, também existem pesquisas sendo feitas
em várias unidades, como o Instituto de Química e
a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
Mayana
Zatz: contra moléstias genéticas que matam milhares
de crianças e adolescentes, as células-tronco
são um instrumento que não pode ser desprezado,
diz a pesquisadora |
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Para
a professora Mayana Zatz, é importante diferenciar três
conceitos que muitas vezes são embaralhados: a clonagem reprodutiva,
a clonagem terapêutica e a terapia celular com células-tronco.
“A clonagem reprodutiva humana, que seria a tentativa de produzir
uma cópia de um indivíduo, é condenada por
todos e deve realmente ser proibida”, diz. A clonagem terapêutica
é, na definição da médica, “apenas
um aprimoramento das técnicas hoje existentes para cultura
de tecidos, que são realizadas há décadas”.
“A vantagem é que, ao transferir o núcleo de
uma célula de uma pessoa para um óvulo sem núcleo,
esse novo óvulo, ao se dividir, gera células potencialmente
capazes de produzir qualquer tecido em laboratório”,
explica. O tratamento seria nos moldes dos transplantes de medula
óssea, e cada doença teria sua própria estratégia
de abordagem. Entretanto, no caso de doenças genéticas,
não seria possível usar as células da própria
pessoa, porque todas têm o mesmo defeito genético.
“Vamos
imaginar que as células-tronco de cordão não
sirvam para músculos. Qual a última alternativa? Usar
células-tronco provenientes de embrião”, diz
Mayana. Dotada da incrível capacidade de gerar todos os tipos
celulares existentes num organismo adulto, as células-tronco
embrionárias estão no centro da principal discussão
ética envolvida nas pesquisas na área da engenharia
genética. Há dúvidas sobre, por exemplo, de
onde viriam os embriões a ser utilizados nas pesquisas, e
se não surgiria, num país com tanta carência
econômica, um mercado clandestino de embriões gerados
por “úteros de aluguel”. Para alguns setores,
tanto da comunidade científica quanto religiosa, o embrião
já representa uma vida humana e não pode ser manipulado
sem que se leve em conta essa dimensão. “O respeito
à vida humana começa desde a fase embrionária.
Não podemos transformar embriões humanos em matéria-prima
para a produção de remédios em bancadas de
laboratórios”, afirma a médica Eliane Azevedo,
coordenadora do Núcleo de Bioética da Universidade
Estadual de Feira de Santana, da Bahia, e autora de vários
livros e artigos sobre genética, medicina e bioética
(leia texto na página ao lado).
Ética
e promessas – Embora respeite os argumentos contrários
à
utilização dessas células, a professora Mayana
Zatz acredita que há casos em que seu uso em pesquisas se
justifica. Mayana
é presidente da Associação Brasileira de Distrofia
Muscular, entidade que atende principalmente crianças portadoras
dessa doença genética, causada pela ausência
da proteína distrofina. Sua esperança é obter
tratamentos nos quais as células-tronco implantadas repovoem
o músculo, substituindo o que não produz a distrofina.
Uma das fontes de embriões poderiam ser as próprias
clínicas de fertilização assistida, que em
muitos casos acabam jogando fora o material não aproveitado.
“É justo deixar morrer uma criança ou um jovem
afetado por uma doença neuromuscular letal para preservar
um embrião cujo destino é o lixo?”, pergunta
a professora. “Queremos ter acesso a esses embriões
que são descartados, para fabricar células para a
terapia celular. Estamos
falando de pessoas vivas que estão morrendo, mas o que estão
nos dizendo é: ‘Não posso fazer nada por você
porque manter aquele embrião congelado é mais importante
do que a sua vida’. É esse o paralelo que temos que
fazer.”
Para
o professor Marco Segre, da Faculdade de Medicina da USP, essa discussão
é importante, mas não pode paralisar a ciência.
Nome de referência em bioética no Brasil, o professor
diz que as pesquisas se justificam mesmo que seus potenciais resultados
sejam ainda promessas no horizonte. “Se a ciência não
vai à busca das promessas, não anda. A elevação
da expectativa de vida que se deu nas últimas décadas,
de cerca de 45 anos para mais de 70 anos, é em razão
do desenvolvimento da ciência”, comenta. Segre ressalta
que a sociedade pode e deve criar mecanismos para coibir os abusos
tanto nas pesquisas quanto na aplicação de seus resultados.
Exemplos
disso são a criação, em 1996, da Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), ligada ao Ministério
da Saúde, e a disseminação dessas comissões
pelo País. “O medo excessivo do avanço da ciência
é paralisante, mas o risco que vamos assumir só depende
de nós. Há uma fantasia da ‘síndrome
da ladeira escorregadia’, como se fôssemos cair nela
e nunca mais parar. Precisamos pensar que não vamos fazer
aquilo que não quisermos”, defende.
Para
Segre, a idéia de que a vida começa no momento da
fecundação – um dos principais argumentos dos
adversários da clonagem terapêutica – é
um dogma. “Por essa concepção, podemos dizer
que ela começa antes, porque o óvulo e o espermatozóide
têm vida.” O professor considera que também se
poderia dizer que a vida começa no momento em que o embrião
se fixa no útero ou em que o coração do feto
começa a bater. “O status que concedemos ou não
ao embrião é uma questão religiosa e cultural,
e não científica, mas os religiosos querem passar
essa responsabilidade à medicina”, afirma.
Cientista
critica uso de
embriões humanos
“Há
um desvio ético no diálogo com a sociedade.
Estão sendo feitas muitas promessas irreais de cura
a partir de pouca realidade científica. Estamos falando
apenas de perspectivas, de coisas que não são
para amanhã nem depois de amanhã. Os
pacientes portadores de doenças candidatas a tratamento
têm direito à informação científica
fiel, à realidade e não a pressupostos.”
Quem afirma é a professora Eliane Azevedo, da Universidade
Estadual de Feira de Santana, na Bahia, que tem doutorado
em Genética nos Estados Unidos e pós-doutorado
na Inglaterra. Para a cientista, ex-reitora da Universidade
Federal da Bahia, “criou-se um alvoroço”
em relação ao uso de células-tronco embrionárias
comparável ao provocado com o anúncio das primeiras
pesquisas com terapia gênica, no início dos anos
90. “Já temos 14 anos de experimentação
em terapia gênica sem que nenhuma tenha tido sucesso
suficiente para ser liberada para uso clínico –
e muitas apresentaram sérias complicações,
inclusive morte. Infelizmente a ciência também
é vítima da sedução da mídia
e do impulso mercadológico.”
A
professora diz que o acúmulo de embriões excedentes
pelas clínicas de fertilização foi um
grande erro. “Esses milhares de embriões congelados
incomodam muita gente. Eles são uma preocupação
para os doadores, para quem os produziu, para quem agora os
está conservando. Existe um custo para essa conservação.
Se forem liberados para a pesquisa, quem assumirá esse
custo? Quem receberá o pagamento? As clínicas?
Os pais? Os doadores? Não ficarão os embriões
humanos como mercadoria? Não temos legislação
para definir nenhum desses conflitos”, argumenta.
No
momento em que se decide sacrificar alguns para tratar outros,
defende Eliane Azevedo, “estamos criando castas”.
“Há um limite nisso. É eticamente condenável
sacrificar uma vida para salvar outra. Por caminhos como esse
nunca construiremos o respeito a nós mesmos.”
Na visão da professora, “a realidade da morte
está inserida em nossa programação genética”.
“Devemos lutar contra as doenças e o retardamento
da morte, sim, sem dúvida. Porém, não
podemos promover mortes precoces de uns para adiamento da
morte de outros.”
A
professora ressalta que, em relação à
questão ética da pesquisa com humanos, mudanças
profundas estão acontecendo no cenário da ciência
no mundo inteiro desde os anos 70. “Nos Estados Unidos
foram feitas experiências com seres humanos comparáveis
às dos nazistas. O cientista era o único juiz
moral de sua própria pesquisa: só ele decidia
que pessoas seriam utilizadas nas experiências e como
as usava. Isso
mudou de forma irreversível. Não se pode, em
nome do avanço da pesquisa e da ciência, passar
por cima da dignidade humana.”
Dizendo
não entender o porquê da insistência no
uso de células-tronco embrionárias, Eliane Azevedo
defende que “existem outras avenidas que podemos trilhar”,
utilizando-se o material proveniente de pessoas adultas. “O
Brasil tem excelentes pesquisadores na área genômica,
tenho grande respeito por eles e reconheço o valor
do trabalho desses pesquisadores”, diz. “A ciência
brasileira não sentirá falta de embriões
humanos em seus laboratórios. Saberá, como sempre
o fez, buscar formas criativas de enriquecer o saber científico.”
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A
clonagem segundo as religiões
A
votação do projeto de lei sobre biossegurança
na Câmara dos Deputados uniu mais uma vez as bancadas
evangélica e católica da Casa, tradicionais
adversárias na luta por concessões de canais
de rádio e TV ou nas demandas proselitistas. São
cerca de 120 os deputados abertamente identificados com os
maiores grupos cristãos do Brasil. Só a Frente
Parlamentar Evangélica, criada em 2003, soma cerca
de 60 deputados e 3 senadores, dois terços deles ligados
à Igreja Universal do Reino de Deus e à Assembléia
de Deus. O líder da Frente, deputado Adelor Vieira
(PMDB-SC), defende que “a existência como ser
humano começa com a
fusão do óvulo com o espermatozóide,
a fecundação, sendo o embrião já
uma vida”. O Jornal da USP ouviu a
opinião de representantes de religiões sobre
clonagem terapêutica, uso de células-tronco de
embrião humano e clonagem reprodutiva. Os
comentários estão a seguir.
Padre
Márcio Fabri dos Anjos, doutor em Teologia, vice-presidente
do Núcleo de São Paulo da Sociedade Brasileira
de Bioética e membro da Câmara Técnica
de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado
de São Paulo (Cremesp): “A Igreja Católica
vê uma questão de fundo: o respeito com que tratar
o embrião humano. Não faz oposição
à terapia celular nem ao emprego de células-tronco.
Em última análise nem mesmo pretende definir
o embrião inicial filosoficamente como pessoa humana.
Mas propõe enfaticamente que, desde o momento da fertilização,
o concepto seja tratado como pessoa humana. Esse posicionamento
ético não se fundamenta apenas em convicções
religiosas. A Igreja busca apoio para além delas em
argumentações racionais de cunho científico.
Muitas delas encontram adesão também fora de
espaços religiosos e são conhecidas no debate
mundial
sobre o assunto. A possibilidade de obtenção
de células-tronco sem fertilização já
é conhecida, notadamente a partir do cordão
umbilical e da medula. Essa possibilidade tem sido um argumento
a mais, enfatizando que há alternativa para o avanço
das pesquisas, ao mesmo tempo em que se respeita o embrião
humano.
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Sobel:
sim à clonagem terapêutica |
Rabino
Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação
Israelita Paulista: “A meu ver, a clonagem
terapêutica deve ser não só permitida
como incentivada. Qualquer técnica que visa a salvar
uma vida humana é louvável. De acordo com o
judaísmo, o mandamento de pikuach nefesh (salvar uma
vida) se sobrepõe a todos os outros mandamentos. Infinitamente
melhor do que jogar no lixo os embriões não-utilizados
é aproveitá-los para obter células-tronco
que poderão curar doenças graves e salvar vidas
humanas. É importante ressaltar que, embora o embrião
seja uma vida em potencial, e como tal não possa ser
levianamente eliminado, não podemos privar a sociedade
das inúmeras possibilidades terapêuticas que
o embrião representa, a pretexto de protegê-lo.
Se levada às últimas conseqüências
a defesa de tudo o que é vida, então os seres
humanos não podem se alimentar de animais, mesmo aves
ou peixes, nem de plantas, pois elas também são
seres vivos. Já a clonagem reprodutiva é perigosa
e causa apreensão. A história já nos
deu provas aterradoras do que acontece quando se procura ‘aprimorar’
a raça humana. A tentação de brincar
de Deus é forte. Se há, por um lado, cientistas
e médicos de elevada moralidade, que analisam as possíveis
conseqüências dos seus atos antes de praticá-los,
há também aqueles que só pensam em satisfazer
o próprio ego, sem levar em consideração
se é eticamente correta a finalidade da pesquisa ou
os meios utilizados para atingir seus objetivos. As experiências
do ‘doutor’ Mengele com gêmeos nos campos
de concentração nazistas são um terrível
exemplo de ‘ciência sem consciência’.
A clonagem de seres humanos toca uma nota dissonante no coração
de todos aqueles que acreditam numa força criadora,
quer a chamemos de Deus ou não.”
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