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Uma
aula de Ianni na USP |
O
falecimento
do sociólogo Octavio Ianni, acontecido no dia 4 de abril,
em plena tarde de domingo, provocou o aparecimento de expressões
de fundo pesar mesmo entre pessoas que não privavam de sua
convivência, como pode-se depreender nos inúmeros depoimentos
reproduzidos na imprensa. Intelectual devotado exclusivamente à
vida acadêmica, Octavio Ianni era avesso às atitudes
de autopromoção, aos comportamentos estranhos ao métier,
àquelas exposições puramente destinadas a alimentar
humanas vaidades. Não deixa de ser excepcional, por isso,
o surgimento de tantas manifestações de lamento, originadas
nos mais diversos contextos, oriundas de vozes pouco familiares
ao mundo acadêmico, indício evidente da repercussão
provocada pela sua morte em ambientes exteriores às fronteiras
de sua atuação. O acontecimento revelou a presença
de uma face insuficientemente dimensionada do caráter que
imprimiu à sua atividade intelectual, nutrida em preceitos
éticos superiores, guiada por normas de responsabilidade
intelectual. Desses traços distinguidos da sua personalidade
emergiu a aura emanada no desenlace da sua vida, situação
inusitada à atual condição intelectual.
Octavio Ianni pertenceu a uma geração de cientistas
sociais que se formou no decênio de 1950 na Universidade de
São Paulo. Herdeiros de concepções que reconheciam
o valor preeminente do conhecimento científico rigorosamente
embasado, esses sociólogos afirmavam a natureza diversa entre
as lógicas do saber e a da política. O papel afeito
ao intelectual era o lugar da reflexão independente ao abrigo
das questões mais imediatas, mas totalmente sintonizado com
a necessidade de enfrentar os problemas sociais candentes. Discípulo
de Florestan Fernandes, artífice da dicção
sociológica moderna no Brasil, Ianni construiu sua carreira
nos moldes do verdadeiro scholar, passível de ser vivida,
naquele momento, apenas em São Paulo, em função
dos limites brasileiros à realização integral
da experiência universitária. A Universidade de São
Paulo transformara-se no epicentro da vida cultural paulistana,
no espaço de legitimação intelectual, na expressão
mais arrematada da nossa modernidade. Aos jovens cientistas sociais
uspianos coube, por esses motivos, a tarefa de moldar o novo estilo,
função exemplarmente exercitada por Florestan Fernandes,
a ponto de confundir a sua marca pessoal com os contornos da profissão
do sociólogo acadêmico.
Octavio Ianni recebeu daí os traços essenciais que
compuseram o seu perfil de sociólogo, revelados já
nas suas primeiras obras. Os livros Raça e mobilidade social
em Florianópolis, finalizado em 1956, e As metamorfoses do
escravo, publicado em 1962, são reflexões expressivas
desse período, quando o sociólogo investiga o legado
da escravidão na formação da sociedade brasileira,
assim como o significado do corte racial no entendimento de processos
societários típicos.
Ainda na primeira metade da década de 1960, publicou duas
obras que revelam a presença de nova inclinação
intelectual: A industrialização e desenvolvimento
social no Brasil, em 1963, e O Estado e o desenvolvimento econômico
no Brasil, em 1964. Textos fundamentais à compreensão
das mudanças em curso, as análises absorveram o debate
dominante no período, tendo exposto, concomitantemente, a
importância do chamado Seminário Marx na reorientação
das suas reflexões, apresentando, sobretudo, o modo como
os jovens professores da Faculdade de Filosofia participavam do
crescente engajamento que marcava a cultura do tempo. Com a edição
do livro O colapso do populismo no Brasil, em 1968, Octavio Ianni
coroou as suas preocupações com os acontecimentos
da história recente, absorvendo a reflexão da política
no entendimento dos impasses do modelo de desenvolvimento implementado
até a queda do governo João Goulart.
Os desdobramentos que acompanharam aqueles anos permeados por fortes
tensões foram a mais alta expressão dos limites da
nossa modernidade, quando da aposentadoria compulsória de
professores da Universidade, em 1969, promovido pelo arbítrio
do regime instaurado em 1964. Membro do grupo dos intelectuais submetidos
à cassação dos seus direitos, Octavio Ianni
buscou novos espaços para realizar a sua vocação
de intelectual independente. Sua trajetória no quadro dos
pesquisadores do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento),
passando pela condição de professor da PUC de São
Paulo e, finalmente, integrando o corpo docente da Unicamp
onde lecionou até os seus últimos dias , foram
exemplos inequívocos dos seus atributos de intelectual que
não se descurava da responsabilidade de seu ofício
de mestre e pesquisador. Nesse registro, os seu últimos livros
vertem a preocupação com a dinâmica social contemporânea
e com a especial forma de inserção do Brasil no âmbito
da nova modernidade.
No conjunto da sua vasta produção intelectual, as
obras A sociedade global, de 1992, A era do globalismo, de 1996,
e Enigmas da modernidade-mundo, de 2000, revisitaram os dilemas
da nossa história à luz de movimentos comandados por
forças que nos escapavam. A busca dessa idéia
de Brasil moderno, sintomaticamente título de outro
livro que escreveu, marcou a produção de Octavio Ianni
desde a sua estréia. Talvez resida aí o grande tema
da sua sociologia, tornando-o uma personalidade de larga e intensa
participação política, a despeito do seu afastamento,
mesmo da sua recusa, em aderir plenamente a partidos.
A comoção que acompanhou a sua morte originou-se,
em parte, dessas marcas impressas no seu estilo de intelectual.
Ao lado delas, não menos importantes, encontravam-se as suas
qualidades de pessoa íntegra, corajosa e generosa, tornando-o
uma das principais referências das novas gerações,
retrato acabado do intelectual vocacionado, que não se permitia
qualquer possibilidade de alforria. Pena que a vida não lhe
pode conceder mais tempo.
Maria
Arminda do Nascimento Arruda é professora do Departamento
de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP e secretária-executiva da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais (Anpocs).
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