
Nas
cores de Portinari, D. Quixote de La Mancha parte no seu cavalo
Rocinante, aventurando-se com todo o brio. O brio da força
da imaginação de Miguel de Cervantes. Se o escritor
espanhol visse o seu personagem nos desenhos do pintor brasileiro,
iria se surpreender por encontrar tamanho aliado. Um aliado como
tantos outros infinitos e atentos leitores, mas singular pela clareza
de idéias e emoções. Capaz de alcançar
o mesmo D. Quixote de Cervantes. Sem nenhum traço ou cor
a mais. Sensível, louco, verdadeiro, herói, humano.
É o sonho do engenhoso fidalgo, que não tem
medo de nada e de ninguém e muito menos de dois leões
que não passam de fracos gatinhos, que Antonio Cândido
Portinari consegue captar nos limites de uma caixa de lápis
de cor. Portinari mostrou D. Quixote em 21 ilustrações
feitas em 1956, quando tinha sido orientado por seu médico
a abandonar definitivamente as tintas que o intoxicavam. Portinari,
como D. Quixote, não tinha fronteiras. Aventurou-se como
o cavaleiro. E pintou porque, como D. Quixote, saiu de sua aldeia,
em Brodowski, mostrando que a pintura é mais que um sonho.
E provou que na arte os gigantes perversos são moinhos de
vento e o exército inimigo, um rebanho de ovelhas.
A aventura de Portinari desenhando D. Quixote está agora
reunida em catálogo organizado pelo Museu de Arte Contemporânea
(MAC) da USP, em parceria com o Memorial da América Latina
e Imprensa Oficial. Foi lançado no dia 28 de abril, encerrando
as homenagens ao centenário do pintor.
Naturalidade
da vida
Nestes desenhos, Portinari realiza mais uma vez o seu sentido
da cor e da mensagem e prova que sua capacidade vence os limites
do material, diz Elza Ajzenberg, diretora do MAC. Consegue
ilustrar um mundo de símbolos, sem perder a força
humana, a intensidade e a naturalidade da vida. Esses símbolos,
segundo Elza, exprimem um mundo de fantasia, de liberdade, de aspiração
ideal, de heroísmo e constituem o sonho impossível
de D. Quixote, que é a apoteose do herói popular.
Portinari segue a descrição de Cervantes. Desenha
um Quixote enxuto de rosto, seco de carnes. A descrição
do episódio de Cervantes surge de uma brincadeira de nobres
que resolvem se divertir às custas do cavaleiro: ao verificar
o ar de insanidade que envolveu D. Quixote, um grupo de nobres prometeu-lhe
um cavalo voador, Clavilenho, explica Elza. O animal
é construído em zonas geométricas: branca,
vermelha, amarela e ocre. A série toda possui muitas figuras
de cavalos, mas este é talvez o mais simples e belo. Concebido
de modo mais abstrato e ao mesmo tempo mais pueril, pois lembra
os animais que as crianças fazem em dobraduras de papel.
Remete às reminiscências e brincadeiras infantis do
próprio pintor. Da mesma forma que os outros cavalos da série,
salienta o tracejado e a cor estiletada.
Montou
em Clavilenho, e tenteou-lhe o escaravelha, que se movia facilmente;
e, como não tinha estribos, e era obrigado por isso a apertar
bem o cavalo com as pernas, não parecia senão uma
figura de tapeçaria flamenga, pintada ou tecida nalgum triunfo
romano.
Elza relata a imaginação de Portinari na cena de Cervantes:
Um conjunto formado por cavaleiros e cavalo assume o centro
e o total do quadro. D. Quixote sustenta a sua lança à
frente, prolongando o comprimento da composição. A
figura atarracada de Sancho, na garupa e agarrada ao herói,
trai o medo. O corpo e as pernas de Clavilenho distendidos provocam
a sensação de vôo. O movimento insinuado é
o da câmara lenta, mais de acordo com o aspecto lírico
da composição, traduzindo bem aquela observação:
o efeito de tapete flamengo ou o efeito poético e minucioso
característico da tapeçaria nórdica tecida
ou bordada, apesar do tratamento do artista não ser detalhista.
Nessa descrição, Elza explica que a formação
do espaço obedece mais a uma solução imaginária
do que a uma solução tradicional. Linhas interrompidas,
em círculos vermelhos e toques amarelos, formam o sol e seus
raios. À direita dessa zona quente, uma outra zona, composta
pelo azul, rosa e branco do papel, também tracejada pelos
riscos de estilete, formam uma noite enluarada, uma bela lua nova.
Dessa maneira, os heróis alcançam noite-dia pelo vôo
de Clavilenho.
Por
uma nesga de nada pus-me a olhar cá para a Terra. Pareceu-me
que toda ela não era maior que um grão de mostarda
e os homens que avistei pouco maiores que avelãs. Faça-se
idéia de quão alto nós devíamos ir.
Essência
e realidade
Portinari conseguiu, na análise de Elza Ajzenberg, expressar
com profundidade ideais de uma humanidade mais ampla e, indiretamente,
de seu povo. Não só como retratista de costumes,
apesar de ter evitado detalhismo, mas também como intérprete
que, com apurada sensibilidade, retoma a problemática quixotesca:
a dicotomia fundamental entre o real e o ideal, a dúvida
sobre a essência e a realidade.
Portinari mantém em seu desenho a idéia central de
Cervantes, que paira entre o sublime e o grotesco. O drama
de D. Quixote, com sua estranha personalidade, coloca na lembrança
do espectador a luta do homem para impor-se contra os moldes rígidos
do mundo, ressuscita um ideal agonizante ou já morto: o da
cavalaria errante, acentua Elza. A loucura de D. Quixote
pode ser a de todos os homens que se esforçam para atingir
um idealismo que a razão não atinge. E só na
figura de um louco poderia ser fixado tal ideal. Um louco que tem
muito mais juízo que os considerados sensatos. Ao observar
a lucidez de D. Quixote nas mãos de Portinari, a diretora
Elza questiona: Fala-se muito da loucura de D. Quixote. Mas,
examinada a fundo, seria uma loucura real?.
 
Ventura de ser louco
A ventura vai guiando as nossas
coisas melhor do que pudéramos desejar; pois vê
lá, amigo Sancho Pança, aqueles trinta ou pouco
mais desaforados gigantes, com os quais penso travar batalha
e tirar de todos a vida, com cujos despojos começaremos
a enriquecer, pois esta é a boa guerra, e é
grande serviço de Deus varrer tão má
semente da face da terra..
Que gigantes? disse Sancho Pança.
Aqueles que ali vês respondeu seu amo
, de longos braços, que alguns chegam a tê-los
de quase
duas léguas.
Veja vossa mercê respondeu Sancho
que aqueles que ali aparecem não são gigantes,
e sim moinhos de vento, e o que neles parecem braços
são as asas que, empurradas pelo vento, fazem rodar
a pedra do moinho.
Logo se vê respondeu D. Quixote
que não és versado em coisas de aventuras: são
gigantes, sim; e se tens medo aparta-te daqui. E põe-te
a rezar no espaço em que vou com eles me bater em fera
e desigual batalha.
É
essa ventura de ser louco que fez com que Antonio Cândido
Portinari deixasse Brodowski, aos 15 anos, para estudar no
Rio de Janeiro, no Liceu de Artes e Ofícios. O Candinho
filho de imigrantes italianos, que nasceu no dia 29 de dezembro
de 1903 em uma fazenda de café. O pintor premiado que
foi estudar em Paris para mostrar ao mundo os lavradores,
os meninos empinando pipa, o azul de seu céu.
Como D. Quixote, Candinho ensinou o direito de tornar os sonhos
reais. Construiu uma capela no quintal de sua casa só
para a sua avó, dona Pelegrina, poder rezar. Como ela
não podia andar, o pintor fez a Capela da Nona (recém-restaurada,
fica junto do Museu Casa de Portinari, em Brodowski). Decorou
as paredes com afrescos de Santa Isabel, Nossa Senhora, João
Batista e a Sagrada Família com os rostos de sua esposa
Maria, sua irmã Olga e o irmão Lói.
Como D. Quixote, o pintor deu vez ao povo. Na série
Retirantes, documentou a dor e buscou a esperança.
Quando estava na França, desabafou nas cartas para
a família: Palaninho só tem um dente,
usa calças brancas de saco de farinha de trigo, cheias
de remendos escuros de pano listrado; ainda se nota o carimbo
da marca da farinha.
Palaninho é beira-córrego e dono de um sítio.
Eu uso sapatos de verniz, calça larga, colarinho baixo
e discuto Wilde, mas no fundo eu ando vestido como Palaninho
e não compreendo Wilde. Tenho saudades de Brodowski,
pequenininha, duzentas casas brancas de um andar só,
no alto de um morro espiando para todos os lugares
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