
Fernando Henrique Cardoso na FEA: "O Brasil precisa atuar com
mais força na Organização Mundial do Comércio
e outros fóruns internacionais"
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Na
palestra que ministrou na Faculdade de Economia, Administração
e Contabilidade (FEA) da USP, no dia 5 de maio, o ex-presidente
da República Fernando Henrique Cardoso apresentou um balanço
histórico da posição internacional do Brasil
diante do comércio internacional desde o regime militar até
os dias atuais. Falou de como o País se posicionou na busca
de novos mercados durante e após a Guerra Fria e como avançou
sua imagem de negociador pacífico. Mas fixou-se especialmente
nos feitos alcançados no comércio internacional durante
os oito anos em que administrou o País. Não chegou
a tecer comentários diretos sobre a atuação
política do atual governo, mas disse achar preocupante uma
certa recaída aos anos 70, referindo-se a uma
provável vontade nacional de promover a autonomia do País
através de uma política que privilegie a produção
bélica.
Feita a redemocratização do País, ocorrida
a globalização e tendo avançado o processo
de criação das instituições de regulação
internacional, também temos que mudar nossa cabeça,
nossa ideologia, disse o ex-presidente. Parece preocupante
uma recaída nos anos 70, com o pensamento de que essa recaída
significaria autonomia nacional. Isso significa apenas a ilusão
de que é possível fechar o País, ter um país
que em nome dos seus interesses nacionais se organize para ter uma
produção bélica. Nossa visão tem que
ser outra. Temos que mostrar que somos de paz, que somos negociadores,
e sobretudo entender que num país como o Brasil temos que
aumentar nossas oportunidades econômicas e não nossas
oportunidades de poder bruto.
Desafios da Ordem Internacional foi o tema do seminário organizado
pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e proferido
para dois auditórios lotados de estudantes e interessados
em geral. Estiveram na mesa de debates o diretor do IEA, João
Steiner, a coordenadora do curso de Relações Internacionais,
Maria Ermínia Almeida, a diretora da FEA, Maria Tereza Leme
Fleury, o Professor Honorário do IEA Carlos Guilherme Mota
e o presidente da Fapesp, Carlos Vogt.
Defesas
jurídicas
O ex-presidente recomendou que, diante do mundo tão competitivo
e assimétrico da globalização, os governos
olhem para a frente, em vez de viverem sob os louros do que já
fizeram. Citou o Barão do Rio Branco para lembrar que o Brasil
precisa olhar os vizinhos do sul e ao mesmo tempo manter um
bom relacionamento com os Estados Unidos.
Volto a dizer que bom relacionamento com os Estados Unidos
não quer dizer não ter conflito com os norte-americanos.
O que não podemos é querer transformar cada conflito
parcial em guerra total, porque essa nós perdemos. Não
podemos transformar uma luta específica num batalha ideológica,
alertou o ex-presidente, que lembrou contenciosos ganhos pelo Brasil
na Organização Mundial do Comércio (OMC). Na
OMC criamos pleitos em defesa do nosso interesse, e foram muitos,
como o do aço, o da barreira não-tarifária
ao suco de laranja e o do subsídio ao algodão. Ganhamos
85% dos pleitos que levantamos.
Houve uma série de avanços como conseqüência
dessa nova visão do Brasil no comércio internacional.
Uma delas foi a questão da luta pelos medicamentos contra
a Aids. Em Doha, no Catar, fizemos o reconhecimento de que
em certas circunstâncias os governos têm o direito de
obrigar a quebra de patentes. Não chegamos a quebrar porque
conseguimos acordos com os fabricantes. Mas o importante é
que conseguimos passar a tese de que a vida vale mais que o lucro.
Os Estados Unidos retiraram a queixa de quebra de patentes contra
nós, disse.
Diante das conquistas alcançadas até agora no âmbito
internacional, o ex-presidente reafirmou a necessidade de o País
manter sua capacidade de ser um global trader, ou seja, de não
se prender a um único bloco econômico e manter interesses
diversificados em todo o globo. Para Fernando Henrique, o País
precisa agir de forma mais ativa nas negociações econômicas,
a fim de aumentar suas oportunidades de negócios, e, para
isso, é preciso a participação da sociedade.
Acredito que o atual governo tenha um projeto para o País,
mas o importante é que a sociedade participe da construção
desse plano, afirmou.
Durante o regime autoritário, o País viveu momentos
de uma situação um tanto paradoxal nas suas relações
exteriores, disse Fernando Henrique, nos quais, ao mesmo tempo em
que buscava manter certo distanciamento dos países bipolarizados
da Guerra Fria, também pretendia promover sua presença
no cenário internacional. O País queria ter
vez e voz no cenário internacional. Era muito contraditório.
Houve momentos em que essa autonomia a distancia levou alguns setores
até a pensar numa espécie de afirmação
nacional através do poder militar. Isso era um devaneio.
Independência
O Brasil se aproximou de países do Oriente Médio e
África, numa política que teve alguns bons resultados,
sobretudo na abertura de mercados, disse. Segundo Fernando Henrique,
o custo dessa aproximação foi alto porque muitos desses
mercados não pagaram. Coube a mim anular dívidas
de países africanos, como na última visita que fiz
a Moçambique como presidente, quando anulei uma dívida
de US$ 450 milhões. Eles não podiam pagar, mas, naquela
visão de independência, começamos a nos cercar
desses países emergentes. Era essa a percepção.
Curiosamente, a política que se justificava pela Guerra Fria
e se explicava pelo contexto autoritário interno, disse,
passou a ser vista como uma política de independência
nacional, como se fosse uma política de autonomia do País.
Isso passou a ser assimilado como a política externa
independente, semelhante aos anos anteriores a 1964. Isso permanece
até hoje, há uma certa nostalgia de que é isso
que o País tem que fazer para se tornar independente.
A idéia de definir o que era o Brasil potência não
se efetivou por falta de recursos, disse o ex-presidente. Nos anos
80, lembrou que o País passou por uma crise mundial, uma
inflação galopante e perdeu a capacidade de investimentos.
Fomos perdendo nossa posição relativa entre
as grandes economias do mundo. Essas transformações
de ordem internacional criaram uma série de expectativas
de um mundo multipolar, logo após a queda do Muro de Berlim.
Depois vimos que o mundo não era propriamente multipolar,
tinha uma presença quase hegemônica dos Estados Unidos.
A partir de 1992, era perceptível que tínhamos
que tomar algumas medidas para adequar a nossa política externa
a esse mundo cambiante. Essas medidas já vinham sendo tomadas
pelo presidente Sarney, que promoveu a transição democrática
com a Constituinte, reconheceu outros partidos comunistas, fez relações
com Cuba, mas sobretudo voltou a colocar a América Latina
no contexto da política internacional. O presidente
Collor manteve a mesma linha, assinando o Tratado de Assunção
(programa que define o Mercosul), disse.
Mercosul
e Alca
Para Fernando Henrique, manter relações mais intensas
de comércio com o bloco sul é uma questão não
só de desenvolvimento, mas de integração local
quanto ao transporte e energia, por exemplo. Para o ex-presidente,
a visão de buscar parceiros entre os vizinhos deve ser uma
conquista paulatina. O Brasil não deve se situar no
mundo como uma subpotência militar que vai buscar aliados
no Oriente Médio e que tem como horizonte o Terceiro Mundo.
O Brasil tem que mostrar que se situa no mundo como um país
pacífico, que vai buscar aliados no seu entorno imediato
mas se abre a todas as áreas do mundo, afirmou.
Segundo Fernando Henrique, essa busca de integração
maior na América do Sul surtiu efeitos concretos, como a
criação do gasoduto Brasil-Bolívia e a integração
energética com a Venezuela, Argentina e Paraguai. Essa
nova maneira de olhar o País tem conseqüências
econômicas que, mesmo incipientes, estão se enraizando.
Ao final de 1994, quando se iniciaram as discussões sobre
a Alca (Área de Livre Comércio das Américas),
o Brasil começou imediatamente a buscar uma aproximação
com a União Européia justamente por causa dessa visão
de que o País tem interesses globais, acrescentou Fernando
Henrique. Naquela altura, a idéia do Mercosul havia
ganho muito prestígio na Europa, mas não avançou
com a rapidez necessária. Ele elogiou a viagem de Lula
à China e disse que essa relação é estratégica.
No horizonte, a China é certamente o poder emergente.
Como o Brasil tem essa posição de manter relações
globais e ampliar sua autonomia, convém participar onde for
possível.
Para o ex-presidente, a discussão sobre a Alca não
é secundária e diz respeito justamente à possibilidade
de o Brasil exportar aquilo que faz seu diferencial como país
emergente. Não somos uma potência agrícola
apenas, somos também um país industrializado. Depois
do Plano Real, o País conseguiu mudar a base do seu sistema
produtivo de tal maneira que o produto que se tem hoje é
de outra qualidade. O automóvel, o celular, o calçado,
o têxtil, o móvel, todos esses são produtos
globais.
Fernando Henrique disse se preocupar com acordos bilaterais capitaneados
pelos Estados Unidos porque, nesse caso, nossas exportações
teriam que competir com as exportações americanas
no nosso entorno. Para o ex-presidente, o País precisa
ficar atento e defender seus interesses com força, e não
fazer como no passado, buscando retraimento e entrando no mundo
pela margem. Repito, não se trata de não dar
atenção aos países do Terceiro Mundo, mas de
entender que o eixo principal é outro e que temos de ter
a aspiração de marcar presença forte nesse
eixo principal.
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