2005
não representa apenas o vigésimo ano da redemocratização
do Brasil; representa também o período mais longo
de democracia verdadeiramente participativa da história do
País, conforme observa o pesquisador Günther Rudzit,
do Núcleo de Análise Interdisciplinar de Políticas
e Estratégia (Naippe) da USP. Mais: em 2006, terão
decorridos 21 anos de governos legitimamente constituídos,
tempo igual ao da permanência dos militares no poder, depois
do golpe de 1964. Se ainda falta muito para um regime democrático
pleno, caracterizado por um Estado de Direito que garanta a todos
os indivíduos acesso igual aos benefícios assegurados
pela Constituição, é certo que houve avanços
significativos, graças principalmente à mobilização
popular, que cada vez mais pressiona o governo e não tolera
mais ações isoladas e autoritárias. Os professores
Lourdes Sola, do Departamento de Ciência Política da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, e Gilberto Dupas, coordenador do grupo Conjuntura Internacional
da USP, além de Rudzit, têm muitos pontos em comum
ao analisar a história nacional contemporânea.
Estabilidade
Lourdes insiste em destacar a tendência da sociedade em se
mobilizar, sendo este um critério para avaliar a marcha da
democracia. Nos últimos 20 anos, observa, todos os candidatos
a presidente da República assumiram compromisso com a estabilidade,
inclusive monetária, numa reação à pressão
do eleitorado. Mais recentemente, a mobilização civil
manifestou-se vigorosa na repulsa à medida provisória
que aumentava a carga tributária. E o interessante, segundo
a professora, é que a pressão popular se concentrou
no Congresso Nacional, e independentemente dos partidos políticos.
Reação semelhante ocorreu na votação
da Lei de Biossegurança, desta vez em favor da liberação
das pesquisas.
Também o professor Dupas, que acaba de lançar a obra
Atores e poderes na nova ordem global (Unesp), considera a sociedade
civil organizada o principal ator na quebra do regime militar. Mobilizou-se
na campanha das Diretas-Já e teve paciência quando
foi preciso lidar com os déficits operacionais que
a burocracia acarreta, numa demonstração de
que a pressão legítima é melhor do que qualquer
tendência autoritária. Segundo o professor, é
claro que os avanços da consolidação democrática
envolveram também a classe política em geral, tendo
havido ganhos na transparência nas ações dos
poderes constituídos. Em razão dela, argumenta, tem-se
a impressão de que a corrupção aumentou, mas
não é verdade; está sendo mais investigada.
É fundamental para a democracia uma comunicação
mais direta da classe política com a população,
diz Dupas. Da pressão dos civis adveio outro resultado positivo:
o convencimento de que o lugar dos militares é nos quartéis.
A prova disso é que países latino-americanos como
Argentina e Venezuela passaram nos últimos anos por crises
políticas sérias, mas os militares não intervieram,
convencidos de que a sua relação com a sociedade é
de subordinação.
Günther Rudzit entende que a situação do povo
brasileiro melhorou muitos nos 20 anos de democracia, principalmente
nas regiões mais desenvolvidas, do Sul, Sudeste, parte do
Centro-Oeste e pequenas partes do Nordeste, mas lamenta que a educação,
fundamental para o correto exercício da cidadania, caminhe
muito lentamente. Mas caminha, a universalização do
ensino básico e médio é fato, fazendo prever
que tudo será diferente daqui a 15 anos. Falta também
educação política a boa parte da população.
As estatísticas do IBGE divulgadas nos últimos dias
são uma prova disso: 9% dos eleitores ainda se submetem a
assédio eleitoral, desconhecendo os seus direitos fundamentais.
![](ilustras/ilustra12a.jpg)
Ulysses
Guimarães: uma carreira política voltada para o retorno
da democracia no Brasil
Lula
A opinião dos analistas coincide no fundamental quando se
trata de destacar momentos marcantes e os principais personagens
do período pós-militar.
No período de transição, traumática,
Rudzit e Lourdes destacam a atuação do ex-presidente
José Sarney, que, de acordo com o pesquisador do Naippe,
segurou o rojão sem ameaçar o processo
de redemocratização, mesmo sofrendo ataques e até
pouco tempo antes ter sido um homem da confiança do governo
militar (era da Arena). Em seguida, Rudzit cita Itamar Franco, que
assumiu a presidência em situação difícil
na saída forçada de Collor de Mello, na hiperinflação
e na desagregação política. Deu apoio ao Plano
Real e à estabilização da economia. Lourdes
Sola refere-se depois a Fernando Henrique Cardoso, em cujo governo
o Plano Real se afirmou.
Sobre o governo atual, a professora acredita que esteja havendo
preocupação perigosa em preservar a hegemonia do partido
dominante (PT), o que será ruim para o próprio
PT no futuro. Ela distingue o presidente Lula do partido,
mas nem tanto, assegurando que este governo tem projeto
de poder, mas não de institucionalização a
longo prazo. Talvez nem tenha projetos, nem rumos ou políticas
sociais. Nem mesmo na área da educação,
pois até a proposta de reforma universitária é
autoritária. Difícil acreditar que pessoas como
o ministro Tarso Genro e Fernando Haddad (secretário do Ministério
e professor da USP) possam apresentar plano tão pouco democrático.
Aí também, segundo a professora, a pressão
popular será decisiva.
A opinião de Dupas sobre Lula é diferente. Acredita
que o presidente inaugurou uma nova forma de governo, incorporando
ao seu estilo movimentos radicais como o MST, obrigando-os a usar
roupagem institucional. Inaugurou um discurso popular, mas
não populista, importante para a política. O
que preocupa nas democracias latino-americanas, diz o professor,
é o crescimento de movimentos marginais, gente excluída,
de difícil incorporação na sociedade. Fazem
parte disso a síndrome da violência e manifestações
como as revoltas na Febem de São Paulo. Isso, sim,
afirma Dupas, é um problema sério e uma ameaça
ao País no futuro.
Rudzit atribui igualmente mérito a Lula, que, mesmo perdendo
três eleições para a presidência, nunca
convocou o partido a pegar em armas nem abandonou o processo democrático.
Mais tarde, já presidente, recomendou às Farcs colombianas
movimento guerrilheiro que se submetam a eleições.
Na seqüência, o professor lembra-se do presidente Ernesto
Geisel e de seu escudeiro ideológico Golbery do Couto e Silva,
assim como do presidente João Figueiredo. Eles mereceram
menção.
Geisel, porque patrocinou o processo de descompressão política,
lenta, gradual e segura; Figueiredo, porque, mesmo sabendo que seria
o derradeiro presidente militar, entregou de boa vontade o poder
ao sucessor (Sarney, já que Tancredo havia adoecido), e enfrentando
a oposição de grupos militares (o episódio
do Riocentro é só um exemplo). Ao movimento Diretas-Já
o pesquisador do Naippe atribui importância apenas relativa,
pois a campanha que mobilizou o País não mudou os
planos dos militares, de fazer a transição do poder
por meio de eleição indireta, seguida por direta quatro
anos depois.
Lourdes Sola relaciona cinco momentos marcantes no curso da redemocratização,
iniciando pelos testes de stress, quando a sociedade
começava a reagir: a transição sem golpes na
doença de Tancredo e com a colaboração dos
militares; a eleição de Collor a primeira por
voto direto e o confisco da poupança que se seguiu;
o processo de cassação de Collor; o escândalo
dos anões do Congresso, episódio em que, segundo a
professora, o Legislativo se saiu bem, cortando na própria
carne; conversão da URV no Plano Real, num momento de tensão
e na dúvida se a sociedade iria entender e aceitar mais uma
tentativa de estabilizar a moeda. Com Fernando Henrique, a sociedade
demonstrou que a estabilidade deve ser conservada, disse Lourdes
Sola, acrescentando o último momento importante da democracia
que está completando 20 anos: a crise financeira que antecedeu
a eleição de Lula, em razão do perfil do então
candidato a presidente. Perfil que mudou muito de lá para
cá.
Concluindo com Günther Rudzit: A democracia
tem valor absoluto. Não há forma boa de governo a
não ser pelo sistema democrático. Só ele garante
a liberdade e a vida dos cidadãos.
Da idade do regime
Três
alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA)
da USP, com idade igual à da democracia brasileira
pós-regime militar, comentam a coincidência.
Milena
Almeida dos Santos (3o semestre do curso de Publicidade e
Propaganda): Tenho noção de que havia ditadura
quando nasci, mas nunca tratei desse assunto com ninguém.
Democracia é um regime mais igualitário, no
qual as pessoas têm participação maior
e representação política delas mesmas.
Meus pais eram meio conservadores, mas eu sei que na época
dos militares era difícil. Sei também que a
democracia foi inventada por algum filósofo grego.
Os filósofos não tinham outra ocupação,
além de discutir os problemas da pólis. Isso
era feito em praça pública. Hoje, as pessoas
estão adquirindo cada vez mais consciência de
tudo, mas as maiores falhas do regime estão na falta
de instrução de muitas pessoas, que assim não
têm capacidade de eleger bons representantes. Na minha
opinião, com Lula a democracia não está,
definitivamente, em boas mãos. Disse uma coisa e faz
outra bem diferente.
Carolina
Marra (Relações Públicas): Nasci durante
a ditadura, em 1984. Sou do interior, de Pirapozinho. Meu
pai era bancário e minha mãe, professora. Tive
um tio que estudava Geografia na Unesp, em Presidente Prudente,
e falava do que acontecia no tempo da ditadura. Meus pais
dizem que não há diferença entre aquele
tempo e hoje. No contexto atual a democracia acaba sendo utópica,
manipulada pela imprensa. Quando me formar, pretendo contribuir
para aumentar a visão crítica das pessoas. Sei
que pessoas como Ulysses Guimarães e Fernando Gabeira
tentaram mudar a história na época, mesmo de
forma ilegal.
Danielle
Assalve (2o ano de Jornalismo): Nunca tive consciência
de que tenho a idade da democracia brasileira. Nunca pensei
nisso. Sei que na ditadura era tudo controlado, censurado.
Só a imprensa alternativa mostrava os abusos e tentava
não se calar. Exercendo o meu papel de cidadã
e de jornalista, também tentarei não me calar
nas pressões, mostrando o que é correto. Mas
não adianta ter democracia se as pessoas não
têm consciência e conhecimento. Isso falta até
para os universitários. Sei que a maioria deles se
mostra insatisfeita (com o governo), mas não tanto
quanto na época da ditadura.
|
|