![](ilustras/ilustra1011.jpg)
Deixe todos os sons que você conhece emudecerem.
De alma aberta e ouvido atento, vá folheando o livro Ponte
entre povos um lançamento do Sesc São Paulo
, ao som dos três CDs que acompanham a edição.
E se permita atravessar uma ponte invisível para depois remar
contra a correnteza no rio Paru do Leste. Se conseguir chegar na
outra margem, com certeza ouvirá um universo banhado pelo
rio Amazonas, rodeado de matas e cortado por igarapés através
da música dos índios do Amapá. Canções
que embalam as crianças, que brindam a boa caça, que
despertam os seres entre os sonhos da mata e da terra.
Um sonho que conta com a organização e sensibilidade
de Marlui Miranda. Cantora, compositora e musicóloga, há
mais de 20 anos ela persegue o ideal de divulgar a diversidade da
música dos índios. Ponte entre povos refere-se
ao sentimento da passagem de uma cultura para a outra, num entrelaçar
de seus diferentes hemisférios musicais, explica Marlui.
É como a construção de uma ponte abstrata,
feita de trocas musicais. Foi realizado no Estado do Amapá,
extremo Norte do Brasil, onde se fala o português, francês,
holandês e o créole, além dos idiomas indígenas
carib, aruak e tupi.
Marlui observa que naquele Estado coexistem culturas de núcleos
urbanos tipicamente de origem africana, com ligações
na cultura européia do século 19 e na cultura dos
povos indígenas da região. Quem vai ao Amapá
tem a impressão de que a maioria da população
é composta de músicos, atuando em vários gêneros:
MPB, choro, regional, capoeira, brega, zouk, salsa, merengue, marabaixo,
clássico, pop, instrumental, lambada, caribenha... E, finalmente,
o indígena. É exatamente naquele Estado que há
a maior diversidade na música dos povos indígenas.
![](ilustras/ilustra1011b.jpg)
Fluindo
das matas
O projeto do livro Ponte entre povos nasceu em abril de 2001, quando
a cidade de Macapá comemorava a Semana do Índio, que
sempre foi importante no calendário de eventos. O Amapá
é o único Estado do Brasil onde todas as terras indígenas
foram demarcadas e homologadas, lembra Marlui. Na época,
aconteceram duas oficinas com a participação dos estudantes
da Escola de Música Walkíria Lima e de cantadores
indígenas. Essas oficinas se repetiram ao longo do ano e
contaram também com a presença de professores da Orquestra
do Teatro Municipal de São Paulo.
Marlui foi ensaiando e selecionando um repertório que pudesse
dar uma amostra dessa musicalidade que flui das matas do Amapá.
Os estudantes e integrantes da orquestra de câmara da Escola
Walkíria Lima foram aprendendo e convivendo com a música
dos índios. E o resultado está na edição
do livro e na gravação dos três CDs. O projeto
teve o apoio e o incentivo do casal João Alberto e Janete
Capiberibe (na época, governador e deputada estadual do Amapá),
que sempre tiveram como meta preservar a cultura do Amapá,
em toda a sua natureza. Sempre tivemos clareza quanto à
importância da sabedoria e do amor dos índios para
a nossa cultura de não-índios, explica o atual
senador. Nascidos na Amazônia, aprendemos a respeitar
o valor que tem nossa floresta e nos sentimos movidos por ela, intuitivamente,
sempre que nos propomos a pensar e decidir sobre o que fazer para
melhorar a vida dos que vivem na região.
Capiberibe defende e vem procurando divulgar a sabedoria dos índios.
Afirma que a cultura extraordinária que possuem transparece
em tudo o que fazem, desde a organização social nas
aldeias, o emprego das cores no que desenham e pintam, os detalhes
que exibem nos artefatos que produzem, a delicadeza das fibras que
trançam e especialmente a sua música cheia de significados.
Nós, ditos civilizados, somos desatentos com os sons
e enxergamos pouca coisa do que vemos no meio da floresta, porque
acreditamos que a cultura dos europeus que descobriram
e ocuparam a Amazônia há 500 anos é superior
e nos basta. Hoje vemos, no entanto, que podemos construir um diálogo
inteligente resultante do encontro de saberes, conjugando o tradicional
e o novo, a vivência e a ciência, e as diversas formas
de olhar e sentir o mundo na sua extensa e perfeita diversidade
amazônica.
O projeto Ponte entre Povos está, como justifica Capiberibe,
impregnado dessas idéias. A ponte construída
aqui é uma via de mão dupla: permite o conhecimento
mútuo de musicalidades diferentes e tem também a missão
de valorizar aquilo que por muito tempo foi deixado de lado, mas
que, entretanto, carrega o belo não pressentido. Esperamos
que essas canções possam abrir caminho e se alargar
para chegar, suavemente, aos ouvidos do mundo.
![](ilustras/ilustra1011c.jpg)
A cultura material dos povos indígenas
do Amapá é muito diversificada: coexistência
de múltiplas expressões
Contra
a correnteza
O livro traz algumas histórias curiosas sobre o esforço
dos índios saindo das matas para gravar os CDs em um estúdio
em Macapá, uma cidade pequena e preservada, espaçosa,
ventilada, sem arranha-céus, que deixa entrever em seu horizonte
azulado a sombra da ilha de Marajó. Marlui Miranda
lembra o esforço de Paxinã Poty Apalaí para
chegar às gravações, tão grande como
a vontade de cantar a música de seus antepassados. Ele
vinha navegando pelo rio Paru do Leste de canoa e o motor do barco
quebrou numa pedra. Vieram, ele e Sarina Apalaí, seu filho,
remando três dias contra a correnteza até alcançar
a aldeia Pururé, de onde seguiriam para Macapá de
avião, um monomotor. Lá estava o aviãozinho
esperando, já carregado, quase indo embora, para nosso desespero,
mas eles chegaram a tempo, trazendo uma bolsa de palha com os instrumentos
musicais purupuru ruweny, lucime, turekoka , as roupas
cerimoniais, cocares, cera de abelha, urucum e o motor quebrado
do barco para consertar.
Nessa convivência com os índios, Marlui percebeu que
há algo em comum entre um violino e um casco de tracajá.
São dois instrumentos que soam por fricção.
O violino utiliza o breu; o purupuru ruweny utiliza a cera de abelha
e tem uma tonalidade destemperada. Surgiu a idéia de produzirmos
os mesmos sons em ambos os instrumentos de maneira bem aproximada.
A pesquisadora explica que os pizzicatos dos violinos, os sons das
cravelhas e volutas se fundiram de maneira leve e não invasiva
ao som do tracajá, entrando aos poucos e deixando outros
instrumentos interferir sem pressa: os glissandos do contrabaixo,
os sons da flauta transversal, que conversa com a flauta de pã,
imitando pássaro. Tudo isso resultou nas nossas vozes
em uníssono como que dizendo: estamos tocando juntinho com
os índios do Amapá, pela primeira vez.
O primeiro CD é aberto com a música de Paxinã
Poty e seu filho Sarina. É exatamente a entrada para esse
mundo desconhecido e tão ignorado no respeito às diferenças.
Para surpresa dos ouvintes, a segunda faixa é Uma pequena
serenata noturna, de Mozart. Justo Mozart. Ou melhor, sempre Mozart,
com as suas composições irreverentes, belas, alegres
e tão sem preconceitos.
Apresentamos Mozart para os índios sem falar de Mozart,
só sentindo a emoção mozarteana. Empolgaram-se
e encontraram sua maneira de navegar na correnteza onde a música
flui. O que viram nela? A idéia de um tempo passando,
observa a pesquisadora. Parece que encontraram um ponto comum:
o pulso orgânico de Mozart, lembrando o tempo dos pés
batendo o tambor teefa, ou o tempo do puupuluen, purupuru ruweny,
o casco do tracajá.
A terceira faixa traz Minueto em lá maior do Quinteto em
lá menor número 5, opus 14, de Luigi Boccherini, que
nasceu em Lucca, na Itália, em 1743, e contribuiu decisivamente
para a evolução da arte musical do século 18.
![](ilustras/ilustra1011f.jpg)
Com a participação de Wolfgang Amadeus Mozart e Boccherini,
a musicóloga Marlui Miranda destaca a erudição
das músicas indígenas que vêm a seguir. No livro,
elas vêm acompanhadas de partituras, fotografias com legendas
e explicações detalhadas sobre o seu significado.
A música Kanawã Oreni (ou o Canto da canoa da bebida)
fala de uma canoa amarrada com uma corda no porto, onde fica sozinha,
mas, metaforicamente, ela se refere à bebida que um convidado
levou para uma festa. Logo em seguida, vem Emenhir Yoso Katohu (ou
a Música da madrugada), que é uma canção
para acordar o dono da bebida apresentado na composição
anterior.
Todas as canções vão apresentando o ritmo da
alma dos índios do Amapá. Eles compõem
para marcar e sincronizar as energias durante os rituais e sublinhar
os vários momentos do cotidiano, diz Marlui. Seja
um acalanto, uma cantiga de amigo, uma cantiga de caça, de
fazer roça, um canto ou choro de boas-vindas, uma cantiga
de casamento, de pescaria, cantiga para marcar a passagem do tempo,
cantiga de furar a orelha ou o nariz, cantiga de ninar, de atrair
o amor, de chorar a perda do amor, do contato com brancos e negros...
São milhares de estilos de canções, improvisos
e danças. Todas as músicas indígenas obedecem
a regras e apresentam, muitas vezes, estruturas complexas.
Para compreender tanta riqueza, Marlui avisa que é preciso
abrir os ouvidos a essa paisagem sonora, um ouvido atento para estabelecer
paralelos entre culturas. A música indígena,
em geral, quando interpretada dentro do contexto dos rituais, não
tem a duração das pequenas peças que ouvimos
nestes CDs, mas são parte de extensos sistemas musicais,
nos quais as músicas são muito longas, podendo durar
até mais de 48 horas.
![](ilustras/ilustra1011g.jpg)
Para Lux Vidal professora do Departamento de Antropologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, que também assina um dos textos do livro ,
apresentar as músicas dos índios em situações
e contextos novos, como no projeto de Marlui Miranda, é um
caminho para mantê-las vivas e torná-las conhecidas.
A música é uma manifestação profundamente
humana, coletiva e potencialmente transcultural, podendo sempre
ser compartilhada. Para os índios, a música é
também a voz dos espíritos, das aves míticas
e dos seres sobrenaturais que, nos tempos primevos, de acordo com
a filosofia indígena, eram gente como nós. Hoje, cada
espécie se diferencia das outras e ocupa o seu domínio:
o céu, as matas e o fundo dos rios. Não existe mais
entre elas linguagem comum, a não ser a música que
ainda consegue unir a todos, como habitantes de um mesmo universo.
|