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Placa em homenagem a Dantas, no antigo endereço da embaixada.
Lê-se: “Aqui viveu por 22 anos
um amigo da França, Luiz de
Souza Dantas, embaixador do Brasil em Paris de 1922 a 1944”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


busto de Souza Dantas em Paris:
“A acomodação contemplativa
é a pior forma de covardia humana”, afirma o psicanalista Jorge Forbes

 

 

 

 

 

 


Passaportes com a assinatura de Souza Dantas: historiador localizou pelo menos 500 vistos diplomáticos emitidos pelo embaixador


E
ste ano, o Ion Hashoá, dia de reflexão que os judeus do mundo inteiro fazem para lembrar o Holocausto, teve motivos acrescidos: internacionalmente, a comemoração dos 60 anos da derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial, a morte de Hitler e a libertação dos prisioneiros dos campos de concentração; em São Paulo, a revelação de novos lances de heroísmo e atos humanitários do embaixador brasileiro na França de 1922 a 1944, Luiz Martins de Souza Dantas, que, contrariando orientação do Estado Novo, assinou centenas de vistos de entrada, no País, de judeus e outras pessoas perseguidas politicamente e ameaçadas de morte. A mesa-redonda do dia 5 de maio, organizada pela Congregação Israelita Paulista, tomou o nome de “Bom para o Brasil”, tirado dos carimbos que Souza Dantas apunha nos passaportes dos refugiados, e reuniu mais de 200 pessoas, entre elas o embaixador Marcos Azambuja, o rabino Henry Sobel, o historiador Fábio Koifman e o psicanalista Jorge Forbes. Na homenagem póstuma, foi lembrado que o nome de Luiz Martins de Souza Dantas está mencionado no Jardim dos Justos, em Israel. Naquela cerimônia, no Museu do Holocausto, em 10 de dezembro de 2003, o embaixador do Brasil em Israel, Sérgio Moreira Lima, lembrou algumas personalidades favorecidas pela atuação do embaixador na França que se tornaram famosas no Brasil. Entre outras, Zbigniew Ziembinski (1908-1978), que se destacou no teatro.

Souza Dantas enfrentou um inquérito administrativo aberto em 1941 pelo governo Vargas, foi aposentado compulsoriamente, mas permaneceu no cargo por dificuldade de se nomear substituto em tempo de guerra. Conta Fábio Koifman que, em 1943, logo depois de a Alemanha ocupar a “Zona Livre” do governo colaboracionista francês de Vichy, a sede da embaixada do Brasil foi invadida por oficiais nazistas e o embaixador e seus colaboradores detidos e deportados para Bad Godesberg, na Alemanha, onde permaneceram confinados em hotel até o final de março de 1944. Retornaram ao Brasil em maio daquele mesmo ano, depois de trocados por prisioneiros alemães que eram mantidos em cárceres brasileiros. O Itamaraty lembrou-se de Souza Dantas dois anos depois e o convidou para chefiar a delegação brasileira na abertura da primeira Assembléia Geral das Nações Unidas, realizada em Londres entre 10 de janeiro e 14 de fevereiro de 1946. Embora o primeiro discurso da história da ONU tenha sido pronunciado pelo secretário de Estado norte-americano James Francis Byrnes, coube ao representante brasileiro a palavra seguinte. Desde então, é tradição o Brasil abrir as atividades anuais da ONU.

 


Oswaldo Aranha, Souza Dantas e Getúlio Vargas, em maio de 1944



A segunda lista


Como o industrial alemão Oskar Schindler, Souza Dantas tem a sua lista. A diferença é que para o brasileiro ainda não apareceu um Steven Spielberg para fazer um filme. O ostracismo acompanhou o embaixador desde a sua morte, em 1954, o mesmo ano da morte de Vargas, até que historiadores como Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da USP, e Fábio Koifman, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, começassem a remexer nos 6 milhões de documentos do arquivo histórico do Itamaraty e em outras fontes, donde saltaram informações preciosas sobre a política nacional e internacional do Estado Novo e o altruístico perfil do então embaixador brasileiro na França.

Se alguém se puser a imaginar que a desobediência de Souza Dantas às circulares secretas de Vargas, que proibiam vistos de entrada a judeus e nipônicos, era movida por interesses próprios e familiares, argumentando que o embaixador era casado com uma judia – Elisa Meyer Stern –, Koifman responderá que isso de modo algum faz sentido; Elisa, norte-americana irmã de Eugene Meyer, que adquiriu um jornal falido chamado Washington Post, havia deixado a França antes da invasão pelas tropas alemãs e só voltou a ver o marido em meados de 1944. Outra razão para a magnanimidade de Souza Dantas poderia ter sido a generosidade inata que se costuma atribuir aos brasileiros em geral; mas o historiador da Uerj, que diz ter localizado cerca de 500 vistos diplomáticos assinados por Souza Dantas, prefere acreditar que o diplomata era movido pelo seu “bom coração”, não suportando calado as atrocidades contra pessoas perseguidas e ameaçadas de extermínio em campos de concentração. Ao tomar conhecimento de que seria processado pelo governo brasileiro em razão dos vistos irregulares, o diplomata mandou para o Rio de Janeiro telegrama que dizia: “Lembro que, não havendo aqui Consulado, me vi obrigado, sem perder um minuto, a assumir funções consulares para, literalmente, salvar vidas humanas, por motivo da maior catástrofe que sofreu até hoje a humanidade. Fiz o que teria feito, com a nobreza d’alma dos brasileiros, o mais frio deles, movido pelos mais elementares sentimentos de piedade cristã. Quase todos (os vistos) foram concedidos somente para facilitar a saída da França de infelizes votados ao suicídio, e a poucos, que apenas serviram para chegar até aí, segundo me informou esse Ministério, sem se ter verificado o menor dano ao País”.

Mesmo quando a Segunda Guerra Mundial acabou, houve quem alegasse desconhecer ter havido o Holocausto, mas, se prestasse atenção às advertências do embaixador brasileiro na França, poderia muito bem adivinhar o que se passava nos campos de concentração. Em informe citado por Koifman no livro Quixote nas trevas, Souza Dantas escreveu: “A Gestapo vem procedendo, na França ocupada, a verdadeira escravização e extermínio de judeus. Suas famílias são literalmente separadas: os maridos, de cabeças tosadas, são tangidos para trabalhar na Silésia; suas mulheres são internadas nos campos de concentração na Polônia, uns sem jamais poder saber dos outros, todos relegados a destinos ignorados; e os filhos, mesmo os de idade mais tenra, são violentamente arrancados às mães e confinados em asilos especiais, onde sucumbem”.

 


Jardim dos Justos, em Israel, onde está mencionado o nome de Luiz Martins de Souza Dantas: “Fiz o que teria feito, com a nobreza d’alma dos brasileiros, movido pelos mais elementares sentimentos de piedade cristã”, justificou-se o embaixador perante o governo Vargas


Estado Novo

As primeiras pesquisas sobre a saga de Souza Dantas foram feitas pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro, que descobriu mais dois nomes de diplomatas brasileiros com atuação semelhante à do embaixador na França. São Carlos Martins, embaixador do Brasil nos Estados Unidos, e Orlando Arruda, secretário da Legação brasileira em Varsóvia (Polônia). Embora atuando de forma independente, usavam de alguns artifícios para justificar os vistos considerados irregulares. Um deles era fornecer aos imigrantes judeus atestados de batismo, para que entrassem no País como se fossem católicos. Em 1988, Maria Luiza publicou pela Perspectiva o primeiro livro sobre o tema: Autoritarismo e anti-semitismo na era Vargas; agora está para sair Tributo a Souza Dantas. Outra obra em lançamento, pela Humanitas, é de autoria de uma doutoranda orientada por Maria Luiza, Priscila Perazzo, e leva o título Prisioneiros de guerra – Os súditos do Eixo nos campos de concentração brasileiros (1942-1945). Era nesses campos de concentração que se encontravam os prisioneiros alemães trocados, em Lisboa, por prisioneiros brasileiros, como o embaixador na França e seus auxiliares.

Maria Luiza explica as razões de as ordens getulistas proibindo a entrada no Brasil de judeus levarem o carimbo de secretas. O governo não pretendia desagradar aos países aliados, favoráveis aos judeus, e precisava manter a aparência de país neutro (antes da declaração de guerra ao Eixo), apesar de simpatizar claramente com o regime nazista. As circulares deixaram de ser secretas quando do processo contra Souza Dantas. A alegação perante a comissão administrativa encarregada de julgar o caso era de que o diplomata passava por cima da legislação, mas as provas apresentadas eram as instruções “secretas”. O processo contém 1.400 páginas.
Independentemente da guerra, a política brasileira do Estado Novo era discricionária, principalmente contra judeus e comunistas. O escritor Gustavo Barroso divulgava textos anti-semitas tais que, se fosse hoje, seria processado e provavelmente condenado. Em relação à imigração, ainda subsistia a mentalidade do branqueamento da raça, o que excluía a presença de judeus. A Constituição de 1934 (artigo 121) impunha restrições à entrada de imigrantes no território nacional, a fim de garantir a “integração étnica”.

Ensina Maria Luiza que, paralelamente às idéias de eugenia, de “perigo semita” e “perigo amarelo”, cresceu o estigma de “comunista”, que tomou forma de monstro político, moral e social sob a alegação de que colocava em risco a formação do Estado Nacional brasileiro (talvez pela mesma razão, a cartilha dos termos politicamente incorretos, escrita pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, tenha voltado ao assunto dias atrás). Os tempos eram dos integralistas de Plínio Salgado, da Intentona Comunista, da entrega de Olga Benário aos nazistas, dos católicos do Centro D. Vital e das circulares secretas.
Um delegado comercial do Brasil em Varsóvia, Pedro Rocha, descrevia assim a comunidade judaica: “Ingrata, sem patriotismo e altamente prejudicial ao país que a abriga. Psicologicamente degenerada, estupidamente intolerante em matéria religiosa, considera inimiga o resto da humanidade. São comerciantes usurários ou servem de intermediários para qualquer negócio. Quase todos são comunistas militantes ou simpatizantes do credo vermelho”. Manifestações que atualmente seriam impensáveis, vetadas pela Constituição de 1988.


Homenagem às crianças mortas no Holocausto, em Jerusalém



O rouxinol é o mesmo

No Ion Hashoá de 5 de maio, o psicanalista Jorge Forbes, filho de um primo de Souza Dantas, disse que estava lá “para ser interpretado por Souza Dantas, não para interpretá-lo”.

Trechos de seu texto:

A interpretação de Souza Dantas continua sendo necessária. Por mais que lembremos em filmes, em livros, em conferências dos horrores do nazismo, para que não sejam repetidos, por mais que nos valhamos das últimas testemunhas pessoais ainda vivas, não conseguimos afastar o perigo recorrente do racismo e das propostas eugênicas cientificistas de tratamento. Esse perigo não deixará de acompanhar a espécie humana.

Agora mesmo no Brasil, uma presidente de um conselho de psicologia pede uma lei para que os psicólogos denunciem a intenção de maus-tratos sobre crianças ou velhos, relatada por pacientes. Repito, ela quer punir a intenção. Outra lei quer obrigar os advogados a denunciarem imediatamente clientes que tenham cometido algum tipo de contravenção. E ontem os jornais anunciavam que uma cartilha havia sido lançada fazendo uma ortopedia da língua portuguesa, estabelecendo aquilo que podíamos e que não podíamos falar. Pior, isso foi feito pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, em um especial ataque aos direitos que deveria defender.

Dizia que esse perigo sempre acompanhou o homem e o acompanhará. Isso se dá por um fenômeno que, já tendo trabalhado sobre ele, resumiria da seguinte maneira: damos mais credibilidade ao insulto que aos elogios. Se elogiamos alguém, o elogiado diz que não é com ele e quem elogia é visto como exagerado, quando não bajulador. Por outro lado, quando se insulta alguém, o insultado responde atestando a ofensa e quem insulta é visto como corajoso, como aquele que diz a verdade. Em síntese: insulto pega, elogio não.

Por que estou fazendo essa referência? Pela razão de que o homem, à diferença dos animais, vive em contínuo processo de reorientação de sua existência. Já perguntava o poeta Keats se o rouxinol que ele via no parque era o mesmo que Shakespeare tinha visto. E, se assim fosse, se ele, Keats, seria também igual a Shakespeare. A resposta é: o rouxinol é o mesmo, porém Keats não é Shakespeare.

As soluções insultuosas são soluções tranqüilizadoras. O insulto, o racismo, a eugenia, o cientificismo vivem de um maniqueísmo infantil de certo e errado. Infantil, porém, atraente, muito atraente.

A interpretação de Souza Dantas, a interpretação que ele nos lega com seu ato, nos interpreta e nos interroga. A sua história, tão parecida com a nossa, é um alerta de que a acomodação contemplativa é a pior forma de covardia humana. Seja em momentos de importância circunscrita, seja no insulto à humanidade como o Hashoá que lembramos nesta homenagem.

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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