Passaportes com a assinatura de Souza
Dantas: historiador localizou pelo menos 500 vistos diplomáticos
emitidos pelo embaixador
Este ano, o Ion Hashoá, dia de reflexão
que os judeus do mundo inteiro fazem para lembrar o Holocausto,
teve motivos acrescidos: internacionalmente, a comemoração
dos 60 anos da derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial, a morte
de Hitler e a libertação dos prisioneiros dos campos
de concentração; em São Paulo, a revelação
de novos lances de heroísmo e atos humanitários do
embaixador brasileiro na França de 1922 a 1944, Luiz Martins
de Souza Dantas, que, contrariando orientação do Estado
Novo, assinou centenas de vistos de entrada, no País, de
judeus e outras pessoas perseguidas politicamente e ameaçadas
de morte. A mesa-redonda do dia 5 de maio, organizada pela Congregação
Israelita Paulista, tomou o nome de Bom para o Brasil,
tirado dos carimbos que Souza Dantas apunha nos passaportes dos
refugiados, e reuniu mais de 200 pessoas, entre elas o embaixador
Marcos Azambuja, o rabino Henry Sobel, o historiador Fábio
Koifman e o psicanalista Jorge Forbes. Na homenagem póstuma,
foi lembrado que o nome de Luiz Martins de Souza Dantas está
mencionado no Jardim dos Justos, em Israel. Naquela cerimônia,
no Museu do Holocausto, em 10 de dezembro de 2003, o embaixador
do Brasil em Israel, Sérgio Moreira Lima, lembrou algumas
personalidades favorecidas pela atuação do embaixador
na França que se tornaram famosas no Brasil. Entre outras,
Zbigniew Ziembinski (1908-1978), que se destacou no teatro.
Souza Dantas enfrentou um inquérito administrativo aberto
em 1941 pelo governo Vargas, foi aposentado compulsoriamente, mas
permaneceu no cargo por dificuldade de se nomear substituto em tempo
de guerra. Conta Fábio Koifman que, em 1943, logo depois
de a Alemanha ocupar a Zona Livre do governo colaboracionista
francês de Vichy, a sede da embaixada do Brasil foi invadida
por oficiais nazistas e o embaixador e seus colaboradores detidos
e deportados para Bad Godesberg, na Alemanha, onde permaneceram
confinados em hotel até o final de março de 1944.
Retornaram ao Brasil em maio daquele mesmo ano, depois de trocados
por prisioneiros alemães que eram mantidos em cárceres
brasileiros. O Itamaraty lembrou-se de Souza Dantas dois anos depois
e o convidou para chefiar a delegação brasileira na
abertura da primeira Assembléia Geral das Nações
Unidas, realizada em Londres entre 10 de janeiro e 14 de fevereiro
de 1946. Embora o primeiro discurso da história da ONU tenha
sido pronunciado pelo secretário de Estado norte-americano
James Francis Byrnes, coube ao representante brasileiro a palavra
seguinte. Desde então, é tradição o
Brasil abrir as atividades anuais da ONU.
Oswaldo Aranha, Souza Dantas e Getúlio Vargas, em maio de
1944
A
segunda lista
Como o industrial alemão Oskar Schindler, Souza Dantas tem
a sua lista. A diferença é que para o brasileiro ainda
não apareceu um Steven Spielberg para fazer um filme. O ostracismo
acompanhou o embaixador desde a sua morte, em 1954, o mesmo ano
da morte de Vargas, até que historiadores como Maria Luiza
Tucci Carneiro, do Departamento de História da USP, e Fábio
Koifman, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, começassem
a remexer nos 6 milhões de documentos do arquivo histórico
do Itamaraty e em outras fontes, donde saltaram informações
preciosas sobre a política nacional e internacional do Estado
Novo e o altruístico perfil do então embaixador brasileiro
na França.
Se alguém se puser a imaginar que a desobediência de
Souza Dantas às circulares secretas de Vargas, que proibiam
vistos de entrada a judeus e nipônicos, era movida por interesses
próprios e familiares, argumentando que o embaixador era
casado com uma judia Elisa Meyer Stern , Koifman responderá
que isso de modo algum faz sentido; Elisa, norte-americana irmã
de Eugene Meyer, que adquiriu um jornal falido chamado Washington
Post, havia deixado a França antes da invasão pelas
tropas alemãs e só voltou a ver o marido em meados
de 1944. Outra razão para a magnanimidade de Souza Dantas
poderia ter sido a generosidade inata que se costuma atribuir aos
brasileiros em geral; mas o historiador da Uerj, que diz ter localizado
cerca de 500 vistos diplomáticos assinados por Souza Dantas,
prefere acreditar que o diplomata era movido pelo seu bom
coração, não suportando calado as atrocidades
contra pessoas perseguidas e ameaçadas de extermínio
em campos de concentração. Ao tomar conhecimento de
que seria processado pelo governo brasileiro em razão dos
vistos irregulares, o diplomata mandou para o Rio de Janeiro telegrama
que dizia: Lembro que, não havendo aqui Consulado,
me vi obrigado, sem perder um minuto, a assumir funções
consulares para, literalmente, salvar vidas humanas, por motivo
da maior catástrofe que sofreu até hoje a humanidade.
Fiz o que teria feito, com a nobreza dalma dos brasileiros,
o mais frio deles, movido pelos mais elementares sentimentos de
piedade cristã. Quase todos (os vistos) foram concedidos
somente para facilitar a saída da França de infelizes
votados ao suicídio, e a poucos, que apenas serviram para
chegar até aí, segundo me informou esse Ministério,
sem se ter verificado o menor dano ao País.
Mesmo quando a Segunda Guerra Mundial acabou, houve quem alegasse
desconhecer ter havido o Holocausto, mas, se prestasse atenção
às advertências do embaixador brasileiro na França,
poderia muito bem adivinhar o que se passava nos campos de concentração.
Em informe citado por Koifman no livro Quixote nas trevas, Souza
Dantas escreveu: A Gestapo vem procedendo, na França
ocupada, a verdadeira escravização e extermínio
de judeus. Suas famílias são literalmente separadas:
os maridos, de cabeças tosadas, são tangidos para
trabalhar na Silésia; suas mulheres são internadas
nos campos de concentração na Polônia, uns sem
jamais poder saber dos outros, todos relegados a destinos ignorados;
e os filhos, mesmo os de idade mais tenra, são violentamente
arrancados às mães e confinados em asilos especiais,
onde sucumbem.
Jardim dos Justos, em Israel, onde está
mencionado o nome de Luiz Martins de Souza Dantas: Fiz o que
teria feito, com a nobreza dalma dos brasileiros, movido pelos
mais elementares sentimentos de piedade cristã, justificou-se
o embaixador perante o governo Vargas
Estado
Novo
As primeiras pesquisas sobre a saga de Souza Dantas foram feitas
pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro, que descobriu mais dois
nomes de diplomatas brasileiros com atuação semelhante
à do embaixador na França. São Carlos Martins,
embaixador do Brasil nos Estados Unidos, e Orlando Arruda, secretário
da Legação brasileira em Varsóvia (Polônia).
Embora atuando de forma independente, usavam de alguns artifícios
para justificar os vistos considerados irregulares. Um deles era
fornecer aos imigrantes judeus atestados de batismo, para que entrassem
no País como se fossem católicos. Em 1988, Maria Luiza
publicou pela Perspectiva o primeiro livro sobre o tema: Autoritarismo
e anti-semitismo na era Vargas; agora está para sair Tributo
a Souza Dantas. Outra obra em lançamento, pela Humanitas,
é de autoria de uma doutoranda orientada por Maria Luiza,
Priscila Perazzo, e leva o título Prisioneiros de guerra
Os súditos do Eixo nos campos de concentração
brasileiros (1942-1945). Era nesses campos de concentração
que se encontravam os prisioneiros alemães trocados, em Lisboa,
por prisioneiros brasileiros, como o embaixador na França
e seus auxiliares.
Maria Luiza explica as razões de as ordens getulistas proibindo
a entrada no Brasil de judeus levarem o carimbo de secretas. O governo
não pretendia desagradar aos países aliados, favoráveis
aos judeus, e precisava manter a aparência de país
neutro (antes da declaração de guerra ao Eixo), apesar
de simpatizar claramente com o regime nazista. As circulares deixaram
de ser secretas quando do processo contra Souza Dantas. A alegação
perante a comissão administrativa encarregada de julgar o
caso era de que o diplomata passava por cima da legislação,
mas as provas apresentadas eram as instruções secretas.
O processo contém 1.400 páginas.
Independentemente da guerra, a política brasileira do Estado
Novo era discricionária, principalmente contra judeus e comunistas.
O escritor Gustavo Barroso divulgava textos anti-semitas tais que,
se fosse hoje, seria processado e provavelmente condenado. Em relação
à imigração, ainda subsistia a mentalidade
do branqueamento da raça, o que excluía a presença
de judeus. A Constituição de 1934 (artigo 121) impunha
restrições à entrada de imigrantes no território
nacional, a fim de garantir a integração étnica.
Ensina Maria Luiza que, paralelamente às idéias de
eugenia, de perigo semita e perigo amarelo,
cresceu o estigma de comunista, que tomou forma de monstro
político, moral e social sob a alegação de
que colocava em risco a formação do Estado Nacional
brasileiro (talvez pela mesma razão, a cartilha dos termos
politicamente incorretos, escrita pela Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, tenha voltado ao assunto dias atrás). Os tempos
eram dos integralistas de Plínio Salgado, da Intentona Comunista,
da entrega de Olga Benário aos nazistas, dos católicos
do Centro D. Vital e das circulares secretas.
Um delegado comercial do Brasil em Varsóvia, Pedro Rocha,
descrevia assim a comunidade judaica: Ingrata, sem patriotismo
e altamente prejudicial ao país que a abriga. Psicologicamente
degenerada, estupidamente intolerante em matéria religiosa,
considera inimiga o resto da humanidade. São comerciantes
usurários ou servem de intermediários para qualquer
negócio. Quase todos são comunistas militantes ou
simpatizantes do credo vermelho. Manifestações
que atualmente seriam impensáveis, vetadas pela Constituição
de 1988.
Homenagem às crianças mortas no Holocausto, em Jerusalém
O
rouxinol é o mesmo
No
Ion Hashoá de 5 de maio, o psicanalista Jorge Forbes,
filho de um primo de Souza Dantas, disse que estava lá
para ser interpretado por Souza Dantas, não para
interpretá-lo.
Trechos de seu texto:
A interpretação de Souza Dantas continua sendo
necessária. Por mais que lembremos em filmes, em livros,
em conferências dos horrores do nazismo, para que não
sejam repetidos, por mais que nos valhamos das últimas
testemunhas pessoais ainda vivas, não conseguimos afastar
o perigo recorrente do racismo e das propostas eugênicas
cientificistas de tratamento. Esse perigo não deixará
de acompanhar a espécie humana.
Agora mesmo no Brasil, uma presidente de um conselho de psicologia
pede uma lei para que os psicólogos denunciem a intenção
de maus-tratos sobre crianças ou velhos, relatada por
pacientes. Repito, ela quer punir a intenção.
Outra lei quer obrigar os advogados a denunciarem imediatamente
clientes que tenham cometido algum tipo de contravenção.
E ontem os jornais anunciavam que uma cartilha havia sido
lançada fazendo uma ortopedia da língua portuguesa,
estabelecendo aquilo que podíamos e que não
podíamos falar. Pior, isso foi feito pela Secretaria
Especial dos Direitos Humanos, em um especial ataque aos direitos
que deveria defender.
Dizia que esse perigo sempre acompanhou o homem e o acompanhará.
Isso se dá por um fenômeno que, já tendo
trabalhado sobre ele, resumiria da seguinte maneira: damos
mais credibilidade ao insulto que aos elogios. Se elogiamos
alguém, o elogiado diz que não é com
ele e quem elogia é visto como exagerado, quando não
bajulador. Por outro lado, quando se insulta alguém,
o insultado responde atestando a ofensa e quem insulta é
visto como corajoso, como aquele que diz a verdade. Em síntese:
insulto pega, elogio não.
Por que estou fazendo essa referência? Pela razão
de que o homem, à diferença dos animais, vive
em contínuo processo de reorientação
de sua existência. Já perguntava o poeta Keats
se o rouxinol que ele via no parque era o mesmo que Shakespeare
tinha visto. E, se assim fosse, se ele, Keats, seria também
igual a Shakespeare. A resposta é: o rouxinol é
o mesmo, porém Keats não é Shakespeare.
As soluções insultuosas são soluções
tranqüilizadoras. O insulto, o racismo, a eugenia, o
cientificismo vivem de um maniqueísmo infantil de certo
e errado. Infantil, porém, atraente, muito atraente.
A interpretação de Souza Dantas, a interpretação
que ele nos lega com seu ato, nos interpreta e nos interroga.
A sua história, tão parecida com a nossa, é
um alerta de que a acomodação contemplativa
é a pior forma de covardia humana. Seja em momentos
de importância circunscrita, seja no insulto à
humanidade como o Hashoá que lembramos nesta homenagem.
|
|