Difícil
imaginar que uma pessoa que desde os 7 anos se dedica à música
e aos 15 começou a cantar; que há anos desenvolve
o projeto Memória Musical Brasileira, no qual se incluem
o Cancioneiro da Imigração e a proposta de continuação
do trabalho em mais um CD com pelo menos mais 13 comunidades; que
trabalha com um projeto internacional sobre Villa-Lobos e com outro,
chamado Jardim Romântico, que recupera obras de compositores
do século 19 pouco conhecidos do público, que faziam
parceria com grandes poetas da época; que na Universidade
de São Paulo, ao tempo da formação do Coral
da USP, por quatro anos cantou e deu aulas de técnica vocal;
que no Museu Paulista faz levantamento de material sonoro para a
criação dos audioguias, que são informações
para visitantes em forma de texto e música sobre os objetos
expostos; que produziu ou produz trilhas sonoras para cinema e eventos
como O Brasil dos Viajantes, Vozes da América
(série iniciada em1992), Cartografia Paulista dos séculos
17/18, que está no Museu Paulista; e Expedição
Teotônio José Juzarte pelos rios Tietê/Paraná
no século 18, registrada em diário; A arte do Vale
do Jequitinhonha, um documentário de ex-aluno de Cinema da
USP; uma artista que é a um só tempo cantora, pesquisadora,
criadora e produtora, com 18 gravações na bagagem;
difícil imaginar que uma pessoa com qualificação
tão abrangente ainda se considere uma sacoleira de seus produtos.
Pois a sacoleira cultural é Anna Maria Kieffer, que afirma
ser cada vez mais difícil fazer música no Brasil,
arte sufocada pelas produções comerciais de vida curta.
Ainda bem que, pelo menos em alguns casos, pode-se recorrer às
leis de incentivo cultural.
No caso do Cancioneiro da Imigração
um
livro/CD duplo com canções de populações
formadoras da identidade nacional (guaranis, paulistas e afro-brasileiros),
comunidades de imigrantes (portugueses, sírios e libaneses,
italianos, húngaros, judeus, japoneses, alemães, armênios,
poloneses, russos e espanhóis) e migrantes (nordestinos),
patrocinado pela Petrobrás , Anna Maria prepara a continuação,
mas tudo ainda depende da manutenção do patrocínio.
Na primeira fase do projeto ela trabalhou com as comunidades mais
antigas e com maior densidade demográfica; sobraram os grupos
que, embora menos numerosos, não deixam de ter importância
cultural.
Uma primeira pesquisa indicou que há material mais do que
suficiente para novo CD dedicado às comunidades mais recentes.
Anna Maria pretende organizar os grupos por regiões de origem.
O dos bálticos deve incluir lituanos, letões e estonianos;
no dos escandinavos entram os não incluídos no primeiro
volume, aqueles que pertenceram à Rússia do sul, mas
se consideram culturalmente independentes, a exemplo dos ucranianos;
terão vez também os gregos, que chegaram depois da
Segunda Guerra, como também os chineses e os coreanos; no
grupo dos latino-americanos haverá os andinos, como os bolivianos;
os platinos, ou argentinos, uruguaios e parte dos paraguaios. Representando
os nativos estarão os pankarurus, uma nação
inteira que migrou do Ceará para São Paulo e vive
na favela Parque Real.
No painel musical das múltiplas comunidades que atuam em
São Paulo não estariam faltando os africanos? Anna
Maria justifica a ausência dizendo que os historiadores diferenciam
imigração de colonização. A maioria
dos africanos chegou à força e seus representantes
costumam falar de diáspora, lembrando a violência da
escravidão. É verdade que no primeiro CD eles foram
retratados como comunidades pré-existentes à chegada
da grande imigração. Constituem vestígios do
que seria uma cultura paulista no século 19. Não
fiz retrato amplo da comunidade africana, informa a pesquisadora,
porque entendo que só ela, pela importância cultural,
merece um trabalho à parte. Esta é mais uma
idéia que a pesquisadora inclui nos projetos futuros, para
execução própria ou de terceiros. Outra proposta,
ainda mais abrangente, embora não para breve, é um
cancioneiro da imigração nacional, mas nesse caso
seriam necessárias parcerias amplas, pesquisadores de todos
os Estados, participação de universidades e patrocínio
preferivelmente internacional, do tipo Unesco.
Ainda no primeiro trabalho, Anna Maria fez os nordestinos representarem
os migrantes para São Paulo. A razão de serem eles
os escolhidos, e não os gaúchos ou outras comunidades
vindas para a capital, é que se trata de uma cultura muito
antiga, de raízes ibéricas, africanas e até
judaicas e com papel importante na formação da cultura
e na construção da capital paulista. Os migrantes
serão mantidos na segunda fase do projeto, se houver.

Gritos
das montanhas
Quem ouvir atentamente o CD duplo já comercializado conhecerá,
com ajuda do texto de Anna Maria, aspectos interessantes da criatividade
dos imigrantes. Da Polônia, por exemplo, chegam os Gritos
das montanhas, canção tradicional que simula comunicação
entre aldeias situadas em cocurutos de montes. Mas o que eles
querem dizer eu não sei, reconhece a organizadora da
coletânea. É preciso perguntar aos cantores.
A Alemanha comparece com canções de caráter
erudito (palavra que Anna Maria diz abominar). Explica-se: a comunidade
alemã chegada a São Paulo no século 19 compunha-se
de famílias de diferentes gostos, informação
e poder aquisitivo. Algumas trouxeram instrumentos apropriados para
quartetos de corda e os tocavam em suas festas. Bem representativa
desse grupo é a família Weiszflog, mencionada no CD,
que no Brasil fundou a Companhia Melhoramentos. Com os instrumentos
vinham da Alemanha também partituras de compositores clássicos.
Beethoven, por exemplo. Na gravação, a pesquisadora
escolheu não sozinha, mas com a comunidade estudada,
como em todos os casos uma peça de Brahms, uma harmonização
culta de canto popular.
Quando pensou no projeto patrocinado pela Petrobras, a pesquisadora
decidiu que as comunidades participantes e instituições
públicas deveriam ser as principais beneficiadas. Da tiragem
de 5 mil exemplares, uma parte foi parar na rede pública
de ensino e em bibliotecas, outra foi para o patrocinador, conforme
manda a lei de incentivo, as comunidades receberam parcela maior
e o restante é comercializado pela co-patrocinadora Akron.
Uma coisa de que Anna Maria não abre mão é
pagar cachê para os grupos participantes do projeto. Todo
trabalho deve ser remunerado.
O lançamento da obra, no ano passado, deu ocasião
à pesquisadora de promover debates com as comunidades envolvidas
no projeto. Assim, em mesa-redonda na Associação Cultural
Cachoeira, representantes dos imigrantes destacaram o cuidado com
a preservação das tradições. Há
comunidades que mandam filhos para estudar musicologia, etnologia
e pesquisa nos países de origem. Os jovens voltam com informação
acumulada e repassam o saber para a comunidade. Uma família
húngara destacou para essas visitas três filhas, que
ficaram hospedadas em casas de família. Casos semelhantes
foram narrados por sírios, libaneses e poloneses.
O Cancioneiro da Imigração tentou reproduzir a memória
do navio. Mas é certo que algumas comunidades se fecham.
É o caso do pessoal da Ilha da Madeira, que possui um centro
cultural no Horto Florestal. Contraditoriamente, o isolamento os
tornou conhecidos na região, a ponto de a rua onde se reúnem
tomar o nome de Casa da Ilha da Madeira. Os japoneses, ao contrário,
são abertos, mas o forte contato com o país de origem
mescla tradição com modernidade. Composição
de Matsuo Bashô, o grande mestre do haicai do século
17, abre o segundo CD do cancioneiro.
A fonte
As comunidades, os centros culturais organizados por elas
e as igrejas (católica, luterana e ortodoxa) são as
melhores fontes da pesquisadora, que não encontrou a mesma
disposição na oficialidade, como os consulados. Segundo
Anna Maria, as representações diplomáticas,
com algumas exceções, interessam-se mais pela cultura
e por eventos da atualidade, omitindo-se em relação
à cultura tradicional. A tradição se
mantém a despeito deles, comenta. Nos dois anos e meio
que durou a execução da primeira fase do projeto musical
dos imigrantes, e que envolveu algumas centenas de colaboradores,
Anna Maria diz que não apenas ficou maravilhada de encontrar
nas comunidades excelentes cantores, como aprendeu muito com eles.
Depois, teve de responder a muitas cobranças de comunidades
não abrangidas na primeira fase e de outros Estados.
Os que se dispuserem a fazer as suas próprias produções
podem contar com a ajuda técnica e desburocrática
da pesquisadora.

A
universidade por perto
Anna
Maria Kieffer lamenta não poder conciliar suas múltiplas
atividades com a docência acadêmica. Não
tenho críticas à universidade, que faz mais
do que pode. Deveria receber apoio não só do
governo, mas de outras instituições. E
destaca que, na época em que o maestro Benito Juarez
dava início ao Coral da USP, foi por ele convidada
para dar cursos que seriam o embrião de um projeto
musical para a Universidade. Ficou quatro anos como cantora
e professora. Nessa época, nos anos 70, estava
desenvolvendo carreira solo em nível internacional
e enfrentei um problema que enfrento ainda hoje, o de ficar
fora do País por longos períodos que nem sempre
coincidem com as férias. Afastou-se, formalmente,
porém mantém contato contínuo com a academia.
Agora mesmo ajuda o Museu Paulista a implantar os audioguias,
equipamentos compostos de fone de ouvido e uma espécie
de controle remoto. Acionando-os voltados para um objeto,
o visitante ouve informações sobre ele e música
do período. O sistema é adotado rotineiramente
em grandes museus do mundo. Orgulho-me muito de participar
do projeto, afirma Anna Maria, que prepara a parte sonora
para os textos da equipe pedagógica do museu, comandada
pela professora Denise Peixoto. Três trajetos contarão
com os audioguias e englobam 120 explicações.
A fase é de teste com visitantes. Claro que os textos
deverão variar de duração conforme o
interesse histórico da peça. Um veículo
usado no final do século 19 certamente terá
texto mais longo que um chapéu da mesma época.
Para cada qual, uma trilha sonora. O quadro Independência,
de Pedro Américo, merece mais tempo que um retrato
de duque. No caso do veículo, a pesquisadora prepara
uma paisagem sonora que reproduza sons da rua, como de vendedores
ambulantes, passos de pessoas e animais, pregões, etc.
Se a voz deve ser de homem ou de mulher, também é
questão de oportunidade. A explicação
de um chapéu convém que venha na voz feminina,
a de uma arma, masculina. Os textos ainda não estão
completos, nem a música, mas pelo cálculo de
Anna Maria tudo junto deve dar uns três CDs.
Foi no Museu Paulista que a pesquisadora foi buscar a primeira
ilustração para os CDs do Cancioneiro da Imigração.
Trata-se do quadro da Várzea do Carmo, de Benedito
Calixto, executado na virada do século 19 para o 20,
exatamente a época da grande imigração.
No caso do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), mencionado
no texto do cancioneiro, Anna Maria diz que usou suas imagens
e teve conversas esclarecedoras com o diretor, professor István
Jancsó, húngaro de origem.
Muitos outros projetos ocupam a mente da cantora, produtora
e sacoleira cultural. O do coração
é o Jardim Romântico, que, por sinal, deu origem
ao cancioneiro dos imigrantes. Estuda a canção
brasileira no Rio Grande do Sul, São Paulo e Bahia
em meados do século 19. Doze compositores quase desconhecidos
da crítica, que entre 1840 e 1870/80 tiveram por parceiros
poetas como Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Castro
Alves, Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães,
Melo Morais Filho e Machado de Assis. Mostra o encontro entre
poetas eruditos e músicos, fenômeno que antecedeu
a parceria, bem recente, entre Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
O projeto está no papel, formatado para a Lei Roaunet.
Uma primeira tentativa frustrou-se, talvez porque a apresentação
era muito acadêmica, como para a USP. A
iconografia das capas das composições deslumbra
a pesquisadora. Outro trabalho, não menos do coração,
são peças que Anna Maria compõe para
voz solo, inspirada em personagens de Grande sertão:
veredas, de Guimarães Rosa.
Em condomínio no bairro do Morumbi onde mora, na grande
sala cheia de quadros nas paredes, janelas abertas para restos
de mata atlântica, na qual se misturam altíssimos
eucaliptos gringos, Anna Maria toca piano. Música e
poesia. No instrumento, na partitura, nos olhos.
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