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literatura de viagem foi um dos principais elementos responsáveis pelas inovações na sociedade e na cultura européias, a ponto de provocar grandes mudanças no Velho Continente. Ao levar o viajante e o leitor a se confrontarem com modos e costumes de vida diferentes dos seus, colocando em dúvida seus próprios princípios comportamentais, introduziu o conceito de relativismo, ou seja, a idéia de que outras formas de vida são tão válidas quanto aquelas vigentes em uma determinada sociedade. Essa tese de grande atualidade no mundo contemporâneo, em que os exemplos de intolerância se multiplicam, foi defendida pelo francês Paul Hazard (1878-1944) no livro A crise da consciência européia. A idéia já era defendida por Jaucourt na Enciclopédia, a famosa obra publicada no século 18 pelos iluministas franceses Diderot e D’Alembert. Segundo o autor do verbete, a viagem amplia o “espírito” das pessoas, elevando-o e curando-o dos “preconceitos nacionais”. Esses princípios nortearam a palestra proferida dia 31 de maio pelo professor Elvio Guagnini, da Universidade de Trieste, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“O conhecimento do outro ajuda a vencer os preconceitos tão vivos ainda hoje, em nome dos quais explodem guerras e se age de forma incorreta”, afirma o professor. “Mas é preciso lembrar que existem escritores-viajantes preconceituosos, que repetem o que já disseram aqueles que vieram antes deles ou os seus contemporâneos. E também há os autores bons e os ruins”, ressalva. Guagnini acredita que as escolas deveriam fomentar a leitura de obras de literatura de viagem entre as crianças e adolescentes, uma vez que se trata de um gênero vivo, com obras que são verdadeiros testemunhos escritos por quem travou contato direto com outras realidades, ou podem ser saborosos relatos de aventuras – um convite à curiosidade do público juvenil e que tem tudo para funcionar como um ímã capaz de aproximá-los do mundo da literatura.

O livro The mind of the traveler, from Gilgamesh to global tourism (A mente do viajante, de Gilgamesh ao turismo global), de Eric. J. Leed, professor da Universidade Internacional da Flórida, foi citado pelo palestrante como uma das obras fundamentais para o estudo da literatura de viagem. “Leed insere a viagem em um discurso que se situa entre o histórico e o antropológico, em seus três momentos decisivos: a partida, o trânsito e a chegada”, explica. “Ele considera a experiência da viagem como algo que traz, simultaneamente, a perda e a aquisição; a perda daquilo que o viajante deixa para trás quando parte de seu lugar de origem e a aquisição de uma nova identidade através daquilo que acumula no curso da viagem.”

Alguns estudiosos, como o italiano Giancarlo Roscioni, vão além, explica Guagnini, e afirmam que é apenas ao sair de sua própria comunidade que o indivíduo descobre aquilo que o une ao seu meio social. Uma tese que interpreta os deslocamentos como determinantes de fatores aparentemente estáveis e duradouros de toda agregação humana. “A viagem funciona como um reagente, que favorece a formação de instituições e costumes, aos quais, erradamente, atribuímos uma identidade autônoma”, afirma. “É um processo de conhecimento, que exerce influência sobre as comunidades, sobretudo por parte daqueles que se deslocam e trazem consigo os elementos que as transformam”, explica o professor.

Francis Bacon

Foi a partir do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), um dos pais do pensamento experimental moderno que deu origem à cultura iluminista, que a experiência e a observação direta ganharam impulso. Com sua defesa da filosofia experimental, base de todo o pensamento filosófico e científico moderno, Bacon é considerado um dos maiores incentivadores da viagem como elemento da formação do indivíduo – o que pode ser conferido em seu ensaio Of travel. Ele imprimiu um selo de validade ao grand tour, o costume de enviar os nobres ingleses para uma viagem de três ou quatro anos pela Europa, nascido no século 15 na aristocracia da Inglaterra – país que, vale lembrar, é uma ilha. “A redação de um diário de viagem fazia parte do grand tour e esses diários constituem uma valiosa contribuição para o desenvolvimento da literatura de viagem”, explica. Muitos nobres levavam consigo pintores e desenhistas e aproveitavam para registrar as técnicas utilizadas por outros povos (a chamada espionagem industrial dos dias atuais) ou plantas e animais exóticos. Nesse sentido, diz o professor, a literatura de viagem oferece a oportunidade de se observar como, ao longo do tempo, o homem mudou a sua forma de ver a paisagem.

Assim, se no Iluminismo os livros de viagem dedicavam mais atenção para a vida urbana e social, surge progressivamente um processo de interiorização da paisagem. Na literatura italiana, explica o professor, Giuseppe Baretti (1716-1789), com seu livro Lettere familiari a’suoi tre fratelli, de 1762, relato de uma longa viagem a Portugal, França e Espanha, representa um marco, colocando o sujeito em primeiro plano, como um ser humano com suas idiossincrasias e humores. “Baretti descreve nessa obra uma topografia do tédio, um sentimento moderno que nasce da paisagem, e se aproxima muito de Sentimental journey through France and Italy (Viagem sentimental através da França e da Itália), do escritor inglês Lawrence Stern (1713-1768)”, afirma. De acordo com Guagnini, o livro de Stern está na base da revolução da percepção da paisagem, porque fez da viagem uma aventura interior, altamente subjetiva, que compreende uma interiorização da paisagem.

“Antes dessa mudança de percepção, a paisagem era sobretudo o aspecto humano e a atenção era dirigida para os fatores sociais, os costumes, os fenômenos micros e macros da sociedade, à maneira como eram feitas as cidades”, esclarece. O professor chama a atenção para o nascimento do turismo de massa, em 1841, quando Thomas Cooke organiza uma viagem de trem na Inglaterra, para aqueles que seriam os primeiros turistas da história. A partir daí os guias de viagem, que antes se limitavam a trazer informações de caráter técnico (temperatura, festas religiosas, feriados, entre outras), passarão a se desenvolver cada vez mais. O advento do jornalismo e dos chamados “enviados especiais”, na Itália do início do século 20, popularizou o gênero naquele país e abriu caminho para o advento da terza pagina nos jornais da península. Dedicada a relatos de viagem e artigos culturais, esse espaço sobreviveu até a década de 1980, quando foi substituído pelos suplementos de cultura.

Dizionario dei viaggiatori

Elvio Guagnini faz parte do conselho científico do Dizionario italiano dei viaggiatori (Dicionário italiano dos viajantes), obra em processo de elaboração que conta com a colaboração de pesquisadores de várias disciplinas, a fim de dar uma idéia das diversas dimensões em que a literatura de viagem pode ser estudada. O dicionário incluirá tanto os viajantes italianos na Itália e no exterior como os estrangeiros que escreveram sobre aquele país. Será composto por cinco volumes. O primeiro deles, um manual para o estudo da literatura de viagem, deverá ser publicado em 2006. A Editora Diabasis, de Reggio Emilia, é a responsável pela publicação. A iniciativa se insere no âmbito de um interesse cada vez maior por esse gênero literário na Itália, que pode ser constatado na multiplicação de vários centros de pesquisa dedicados à literatura de viagem.

O professor esteve na capital paulista para concluir o acordo de cooperação entre a Universidade de Trieste e a USP – que prevê pesquisas na área de literatura e o intercâmbio entre professores e alunos, entre outros tópicos. No dia 2 de junho, abriu o 11o Congresso da Associação Brasileira de Professores de Italiano, em Foz do Iguaçu (PR), com a conferência Cognizione dell’alterità, conquista dell’identità. Scritture di viaggio di viaggiatori italiani (Conhecimento da alteridade, conquista da identidade. Relatos de viagem de viajantes italianos).

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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