
A prosperidade brota insaciável
a todos os mortais. Por recusa
ninguém a repele de indigitados palácios
a dizer: não entres mais aqui.
Os Venturosos deram a este homem
capturar o país de Príamo
e honrado por Deus retorna ao
lar.
Se agora responder por sangue antigo
e morto pelas mortes cobrar punição
com outras mortes,
que mortal ouvindo isso alardearia
ter nascido com incólume destino?
O
coro da tragédia Agamêmnon primeira parte da
trilogia Orestéia, de Ésquilo (525-456 antes de Cristo)
faz reflexões que atravessam os tempos e instigam
o homem contemporâneo. Na figura de Agamêmnon, filho
de Atreu e rei de Micenas, na Grécia antiga, Ésquilo
concentra grandes dramas humanos e mistérios divinos. Ao
voltar, vitorioso, da guerra contra Tróia, o país
de Príamo, o rei é recebido pela esposa, Clitemnestra,
que, após falsas cortesias e auxiliada por seu amante, Egisto,
golpeia o marido até a morte: Eis aí Agamêmnon,
meu esposo, e morto, façanha desta mão destra, justo
artífice.
Por toda a trilogia formada ainda por Coéforas e Eumênides,
onde é relatada a vingança de Orestes, filho de Agamêmnon
e Clitemnestra, que matou os assassinos do pai e é atormentado
por ter eliminado a própria mãe , perpassam
noções de permanência eterna: as idéias
de fatalidade, de inevitáveis conseqüências dos
atos cometidos (morto pelas mortes cobrar punição
com outras mortes) e do vão orgulho do homem de tentar
se elevar à altura dos deuses, prontos a humilhá-lo
sempre que se enaltece além do devido (A prosperidade
brota insaciável a todos os mortais). A elas acrescem-se
os versos do coro que tratam da justiça e do poder e as cenas
que contrapõem a cidadania democrática, contemporânea
de Ésquilo, à aristocracia e à tirania.
Essas reflexões da Orestéia encontram-se agora em
português, numa tradução feita diretamente do
original grego pelo professor Jaa Torrano, do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Lançada em
três volumes e em edição bilíngüe
(grego-português) pela Iluminuras e Fapesp, a trilogia é
acompanhada ainda de estudos de Torrano, que comenta longamente
cada uma das três peças. Nesta trilogia de Ésquilo,
entrelaçam-se, confundem-se e distinguem-se quatro pontos
de vista e quatro graus da verdade: o dos Deuses, o dos Daimones,
o dos Heróis e o dos homens cidadãos da cidade-estado,
escreve Torrano, que já traduziu outros textos clássicos,
como Teogonia A origem dos Deuses, de Hesíodo, Prometeu
acorrentado, de Ésquilo, e Medéia, de Eurípides.
Nessa multiplicidade de pontos de vista e de graus da verdade,
instaura-se a dialética trágica, pré-filosófica,
que investiga o sentido humano, o sentido heróico e o sentido
numinoso (pertinente ao Daímon, Nume) da justiça
divina dispensada por Zeus e partilhada pelos homens da pólis.
Origens
A Orestéia foi representada pela primeira vez em Atenas,
na Grécia, em 458 antes de Cristo. Com ela, Ésquilo
obteve o primeiro lugar no concurso dramático da cidade.
Essa não foi a única vitória do autor nos palcos
atenienses: do ano 500, quando iniciou sua carreira, até
456, data de sua morte, em Gela, na Sicília, Ésquilo
venceu 13 concursos e compôs cerca de 90 peças, entre
tragédias e sátiras. Dessas, apenas sete tragédias
sobreviveram até hoje: As suplicantes, Os persas, Os sete
contra Tebas, Prometeu acorrentado e a trilogia Agamêmnon,
Coéforas e Eumênides.
Com suas obras, Ésquilo fez inovações no teatro
grego, entre elas a introdução de um segundo ator
(antes apenas um ator dividia as cenas com o coro), o que ampliou
a função do diálogo entre as personagens. Mas
as peças do autor da Orestéia permanecerão
ainda muito próximas das origens da tragédia, que
remontam aos cultos ao deus Dioniso: a ação é
simples e prevalece o elemento lírico, por exemplo. Outras
mudanças virão pouco mais tarde com Sófocles
(495-405) que acrescenta um terceiro ator, é mais
dramático e menos lírico e valoriza a consciência
e a liberdade humanas e Eurípides (480-406), que dá
ênfase à vida cotidiana de Atenas.
Nascido em Elêusis, uma cidade próxima a Atenas, Ésquilo
participou das célebres batalhas de Maratona e Salamina,
ocorridas em 490 e 480, respectivamente, que determinaram a derrota
dos persas diante dos gregos e a ascensão de Atenas como
maior potência mediterrânea na época. Com a tradução
de Torrano, sua obra e as reflexões tão atuais
que suscita fica mais próxima do leitor brasileiro.
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