A
robotização, virtualização, frankensteinização
feminina é uma violência que leva a mulher a perder
o respeito por si mesma e pelas suas limitações, a
retalhar o companheiro e mentir que deseja estar só, quando
na realidade busca os ideais de sempre, entre os quais se incluem
ser romanticamente bonita, casar e ter filhos.
A luta histórica pela libertação e conquista
dos direitos da mulher, que em muitos casos desanda em exageros
e desumanização, foi e continua sendo estudada pela
jornalista e professora Maria Goretti Pedroso, mestra em Comunicação
pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP,
coordenadora do Núcleo de Estudos da Comunicação
Barbarella, também da ECA, documentarista e publicitária.
Durante três anos deu aulas de técnica de redação
e produção audiovisual como professora convidada da
ECA. Trabalha também na Caverna Digital da Escola Politécnica
e com pesquisadores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (Antropologia) e do Instituto de Física. Eu
sou da USP inteira, resume. Seu mestrado resultou na dissertação
A mulher virtual A virtualização da mulher
nos meios de comunicação, tema que desenvolve
também no doutorado, com destaque para a mulher virtual da
era da Internet.
Quando vivia em Portugal e Espanha, entre 1994 e 98, Maria Goretti
observou que as mulheres européias não se entregavam
a vaidades exacerbadas, não expunham o corpo, considerado
complemento da alma, viviam de acordo com o clima frio do continente.
Ao voltar para São Paulo, levou um susto. Era a época
das popozudas, da Carla Peres e suas réplicas, da fabricação
da mulher ideal, tendo como referência estética os
Estados Unidos. Diante disso, a pesquisadora se lembrou do pensador
francês Jean Baudrillard, quando fala da simulação
do real, daquilo que pode existir, mas de fato não existe,
como a semente que é a virtualização da árvore,
embora ainda não seja uma árvore. Assim seria a mulher
robotizada, uma virtualização da boneca que já
existe na publicidade, na televisão, na Internet. Aos poucos,
essa mulher vai substituindo a mulher real, e com vantagens, porque
não precisa dormir, trabalha 24 horas, está sempre
disposta, não tem TPM e fala vários idiomas. É
o superlativo do real, diz Maria Goretti, e a supervalorização
do visual leva à necessidade de fazer plástica, usar
botox, se transformar num Frankenstein feito de pedaços de
ídolos do cinema, da música pop, do mundo virtual.
Para virar Britney Speers vale tudo: mudar queixo, pintar olhos,
fabricar figura semelhante à da artista.
Maria Goretti identifica virtualização até
nas apresentadoras do programa Fantástico, da
Rede Globo. A sucessora de Ana Paula Padrão tem as
mesmas características da Sandra Annemberg, da Fátima
Bernardes, de todas as outras. Já saiu da Internet e dos
filmes. É meu objeto de estudo no doutorado. A publicidade
recorre muito ao virtual, entre outras razões, para diminuir
custos. Atores virtuais não cobram salários.
Décadas
depois da emancipação feminina, a mulher não
está satisfeita, diz a pesquisadora Maria Goretti. Constatou-se
a solidão da mulher da sociedade pós-industrial, que,
para se enganar, abasteceu-se com produtos ligados à estética,
como maquiagem, roupas, ginástica e implantes. Qual
é a verdadeira representação da imagem dessa
mulher em uma sociedade com aparato tecnológico apelativo,
visto que se mutila e se transforma o tempo todo? Em que esse ser
orgânico se diferencia de um andróide, metade homem
metade máquina, programado para certas funções,
com força descomunal e incontrolada?
Fases
históricas
Para traçar a trajetória da virtualização
da mulher, Maria Goretti analisou três períodos históricos,
correspondentes à revolução industrial, à
revolução feminina pós-industrial ou da contracultura,
dos anos 60, e à revolução tecnológica
da robotização, que precedeu a Internet. Na era industrial,
afirma a pesquisadora, a mulher está inserida na sociedade
de massa, fenômeno psicológico em que se vê participante
de um grupo e agindo em comum acordo com ele. Com as massas a mulher
pôde pensar, questionar, mobilizar-se e atuar com determinação.
Durante a Primeira Guerra Mundial, enquanto os maridos lutam, as
mulheres ocupam as fábricas, tomam gosto pela produção
de bens materiais e se conscientizam de seu próprio valor.
O cinema norte-americano muito concorreu para que a mulher expandisse
seu território, pegando carona com as personagens do Star
System, identificando-se com estrelas como Bette Davis, Marlene
Dietrich, Greta Garbo, Elizabeth Taylor. Mas no mundo cinematográfico
foi o filme Metrópolis (1926), de Fritz Lang, que melhor
transpôs para a tela a sociedade industrial e a situação
da mulher nesse contexto. Ficção científica,
a fita descreve dois mundos, o dos operários e o dos burgueses
opressores. Maria, filha de operário, é mulher de
carne e osso na primeira fase, quando lidera a luta dos empregados;
na segunda, transformada por um cientista, vira robô e atua
em total desacordo com o que fizera na primeira parte do filme.
Um retrato fiel da sociedade da época e uma discussão
sobre a importância, benefícios ou malefícios
da automatização do homem. Metrópolis, diz
Maria Goretti, fechou o primeiro ciclo da emancipação
feminina. A partir dele, a mulher buscou cada vez mais sua independência
em todos os setores, porque, a seu modo, já havia conquistado
espaços antes inatingíveis.
Depois da guerra, os homens voltam para casa e para as fábricas,
mas as mulheres já não querem simplesmente retomar
a vida doméstica. Não por muito tempo, porém,
porque sobrevém nova guerra e tudo se repete. Até
que nos anos 50 e 60, sob influência do espírito do
american way of life, começa a desaparecer de vez o modelo
de esposa gentil, fiel e submissa ao marido. Os avanços tecnológicos
trouxeram bens materiais que iriam revolucionar os lares do mundo,
em especial a televisão. No lar, a mulher dispõe de
eletrodomésticos de toda ordem que lhe facilitam a vida,
e, na sociedade, de bens imateriais traduzidos por valores como
estética, informática, educação e informação.
A juventude, rebelde sem causa, dava o exemplo com o
rock-n-roll, milk-shake, lambretas, minissaias, calças
coladas ao corpo, coca-cola, movimento hippie, liberação
sexual, pílula anticoncepcional. Mais uma vez, um filme representativo
da época: Barbarella (1968), de Roger Vadim, que, segundo
Maria Goretti, exemplificou na tela a transformação
da condição da mulher na sociedade, questionando a
sua guerra pessoal e sua conquista social travando batalhas no espaço
e utilizando o sexo como arma contra o inimigo. O movimento libertador
questionava a virgindade, o aborto e o casamento. Na mesma fase,
acentua-se a presença feminina no mercado de trabalho, ganha
força o acesso à cultura e o voto é um direito
igual ao dos homens.
Depois disso, a mulher está satisfeita? Não, responde
a pesquisadora: Constatou-se a solidão da mulher da
sociedade pós-industrial, que, para se enganar, abasteceu-se
com produtos ligados à estética, como maquiagem, roupas,
tratamentos de beleza, ginásticas, implantes, enfim, formas
de metamorfoses que nos faziam indagar: qual é a verdadeira
representação da imagem dessa mulher em uma sociedade
com aparato tecnológico apelativo, visto que se mutila e
se transforma o tempo todo? Em que esse ser orgânico se diferencia
de um andróide, metade homem metade máquina, programado
para certas funções, com força descomunal e
incontrolada?.
O estudo de Maria Goretti chega à conclusão de que
as mulheres saíram da revolução colorida e
contestadora dos anos 60 e buscaram solução para a
ausência de significado em suas vidas na revolução
tecnológica. Novamente buscaram novas formas de se relacionar
com o mundo, mas já estavam contaminadas pelo vírus
da robotização, cujos sintomas eram trabalhar por
muitas horas consecutivas sem descanso, dupla jornada de trabalho,
acúmulo de funções, estar ao mesmo tempo em
vários lugares. Nasceu então o conceito de mulher
ciborgue, definido como um organismo cibernético, híbrido
de máquina e organismo, criatura de realidade social e de
ficção. O terceiro filme analisado mais profundamente
pela pesquisadora ilustra claramente o período. É
Blade Runner, o caçador de andróides (1982), de Ridley
Scott, que descreve três tipos de mulheres fortes, sedutoras,
determinadas: Rachel, indefesa e frágil; Zhora, forte e masculinizada;
Pris, ingênua mas forte, romântica mas pronta para qualquer
combate.
A
mulher do futuro
Pelo
menos nas grandes cidades, a tendência à montagem
de Frankensteins femininos ameaça as conquistas das
mulheres. Ao procurar a todo custo a beleza, as jovens incorrem
no risco de enfeiar e piorar de vida. É roleta
russa, quase suicídio, pondera Maria Goretti.
A pesquisadora diz que conheceu pessoalmente uma jovem executiva
que se submeteu a todo tipo de cirurgias plásticas,
fez lipoaspiração, tirou suposta papada, remodelou
pernas, coxas, costas, usou botox, e permaneceu sentada, imóvel,
durante dois ou três meses, tomando sopa por canudinho.
A dúvida é se a paciente contou com assistência
médica responsável. Com base em práticas
semelhantes, a pesquisadora quer provar na fase final do trabalho
que o ideal virtual levado ao extremo é uma violência,
vítima da indústria da estética.
No cinema, nos desenhos, nos games, na televisão e
na Internet não faltam modelos para a fabricação
de pessoas. No filme Tomb Rider, que nasceu como videogame,
depois levado para revistas, a atriz Angelina Jolie é
uma espécie de Indiana Jones que corre em busca de
tesouros pré-históricos. Quantas mulheres não
se submeteram a intervenções, muitas vezes dolorosas,
para mudar de cabelo, moldar seios com silicone, engrossar
lábios com botox, colorir sobrancelhas e alterar toda
a estrutura facial, para se parecer com a Angelina Jolie virtual?
Da febre virtual nem os homens escapam. Segundo Maria Goretti,
ele vai perdendo o referencial e quer compensar a perda com
a estética exacerbada. Em São Paulo, homens
virtuais podem ser vistos com freqüência, sobretudo
em ruas de muitos bancos, diz a pesquisadora e jornalista,
que detecta em tudo isso uma grande frustração
e desprezo pelos valores tradicionais, como o respeito aos
idosos, aos pobres e à natureza.
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