Pelo
menos dois chefes de departamento da Faculdade de Educação
da USP consideram que a terceira versão do anteprojeto de
reforma da universidade brasileira apresentada pelo Ministério
da Educação representa avanço em relação
às primeiras. Lisete Regina Gomes Arelaro (Administração
Escolar e Economia da Educação) disse que a última
redação corrigiu o texto anterior, que era repetitivo
e contraditório; mesmo assim, ela espera que haja pelo menos
mais uma versão, a fim de esclarecer de vez alguns pontos
dúbios, especialmente questões relacionadas com a
expansão de cursos superiores, atualmente, segundo ela, demagógica,
feita sem acompanhamento, sem critérios, sendo responsável
por grave crise social. Nilson José Machado (Metodologia
e Educação Comparada) aponta como positivo na versão
atual o equilíbrio, que alguns críticos até
poderiam considerar sinônimo de tímidez, sobretudo
no tocante à inclusão social, porque nesse ponto o
projeto é genérico e deixa os desdobramentos para
cada instituição. É bom que seja assim, pondera,
porque a inclusão de negros, índios e alunos
da escola pública não se fará marcando
datas ou porcentagens, mas com maior aproximação entre
a universidade e a educação básica.
Outro professor do mesmo departamento de Lisete, Pedro Jacobi, entende
que o projeto tem o mérito de ser o resultado de um amplo
processo de debate. A expansão de vagas, sobretudo
no setor público, é tema inquestionável, notadamente
no enfoque da inclusão social, assim como o aumento da oferta
de cursos noturnos e a promoção de políticas
afirmativas.
Expansão
Segundo Lisete, o Brasil teve nos últimos anos crescimento
do ensino superior absolutamente desproporcional na comparação
da escola pública com as particulares em São
Paulo, por exemplo, as instituições privadas, que
em geral não fazem pesquisa, representam 90% do ensino superior.
Na falta de um plano para orientar a expansão, faziam-se
negociações fisiológicas e quem chegasse primeiro
na boca do caixa (o MEC) levava. Essa política, ou
falta dela, gerou uma situação grave do ponto de vista
científico, da geração do conhecimento, e mais
grave ainda do ponto de vista social, porque uma nova escola particular,
mesmo quando autorizada sem critério, cria no imaginário
do estudante e de sua família a ilusão de que há
vaga para todos e um diploma está à vista. No caso
de ser necessário fechá-la, o que fazer com os alunos
que a freqüentam? Para que outra instituição
transferi-los? Um problema social ao cubo, lamenta Lisete,
que pergunta ainda por que tanta pressa nas autorizações
e por que afrouxar a vigilância. A pedagoga menciona entre
as decisões que considera infelizes do governo (no caso de
Fernando Henrique Cardoso) a desativação das Delegacias
Regionais do MEC, que tinham por missão fiscalizar o ensino.
Contam-se casos de falcatruas explícitas e burlas da lei,
como o de um grupo do Paraná que, pretendendo licença
para abrir nova escola, antes de receber a equipe avaliadora do
MEC teria trazido do Rio de Janeiro um kit fiscalização,
composto de biblioteca e equipamentos básicos de ensino,
mas o devolveu dias depois de conseguir o que queria. É por
isso que a professora da Faculdade de Educação espera
que uma nova versão do projeto de reforma inclua regras claras
e rígidas para a expansão do ensino, em especial na
iniciativa privada.
Ensino
básico
Nas sugestões apresentadas oficialmente ao governo federal
pela USP destacava-se a necessidade de uma reforma articulada de
todo o sistema de educação brasileira, englobando
todos os níveis, do ensino básico ao superior. O professor
Machado concorda que deve haver mecanismos de integração
entre os diversos níveis, adiantando pouco começar
de baixo se no topo permanecer a desarticulação. E
faz uma observação muito prática: na carreira
de professor deveria haver algum tipo de continuidade entre a educação
básica e a superior. O docente da educação
básica não pode continuar dando 30 ou 40 horas de
aula por semana, ainda mais sujeito a uma remuneração
irrisória; nem o professor da universidade deveria ser impedido
de manter contato estreito com a rede pública básica.
No seu caso particular, Machado revela que deu aulas nos primeiros
graus, e desde 1984 é professor da Universidade; agora, gostaria
muito de tirar um ou dois anos para voltar à escola básica,
buscar nela ânimo e entusiasmo novo, sem no entanto perder
a condição de professor da USP. Isso é
quase impossível do modo que as coisas se organizam,
afirma.
Ainda no aspecto da integração, a professora Lisete
lembra que o Brasil até agora nem conseguiu viabilizar integralmente
a Lei de Diretrizes e Bases, e no seu projeto de reforma deixa de
lado o sistema de ciência e tecnologia. Nem mesmo a pós-graduação
tem regras claras, assim como continuam em situação
estranha os centros universitários, confundindo-se com universidades.
O ensino a distância, admitido no projeto oficial, preocupa
Machado e Lisete. É um buraco negro, define o
professor, propaganda enganosa, quando não existe
alguma possibilidade de aproximação entre professor
e aluno. Felizmente, as tecnologias permitem essa aproximação
de várias maneiras. Mesmo assim, observa, o olho no olho,
a parte presencial nunca poderá ser dispensada. Só
entendo como coisa séria se atender a duas condições:
se a distância for puramente geográfica, não
de relações; e se houver um mix de presencial e de
distanciamento. Os diversos cursos existentes são ensaios
sobre essa tentativa. Ele mesmo foi orientador de alunos que,
residindo em outros Estados, passaram algum tempo na USP e complementaram
as pesquisas a distância, servindo-se de meios virtuais. Nessas
condições, conclui, o ensino a distância é
bom em todos os níveis. Lisete horroriza-se com as telesalas,
que em todos os casos exigem um tutor polivalente, obrigado a esclarecer
dúvidas relacionadas com disciplinas que não domina.
A professora conta que no Ceará o ensino médio tradicional
está praticamente extinto; 80% dele está por conta
das telesalas da Rede Globo.
Outra é a visão dos educadores quando se trata de
cursos noturnos. O projeto do MEC assume praticamente a legislação
paulista que orienta as universidades oficiais: um terço
dos cursos devem ser noturnos. Tanto Machado como Lisete garantem
que a qualidade do ensino é a mesma dos cursos diurnos, os
alunos não são fracos, são diferentes,
trazem para a sala de aula experiência de vida, são
esforçados e, segundo Machado, ainda assumem um custo pela
qualidade: Acho que no momento a qualidade se mantém,
até de forma um pouco cruel. O aluno da noite na verdade
nunca se forma em cinco anos, mas em seis ou sete. Tanto no
noturno como no diurno, segundo o professor, o tempo poderia ser
mais bem aproveitado se o calendário não previsse
uma orgia de paralisações e férias
desnecessariamente longas.
Recursos
Nada no projeto de reforma preocupa mais a chefe do Departamento
de Administração Escolar e Economia da Educação
do que a questão dos recursos que o governo destinará
às universidades públicas. A terceira versão
assegura que nas despesas das instituições não
estão computadas as relativas ao pagamento de inativos e
aposentados. Para mim, isso é inédito,
diz Lisete, lembrando que na USP os gastos com os aposentados e
pensionistas já alcança perto de 25% do orçamento.
Segundo a professora, o problema à vista é que o MEC
não explicita de onde vai tirar os recursos e sem essa garantia
a legislação se torna inócua.
Pedro Jacobi diz que a autonomia universitária ganha consistência
a partir da garantia de recursos financeiros, o que possibilita
aumento do número de matrículas. O objetivo,
acrescenta, é ampliar o ensino público de modo
a atender no mínimo 30% do total de brasileiros com idade
para ingressar na universidade, mas o otimismo da proposta
deve agora ser confrontado com a realidade de uma economia represada
e, portanto, com dificuldade em relação ao financiamento.
Isso traz à tona uma preocupação com a reação
da equipe econômica em relação à visão
ortodoxa que a norteia.
O anteprojeto admite fundações nas universidades públicas.
Machado concorda, mas com restrições. Lembra que,
no mercado, as fundações são a esquerda
das empresas, instituições sem fins lucrativos, que
dão bolsas de estudo, promovem atividades culturais. Mas,
na instituição pública, a fundação
está virando o capitalismo mais voraz, quando deveria ter
o espírito da fundação no âmbito do capitalismo,
ficar à esquerda. Um caso interessante de exemplo do
mercado para o setor público.
Entende Machado que a gestão democrática que o governo
propõe às universidades não deveria incluir
eleição direta para reitor, porque o cargo exige competências
específicas. Ninguém elege o piloto de um avião,
diz o professor; elege um prefeito, um governador, um presidente,
aos quais compete escolher os secretários ou ministros.
O que o chefe de departamento defende é a valorização
dos colegiados e a reforma de sua estrutura, que estaria descompensada,
com peso excessivo nos titulares (ele é um deles) e sub-representação
de outros segmentos.
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