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Dalmo Dallari: “faroeste geral”

 

 

 

 

 

 


Anita: contra até a bomba atômica

 

 

 

 

 

 


Adorno: começo de uma luta maior

 

 

 

 

 

 


Segre: autodefesa é risco de vida


C
omprar, portar e usar armas é um direito constitucional da pessoa? Proibi-las é cercear a legítima defesa? O que é legítima defesa: uma tradição da cultura norte-americana, que enfatiza excessivamente o direito do indivíduo, ou uma prática universal? No Brasil, a maioria dos crimes de morte é cometida por bandidos, ou em desavenças familiares ou desentendimentos por motivos fúteis? Quem distorce estatísticas? Ou ninguém as distorce, porque não existem ou não são confiáveis? Dia 23, votar sim ou votar não no referendo sobre proibição de venda de armas e munição?

A questão divide acadêmicos, embora a maior parte deles tenda a defender a aprovação do desarmamento. Divide até juristas irmãos, como os Dallari: Dalmo, professor aposentado de Teoria Geral do Estado da Faculdade de Direito da USP, vai votar a favor da lei, argumentando que a sociedade está sujeita a regras democráticas e a liberdade não é absoluta. Ao Estado compete cuidar da segurança do patrimônio e das pessoas; se cada indivíduo recorrer à autodefesa, ficar carregando metralhadoras pelas ruas, “será um faroeste geral”. Mas Adilson, professor de Direito Administrativo da PUC de São Paulo, votará “não”, declarando-se a favor do direito de defesa, porque o Estado, segundo ele, é incapaz de garantir a segurança das pessoas o tempo todo. “Conseqüentemente, o Estado não pode impedir que as pessoas se defendam, até porque isso é uma garantia constitucional.”

Nenhuma dúvida sobre a necessidade de desarmamento tem, na USP, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), cujos pesquisadores estão convencidos de que liberar a venda de armas de fogo é aprofundar a desigualdade social, uma vez que as comunidades que, teoricamente, mais precisariam delas não possuem recursos para adquiri-las. O coordenador do núcleo, professor Sérgio Adorno, alerta que a aprovação da proibição é só o começo da luta por maior segurança; no dia seguinte ao sim vitorioso, como ele espera, devem seguir-se ações práticas de implementação da lei. Por exemplo, a marcação segura de armas e munição, para que, em caso de crimes, se chegue à autoria; providências na área da polícia, que precisa ser mais bem selecionada, remunerada e treinada. Só assim, acredita o sociólogo, a lei “pega”, como pegou a do uso obrigatório do cinto de segurança nos automóveis.

Antes da utopia

Voltando a Dalmo Dallari, o jurista entende que as pessoas favoráveis à liberação da compra e uso de armas agem assim porque estão condicionadas pelo medo, talvez sem se dar conta de que há nisso uma contradição: querem defender a vida usando instrumento de morte. Dallari também concorda que pretender um desarmamento completo, em todos os níveis, em todos os países, incluindo a abolição de armas atômicas, como gostaria a historiadora Anita Novinsky, presidente do Laboratório de Estudos da Intolerância, também da USP, é utopia. Mas antes da utopia, há muito que fazer no nível do possível.

Anita define-se como pacifista, contrária sempre a qualquer tipo de pressão e violência, advogando inclusive o fim das armas de guerra. Ela pergunta: se existem a ONU, as ONGs (organizações não-governamentais) e muitos outros organismos com atuação universal, por que não se manifestam contra a maior indústria do mundo, a das armas? E os chefes de Estado, por que se calam? Internamente, segundo ela, é preciso cortar o mal pela raiz, proibir a fabricação de armas.

Professor titular do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho, Marco Segre diz que dia 23 votará no sim, e por razões muito simples: o civil não está acostumado a usar arma de fogo, nem preparado para isso; pelo contrário, ao tentar se defender aumenta o risco de vida. “Diante de bandido sem escrúpulo é melhor não estar armado”, aconselha o professor da Faculdade de Medicina. E faz uma denúncia, considerando que a propaganda na TV e rádio dos defensores do não no referendo é enganosa. Isso ocorre, segundo ele, quando os atores afirmam que seis milhões de judeus foram mortos pelo nazismo porque não possuíam armas para se defender. “Como se esses civis pudessem enfrentar a Gestapo com armas caseiras.”

Primeiros resultados

Sérgio Adorno afirma que os estudos do NEV, em consonância com outros centros internacionais, têm mostrado que a circulação completamente livre de armas de fogo potencializa as taxas de homicídios. Elas têm peso grande principalmente nos casos de morte de adolescentes e jovens até 24 anos. Daí que a restrição submetida a plebiscito é requisito básico e, se aprovada, certamente terá impacto positivo forte na redução de crimes a médio prazo. Agora mesmo, segundo o coordenador do núcleo, já há indicação de que, graças à campanha de entrega espontânea de armas pela população, os crimes de homicídio estão caindo na capital paulista. “De 2003 para cá essa tendência é forte”, assegura.

A mesma medida, ainda segundo o professor, estimula os cidadãos a tomar posião em relação à segurança pública: se querem a circulação de armas para autodefesa, ou se preferem um controle rigoroso delas e uma polícia mais eficiente. Essa questão, insiste Adorno, não diz respeito apenas aos políticos, às autoridades policiais e aos governantes; é um problema da sociedade.

A favor do desarmamento, o coordenador do NEV lembra que, em casos de assaltos, freqüentemente as armas dos cidadãos e das famílias acabam nas mãos dos bandidos. O mesmo ocorre ainda com as armas que estavam na posse de autoridades públicas e até do Exército.

Mas proibir totalmente a fabricação de armamento é inviável, pois, além de parte delas serem exportadas, em alguns casos são necessárias. Mas não em mãos de civis. Na Europa, diz Adorno, civis não podem possuir arma e o resultado é que o índice de homicídios é extremamente reduzido. Não é o caso dos Estados Unidos, mas ali, se a polícia pegar alguém armado, porém sem licença de porte legal, o levará preso.

Adorno diz não acreditar no argumento da legítima defesa, direito que, segundo ele, não faz parte da cultura brasileira, embora muito valorizado nos EUA. Aqui ninguém ousa perguntar à autoridade policial que o deteve “em nome de quem o senhor me pára?” Se o fizer, será preso. Por essa razão, Adorno considera o argumento da legítima defesa um equívoco e desencadeador de mortes.

O dirigente do NEV diz respeitar os argumentos de quem defende o não no referendo, mas entende que os argumentos a favor das armas se sustentariam apenas se no País houvesse garantia mínima de direitos civis e sociais para todos. A violência não afeta todos os bairros igualmente. Em alguns deles registram-se três homicídios em 100 mil habitantes; em outros, 50, 60 e até 70 casos. Não há prova mais convincente de decigualdade social do que a impossibilidade de segurança por motivo de pobreza.

É por seu caráter social que a questão da segurança, no entender de Sérgio Adorno, diz respeito não apenas ao governo, mas ao Estado.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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