De manhãzinha, a mãe desembaraçava
os cabelos da menina e enfeitava com laço de fita. Um laço
que combinava com o do vestido que, teimoso, vivia desamarrando.
E lá ia a menina brincar de casinha. Ser mamãe da
boneca que também tinha de ser penteada, alimentada. Se,
de repente, o primo ou o menino da vizinhança aparecesse,
com certeza seria o pai. E a família estaria ali reunida
comendo lanchinho de verdade. Sonhando de fazer de conta.
É esse tempo delicado que dona Inah Meirelles Faria Guimarães
está apresentando na exposição Brincando
de casinha com Inah, no Museu Paulista da USP popularmente
conhecido como Museu do Ipiranga. Uma exposição que
faz gente grande voltar a ser pequena e criança viver a plenitude
de ser criança.
Até parece que uma fadinha, do tamanho da Sininho de Peter
Pan, jogou pirlimpimpim por todo o espaço. E as duas grandes
salas no fundo do corredor do primeiro andar do museu se transformaram
em um lugar mágico. Na verdade, são muitas fadinhas:
as historiadoras e curadoras Heloísa Barbuy e Rosana Gimenez
e as restauradoras Teresa Cristina Toledo, Yara Petrella e Sonia
Spigolon cuidaram de deixar as bonecas com ar de festa; a educadora
Denise Peixoto resgatou as brincadeiras de antigamente; e a diretora
Eni de Mesquita Samara e toda uma equipe apaixonada por ouvir e
contar histórias. Mas a fada madrinha mesmo é Inah,
que guardou, por toda uma vida, a riqueza de ser criança.
Uma riqueza que cuidou com carinho para doar para o Museu Paulista.
São jóias raras: um ursinho de pelúcia, bonecas
de biscuit, cadeirinha de balanço, pratos e xícaras
de porcelana inglesa. Brinquedos nacionais e importados dos anos
20 e 30 que embalavam a fantasia da menininha Inah, suas primas
e amiguinhas. Crianças que viveram momentos inesquecíveis
na casa de boneca feita especialmente para elas lá em Araras,
interior de São Paulo. Era uma casinha de fundos, no mesmo
quintal de Acilda e do médico José (pais de Inah),
toda feita de tijolos e coberta com telhas de barro. As paredes
eram pintadas de branco e as portas e janelas, de azul. Até
os adultos podiam entrar nela, isto é, quando eram convidados
para o solene café com rabanada.
Quase
um sonho
O tempo passou. Inah cresceu e foi cuidar de uma casa de verdade.
Casou-se com Sid Guimarães, médico e professor titular
da Faculdade de Saúde Pública da USP. Não teve
filhos. E os brinquedos foram cuidadosamente guardados. Como um
tesouro. Até o dia em que dona Inah procurou o Museu Paulista.
Quando ela nos telefonou dizendo que queria doar alguns brinquedos,
imaginamos que fossem três ou quatro peças, conta
Heloísa. Fomos até a casa dela, na avenida Angélica,
e quando ela abriu a porta levamos um susto. Os brinquedos estavam
todos espalhados pela sala. Ficamos ali durante horas apreciando
coisinha por coisinha. Panelinhas de ágata, de alumínio,
latinhas de mantimento, xícaras, pires, pratos, moedor de
carne, pá com escova para tirar as migalhas da mesa do café,
cadeirinhas, guarda-comida, guarda-roupa, cama e tantos outros móveis
que a mãe caprichosa tinha mandado fazer para decorar a casinha
da única filha.
Heloísa ficou encantada. Há vários anos, vem
pesquisando a história dos brinquedos. Já orientou
diversos estudos, como o de Ludmila Érica Cambusano, que,
bolsista de iniciação científica, investigou
o comércio, a circulação e a fabricação
de brinquedos em São Paulo de 1901 a 1937. A grande
maioria dessas peças é dessa época e é
muito difícil encontrá-las.
Enquanto via aqueles objetos, Heloísa também ficou
lembrando da sua infância. Como Inah, ela gostava de brincar
de cozinhar. Quando pensou que já tinha visto tudo, dona
Inah olhou para a historiadora e convidou: Agora, vamos para
o quarto ver as bonecas. Heloísa arregalou os olhos:
Mas ainda tem mais brinquedos?. E tinha. Bonecos gorduchos,
boneca pretinha de cabelinho encaracolado, boneca do tamanho de
uma criança. Carrinho de bebê. Tudo em perfeito estado.
Só uma estava sem a cabeça, mas era de Acilda, mãe
da Inah.
Heloísa voltou para o museu. Ficou sonhando, sonhando...
E, cinco meses depois, o sonho virou realidade. Há
muito tempo queríamos fazer uma exposição de
brinquedos, criar um espaço para as crianças,
diz a diretora Eni. Graças a essa doação
tão linda, conseguimos realizar essa mostra que resgata também
o cotidiano das crianças. É uma volta ao tempo em
que ninguém imaginava um menino crescer diante de computadores
ou de televisão, uma época em que as meninas eram
educadas para o casamento. Quer saber de uma coisa? Eu também
adorava brincar de casinha. Tenho uma foto em que estou cercada
por bonecas. Uma enorme, muito maior do que eu.
As peças em exposição no
Museu Paulista: brinquedos nacionais e importados que, nos anos
20 e 30, embalavam a fantasia da menina Inah, de suas primas e amigas,
crianças que viveram momentos inesquecíveis na casa
de bonecas feita especialmente para elas em Araras
Hora
de brincar
E foi assim que a casinha da menina de Araras foi parar no Museu
Paulista. Graças ao trabalho dos museólogos Ricardo
Bogus, Christine Fidalgo e Rodrigo Tas, o público pode apreciar
uma exposição sensível e original. Na primeira
sala, há todo um cenário que envolve os adultos em
um clima de nostalgia e desperta nas crianças a vontade de
sentar no chão, brincar de rodar pião e cavalgar no
cavalinho de pau.
Em uma das paredes estão postais de diversos países
com imagens de crianças. A coleção é
de Heloísa Barbuy. Venho juntando esses cartões
há muito tempo. Fiquei feliz pela oportunidade de apresentá-los.
Entre os mais curiosos há um que mostra uma multidão
de bebês sentados em penicos e, ao lado, alguém escreveu:
Câmara dos deputados e o presidente sou eu. Em
outra parede, uma vitrine que destaca um pianinho da marca Ypiranga
dos anos 20. Um objeto precioso que o assessor de imprensa do museu,
Dorival Pegoraro Júnior, comprou na Feirinha do Bexiga e
fez questão de doar para alegrar a exposição
da casinha de Inah.
As crianças têm, assim, um espaço muito especial.
Elas podem se inscrever pelo telefone 6165-8053 (Serviço
Educativo) para participar das brincadeiras organizadas pela equipe
de Denise Peixoto. Todos vão poder brincar de casinha.
Montamos uma coleção de brinquedos similares aos de
dona Inah para serem manipulados, conta a educadora. Também
convidamos pessoas da terceira idade para nos ajudar a resgatar
as brincadeiras da época. Vamos ensinar a garotada a pular
amarelinha, a brincar de roda, de lencinho atrás
e muitas outras diversões. Teremos também contadores
de histórias para lembrar os contos de fada e as fábulas
clássicas.
E quando as meninas de hoje, acostumadas à casa da Barbie,
entrarem na casinha de Inah, será que ficarão impressionadas?
Essa é uma dúvida que as historiadoras do Museu Paulista
poderão tirar nesta Semana da Criança. Mas certamente
elas vão gostar de ver as fotos da menininha Inah de pernas
e braços roliços no colo da mãe. Com seu jeito
tímido e cara de choro. E irão apreciar as miniaturas
do ferro de passar roupa que ainda funciona, as cortininhas floridas,
as toalhas com biquinho de crochê. O sonho de ser criança.
Era
uma vez...
...uma
menininha cheia de vida. Sapeca, mas afetuosa. Gostava de
convidar as pessoas para brincar com ela. Não tinha
irmãos e ficava toda contente quando uma outra criança
aparecia para visitá-la. Tão feliz que seus
pais construíram uma casinha só para ela receber
os amigos. Hoje, essa menininha que nasceu na cidade de São
Paulo no dia 14 de maio de 1926 e cresceu na cidade de Araras,
no interior paulista, está toda feliz. Não imaginava
que, um dia, podia caber tanta gente na sua casinha.
É essa história feliz que dona Inah Meirelles
Faria Guimarães tem o prazer de contar para as crianças.
No dia da inauguração de sua exposição,
no dia 3 passado, ela foi a primeira a entrar na sala. Toda
elegante, em um terninho preto. Entrou acompanhada pela prima
Marilena Faria Bessa e ficou emocionada por reencontrar a
sua infância.
Olha, Marilena, que lindo ficou o Luisinho sentado
no carrinho! E olha só o ursinho Juquinha que eu ganhei
quando tinha 2 anos!
É mesmo, Inah. Ai, que lindo o fogãozinho!
Quanto bolo você assou nele... As cortinas da cozinha,
parece que são novinhas.
A gente passava horas brincando. Esquecia da vida.
Mas essas historiadoras fizeram tudo muito direitinho mesmo!
Dona Inah foi visitando a exposição. Estava
satisfeita. Que alegria imaginar que os meus brinquedos,
ou seja, os nossos brinquedos serão preservados. Eu
não tenho a fantasia de despertar nas crianças
a mesma vontade de brincar de bonecas e panelinhas. O tempo
é outro. A vida é outra. Elas gostam de videogame,
computadores, coisas eletrônicas. Mas terão a
oportunidade de conhecer as brincadeiras dos meninos
do passado.
As primas e amigas de Inah que brincaram na casinha também
foram prestigiar a exposição. E aproveitaram
para recordar. Eu era muito pequenina. E a Inah não
me deixava chegar perto do fogão. Queria cozinhar bolo
também. Fiquei tão traumatizada que até
hoje a minha diversão é cozinhar. Meus oito
filhos adoram comer os bolos que preparo, conta a prima
Marina Meirelles.
Inah sorriu. Fazer o quê? Ela era mesmo muito
pequenina. A prima Marilena lembrou: Você
se recorda de você mocinha, tricotando uma blusa de
lã para o seu noivo, e eu sentada aos seus pés
ajudando você a desembaraçar o novelo? Você
e eu trabalhando na casinha. Como era bom... Inah estava
emocionada. Afinal, como disse o poeta, recordar é
viver.
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