Os jovens são afastados de suas famílias
de sangue, que devem ser substituídas pela família
sobrenatural dos irmãos na fé. Algumas horas
por dia, é necessário usar o cilício, um cordão
com pontas de ferro colocado por debaixo da roupa, sobre uma das
coxas, para mortificar o corpo. Há regras para cada atividade
do cotidiano, criadas para promover a santificação
no mundo: não pode viajar, não pode cumprimentar mulheres
com beijo, não pode sair à noite, não pode
ter celular... Os superiores devem ser consultados sobre tudo, desde
uma oferta de emprego até uma visita a amigos. Um índex
relaciona os autores proibidos: José Saramago, James Joyce
e praticamente todos os filósofos desde Descartes (1596-1650),
entre outros. Mulheres passam os dias reclusas, a cozinhar, lavar
e passar as roupas das chefes. Homens fazem o serviço de
portaria, atendem ao telefone e lavam o carro para seus superiores.
E todos se submetem a uma série de rezas em latim
, normas e autoflagelação.
É assim que funciona o Opus Dei uma prelazia pessoal
da Igreja Católica, fundada em 1928 pelo padre espanhol Josemaría
Escrivá , segundo o livro Opus Dei Os bastidores,
que será lançado nesta quarta-feira, dia 19, às
20 horas, na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos (avenida das
Nações Unidas, 4.777, Alto de Pinheiros), em São
Paulo. O livro é assinado por três autores: Jean Lauand
professor titular da Faculdade de Educação
da USP , Dario Fortes Ferreira e Marcio Fernandes da Silva,
todos ex-membros daquela prelazia. Há, no Opus Dei,
abdicação das iniciativas pessoais, sacrificadas a
uma obediência cega e mecânica, e despersonalização
do indivíduo, calcada num rigoroso e diuturno processo de
doutrinação, o que se costuma designar de lavagem
cerebral, escrevem os autores. Tal como em outras
seitas, existe um enorme abismo entre a proposta de fachada da Obra
e a realidade que, pouco a pouco, o prosélito vai encontrar.
Depoimentos
Ao lado das análises dos autores, o livro traz vários
depoimentos de ex-membros do Opus Dei, boa parte deles recolhida
da página eletrônica www.opuslivre.org,
um fórum de debates de dissidentes da prelazia. Segundo os
autores, esses relatos reproduzem com exatidão a amarga experiência
vivida como numerário, uma das classes de membros do Opus
Dei, que residem nas casas da instituição e observam
o celibato, a obediência irrestrita aos superiores e a pobreza
pessoal o que significa entregar todo o seu salário
mensal à Obra.
Um dos depoimentos publicados no livro é de Marcio Fernandes
da Silva. Ele descreve a trajetória típica de um numerário,
segundo os autores: conheceu o Opus Dei muito cedo, com cerca de
10 anos de idade, quando passou a freqüentar atividades sociais
promovidas pela prelazia num clube em Pinheiros, na zona oeste de
São Paulo. Com 14 anos começou a ir ao centro do Opus
Dei na região, onde recebia formação,
que incluía palestras e uma conversa semanal com um sacerdote.
É claro que não foi do dia para a noite que
passei a participar dessas atividades. O pessoal do centro foi me
propondo participar de cada uma delas de maneira gradual,
relata Marcio Silva. Até mesmo visitas a hospitais e favelas
ele foi levado a fazer, não com a finalidade de assistir
aos pobres e doentes, mas sim de despertar nele sentimentos de generosidade,
usados depois para fazê-lo tornar-se membro da instituição,
segundo conta. Estava preparado o plano inclinado, o
processo em que a pessoa é levada a descobrir sua suposta
vocação para a Obra até apitar
ou seja, pedir sua admissão como membro da instituição.
O livro reproduz ainda uma conversa fraterna, também
chamada de confidência. Trata-se de uma sessão
de 45 minutos de conversa semanal, em que o numerário escancara
sua alma diante do diretor do centro onde reside, revelando toda
sua intimidade. O texto citado no livro é uma simulação
nada exagerada e altamente reveladora, segundo os autores:
Eu estava pensando em ir almoçar domingo com meus
pais.
Quando foi a última vez que você esteve com
eles?
Há um mês.
Não convém criar hábitos nessas visitas
à família de sangue. Espera umas duas semanas e aí
você volta a me consultar.
Não à toa, o livro publica a carta da família
de um numerário, em que, ironicamente, agradece ao Opus Dei
por mais um Natal triste, ao qual nosso filho não vai
comparecer porque agora segundo vocês ele tem
outra família e pela destruição
da nossa família, que era feliz, normal e católica.
Alucinações
Submetidos a um regime de regras rígidas, obediência
cega e autoritarismo, os numerários acabam tendo sérios
problemas mentais, segundo o livro. Houve um numerário
que começou a sentir dores de cabeça terríveis,
chegou a ser tratado na clínica de Navarra, na Espanha, e
acabou absolutamente imprestável para viver na Obra, que
o devolveu caridosamente para os pais. Outro começou
com sintomas de depressão, foi mal diagnosticado, mal medicado
e chegou a ter alucinações, exemplificam os
autores. Outro numerário tornou-se meio que alienado,
e vive encostado no centro, ex-funcionário brilhante na Cesp.
Outro ainda, depois de largar, aos 50 anos, um bom cargo na Telefônica,
dedica-se hoje a assistir a aulas de filosofia como ouvinte e a
divulgar o pensamento do filósofo Leonardo Pólo, do
Opus Dei. Prescrito por médicos do Opus Dei, o tratamento
dado a essas pessoas inclui choques elétricos e antidepressivos,
segundo o livro.
Opus Dei
Os bastidores fala ainda da história da instituição
desde suas origens, em Madri, até sua expansão por
vários países do mundo, inclusive no Brasil, onde
se instalou no final da década de 50. Inicialmente implantada
em Marília, ela se deslocou para São Paulo, onde hoje
mantém centros no Pacaembu, Vila Mariana, Pinheiros, Itaim
e outros bairros. Está presente também em Campinas,
São José dos Campos, Rio de Janeiro, Brasília,
Niterói, Curitiba, Belo Horizonte, Londrina e Porto Alegre.
O Jornal da USP entrou em contato com o jornalista Carlos Alberto
Di Franco, apontado no livro como responsável pelas relações
do Opus Dei com a mídia, mas ele não quis falar sobre
a publicação. Eu não vou fazer nenhum
comentário, disse Di Franco, por telefone, confirmando
apenas que leu o livro. Isso é eloqüente do ponto
de vista da resposta que eu quero dar ao livro.
A
mais brutal forma de manipulação humana
A
seguir, trecho do livro Opus Dei Os bastidores.
Após
o seu ingresso, em princípio irrevogável, o
numerário aos poucos vai se moldando à Obra
até que, em palavras do seu fundador, tenha somente
o fim corporativo. É nesse moldar-se (ou anular-se)
que a violência moral e espiritual se processa, lenta
mas poderosamente. Toda e qualquer espontaneidade é
suprimida e substituída gradativamente pelo dever de
servir à Obra, que é, como se pode depreender,
sinônimo de servir a Deus e à Igreja. A vontade
de Deus vai se manifestando concreta e paulatinamente ao numerário
pelos diretores, que também são numerários.
A obediência genérica vai sendo detalhada. Para
aquele que mora nos centros da Obra, mesmo um simples telefonema
aos pais será motivo de consulta, pela qual se estabelecerá
a conveniência de se fazer ou não a chamada.
As correspondências que chegam para o numerário
são todas violadas pelos diretores, e as cartas escritas
pelo numerário são lidas por esses mesmos diretores
antes de lacradas nos envelopes e enviadas. O numerário
vai descobrindo, assim, pouco a pouco, em que consiste ter
dito sim a Deus. Trata-se de ter dito um sim definitivo à
Obra, sempre, em qualquer assunto, pois nela não
existem desobediências pequenas e já não
existe uma vida propriamente individual.
A coerção exercida dentro da Obra, que consiste
em fazer com que uma pessoa realize livremente
e com alegria, mesmo não querendo, mesmo
chorando, mesmo amargurada e aflita, o que lhe é ordenado,
sempre em nome de Deus, é a mais sofisticada e brutal
forma de manipulação perpetrada contra a dignidade
humana. É uma coação, digamos assim,
limpa e sem marcas, na qual não é necessária
a força ou a tortura física. Os diretores assumem,
perante o numerário, uma dignidade divina. Os diretores
devem ser obedecidos sem pestanejar, e os que obedecem terão
de dizer que obedecem porque queriam e querem sempre obedecer.
O Opus Dei é uma máquina manipuladora perfeita,
perversa, sugadora da individualidade e da liberdade de seus
membros e só poderá ser detida ou reformada
se pessoas decentes dentro da Obra se revoltarem e não
aceitarem as loucuras que dizem ser vontade de Deus.
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