
Na cerimônia em sua homenagem,
na Faculdade de Direito da USP, Miguel Reale deixou um recado para
os jovens: "Crê no direito e na justiça"
Este que vos fala é um homem que crê. E
eu me alegro por ter a compreensão do eterno. Com essas poucas
e sempre sábias palavras, Miguel Reale agradeceu emocionado
pela homenagem dos alunos e professores da Faculdade de Direito
da USP. No dia 7, segunda-feira, o grande mestre das Arcadas comemorou
seus 95 anos no Salão Nobre da São Francisco. E do
jeito como sempre idealizou: entre os estudantes, cantando as trovas
acadêmicas que embalam seus sonhos há mais de 70 anos.
Quando
se sente bater
No peito heróica pancada
Deixa-se a folha dobrada
Enquanto se vai morrer
Saudade
é como um sino
Que toca na tarde calma
O sino bate lá fora
Saudade bate na alma
Essa
trova é muito bonita, disse, emocionado. E foi,
para mim, a referência de uma longa trajetória.
Olhar compenetrado, a serenidade de sempre. Miguel Reale ouviu a
platéia cantar e acompanhou os discursos. Nós
somos uma família de imigrantes, lembrou o seu filho
Miguel Reale Júnior, advogado e professor da Faculdade de
Direito da USP . Estou feliz por estar aqui comemorando os
95 anos de meu pai que estão no carinho pelos netos, no amor
que sempre dedicou à minha mãe e na alegria com que
segue o jogo do Palmeiras.
O mestre sorriu. A comoção me embarga a voz.
Tudo o que dizem a meu respeito não passa de um comentário
de uma longa vida, brincou. Tem algo que eu gostaria
de dizer aos jovens estudantes: crê no direito e na justiça.
O evento teve a presença também do professor Celso
Lafer, docente da Faculdade de Direito da USP e ex-ministro das
Relações Exteriores.
Uma
longa vida
Durante a homenagem, foi lembrado um discurso que Miguel Reale pronunciou
no dia 11 de agosto de 1976: O tempo vivido intensamente é
o que importa. E o professor faz questão de viver os
seus 95 anos com intensidade, trabalhando sempre. Atento para comentar
e escrever sobre o que acontece na política, na economia
e nas artes.
Em artigo escrito em 8 de outubro passado, Quatro prêmios
à cultura nacional observou: Nada me deixou tão
decepcionado como a notícia de que figuramos entre os países
onde as crianças e os adolescentes têm a menor capacidade
de compreender o que falam ou escrevem. Não basta, com efeito,
a mera alfabetização para se dar início ao
processo do conhecimento. Sem um mínimo de compreensão
e de comunicabilidade não há ciência.
O professor aproveitou essa lacuna para apontar, como ele mesmo
define, certos fatos vergonhosos, como o da altíssima
reprovação dos bacharéis em Direito nos concursos
promovidos pela magistratura ou nos exames da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB). Estou convencido de que talvez a falta de
preparo jurídico não seja a principal causa dos fracassos,
mas a falha capacidade de expressão, pelo reduzido conhecimento
da língua.
No mesmo artigo, Miguel Reale, na agilidade de pensamento que percorre
todas as áreas do conhecimento, lembra: Que seria do
Brasil sem Machado de Assis, sem Guimarães Rosa, sem os nossos
grandes poetas e prosadores? Nós somos o que empregamos,
a nosso modo, na língua portuguesa, essa flor do Lácio
inculta e bela, como diz um verso de Bilac.
Os artigos de Reale são impulsionados por fatos do cotidiano
ou por eventos como congressos, homenagens e datas especiais. O
professor está atento a tudo e a todos. Sempre pronto para
opinar, mudar, acrescentar. No último Dia Internacional da
Mulher, por exemplo, pontuou: Quando se fala tanto na revolução
global causada pelos processos eletrônicos de comunicação,
até o ponto de qualificar-se a nossa era como a da informática
ou da cibernética, parece-me que assiste razão aos
que põem antes a tônica na revolução
da mulher, referindo-se ao papel que o chamado belo sexo passou
a representar no mundo, subvertendo-lhe as coordenadas fundamentais.
Reale também está atento às polêmicas
causadas na defesa do ambiente. Houve notável progresso
nos debates havidos sobre o tema, a começar por não
mais se encarar o homem como um ser vivo qualquer. Já agora
se reconhece que o homem é o principal sujeito do direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas não
o único. Persiste-se, todavia, em não se considerar
o homem dotado de autonomia e de poder criador para as transformações
que, a todo instante, é ele obrigado a introduzir no meio
ambiente em benefício da coletividade. A bem ver, continua-se
idealizando o meio ambiente como se fosse sempre uma fonte perene
de benesses, na qual o homem estaria passivamente inserido, quando,
na realidade, muitas vezes, é ele que, como agente criador
de civilização e de melhores qualidades de vida, vê-se
na contingência de interferir no que é natural e espontâneo
para estancar seus efeitos nocivos.
Nessa ordem de idéias, Reale acentua que nenhum dano haverá
ao ambiente por exigir que ele corresponda a um bem de vida considerado
essencial ao ser humano. Atualmente, a não ser nas
ainda inexploradas florestas da Amazônia e de outras poucas
partes do planeta, não há meio ambiente que não
tenha sido influenciado pela ação do homem, como,
para dar um só exemplo, aconteceu com o cerrado, que deixou
de ser visto como terra inexplorável para tornar-se campo
de um novo bandeirismo, não em busca de esmeraldas, mas sim
de algodão, soja e milho.

Lafer e Reale Júnior: homenagens ao pensador do Brasil
Direito
e justiça
Filósofo, ensaísta, poeta, memorialista, Miguel Reale
é membro das Academias Brasileira e Paulista de Letras. O
seu pensamento está nos inúmeros livros de filosofia,
de filosofia do direito, de política e teoria do Estado e
também nas obras literárias. E ainda nas ações
de advogado, jurista e professor. Com esse empenho, foi o coordenador
da comissão que elaborou o novo Código Civil brasileiro,
aprovado em 2002, depois de 27 anos de tramitação
no Congresso Nacional. Sua teoria tridimensional do direito é
considerada um marco porque vê o direito não apenas
sob o aspecto normativo, mas sob o aspecto factual, relacionado
ao momento histórico, levando em consideração
os valores da sociedade.
Miguel Reale nasceu em São Bento do Sapucaí, São
Paulo, em 6 de novembro de 1910. Formou-se em Direito em 1934 pela
Faculdade de Direito da USP onde desenvolveu longa carreira
como professor e dedicou-se intensamente às atividades
no jornalismo, na política e no ensino. No campo da filosofia,
suas principais contribuições são sobre a história
das idéias no Brasil, revelando valores esquecidos do pensamento
nacional, e seus estudos sobre teoria da cultura, fixando as diretrizes
do culturalismo, movimento que apresenta a pessoa como valor-fonte
de todos os valores. Foi o fundador, em 1950, do Instituto Brasileiro
de Filosofia e da Revista Brasileira de Filosofia, a mais antiga
publicação da área ainda em circulação
no Brasil.
Reale foi reitor da USP em 1949 e 50. De 1969 a 1973, foi eleito
reitor novamente, implantando a reforma universitária, que
substituiu as cátedras pelos departamentos, entre outras
medidas. Para a definitiva implementação e urbanização
do campus da USP, em São Paulo, construiu cerca de 250 mil
metros quadrados de edifícios destinados ao ensino, à
pesquisa e ao esporte. Entre essas edificações destacam-se
a sede da atual Reitoria, o Anfiteatro Camargo Guarnieri, os prédios
destinados aos institutos e faculdades resultantes da reforma e
a torre da Praça do Relógio. Em torno dela, há
uma frase inscrita a pedido de Reale: No universo da cultura
o centro está em toda parte.
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