Desde
o início dos anos 90, época em que comecei a me preocupar
com a necessidade de uma educação de tolerância
racial a que prefiro conceituar na forma de recíproca
apreciação positiva entre as raças
aderi a duas propostas que considero de vital importância.
São elas o ensino obrigatório da história da
África Negra nas escolas brasileiras e a reserva de vagas
para cidadãos negros nas universidades públicas (as
cotas).
A questão do ensino da história africana já
se converteu em lei, embora de capenga execução. Em
torno da reserva de vagas formou-se uma polêmica muitas vezes
alimentada por racionalizações. No que segue comento
algumas objeções e reações à
idéia de cotas reservadas, argumentando no nível que
merece cada uma das críticas e dentro dos limites de espaço
disponível. Parto do princípio de que as aspirações
e exigências de um determinado segmento da população
representam uma questão política consistindo
a política no gerenciamento dos interesses conflitantes dos
diversos segmentos da sociedade e que a busca da democracia
racial é um processo político potencialmente explosivo.
Objeção recorrente é o caráter injusto
da reserva de vagas. Se tal asserção tivesse consistência,
poderíamos argumentar que a não concessão de
cotas manteria solucionada a questão de justiça, mas
o problema político continuaria, possivelmente cada vez mais
virulento. As soluções devem ser encontradas no campo
do qual o conflito faz parte.
Entretanto, qual é a verdadeira questão de justiça?
Como qualificar de injusta a reivindicação dos negros,
cujos ancestrais foram trazidos contra a vontade ao País,
para cuja economia tanto contribuíram e, uma vez libertados
da escravidão, foram abandonados à própria
sorte? O resgate dessa população, por todos os meios
que se fizerem necessários, é que é a verdadeira
questão de justiça. E a concessão de cotas
faz parte da remição.
Há os que atribuem a ausência dos negros nas universidades
do País ao baixo nível do ensino fundamental e médio;
conseqüentemente vêem a saída na recuperação
do ensino público nesses níveis. Esta seria uma boa
solução, mas o processo todo com o replanejamento,
a reciclagem dos professores, a melhora das condições
salariais e, talvez, a necessidade de persuadir as representações
de classe à colaboração, convencer os governos
à concessão da verba necessária levará
anos, possivelmente duas décadas. Não há mais
tempo para isso: o afro-brasileiro já está batendo
na porta pelos seus direitos. A recuperação do ensino
fundamental é premente necessidade. Mas, enquanto isto não
for feito, a panela de pressão política tem que ser
aliviada com as cotas!
Algumas reações à concessão de cotas
são cômicas. É caso do branco que interpreta
os supostos sentimentos dos negros: os negros se sentirão
desprestigiados com as cotas, pois acharão que os consideramos
incapazes. Ora, costumo responder, se quisermos saber o que o negro
sente, perguntemos ao próprio, não ao branco. E encontraremos
poucos entre eles oponentes à idéia das cotas.
Ridicularizar a questão dizendo que se os negros forem beneficiados
com as cotas, descendentes de outros imigrantes também deveriam
ser contemplados por uma questão de justiça.
Tenho concordado rapidamente com essa maneira de ver
o problema, insistindo apenas na condição de que os
ancestrais desses imigrantes tenham sido trazidos ao País
à força, acorrentados em espaços exíguos
nos porões de caravelas e semelhantes e, em seguida, vendidos.
Afora disso, sem objeção!
Alguns jornais noticiaram com certo destaque o caso de adolescentes
que sendo loiros, loiras, ruivos, se declararam negros ao se inscrever
no vestibular. Ora, o assunto da paz e do convívio inter-racial
é demasiadamente sério para darmos atenção,
fora dos respectivos ambientes familiares e círculo de amigos,
a esse tipo de molecagens geniais.
Alega-se que o problema de acesso ao ensino superior não
é uma questão racial, mas econômica. A realidade,
porém, é outra: existem estudos, divulgados também
pela imprensa, que mostram ser negro desfavorecido tanto na obtenção
de emprego, quanto no que tange ao salário. O fator racial,
portanto, está presente além do fator econômico.
Dito em outras palavras, a reserva de cotas para estudantes pobres
e provenientes da ineficiente escola pública, em nada aliviará
o problema da juventude negra. A concessão de cotas para
esse segmento social, além das cotas para os afrodescendentes,
é perfeitamente aceitável. Mas não se deve
camuflar um dos problemas com o outro.
As cotas não representarão a queda da qualidade do
ensino? Esse temor de muitos que se preocupam com a
qualidade do nosso ensino, mostra-se injustificado, por duas razões.
A estatística dos testes que avaliam o desempenho de cotistas,
onde a reserva já existe, revelam-nos que os alunos cotistas
têm desempenho pelo menos igual aos que enfrentaram a seleção
tradicional. Por outro lado, não é segredo que parte
significante dos alunos normais, já enfrenta
nas universidades problemas de compreensão e de limitações
da capacidade de se expressar. O desafio de se frear a queda de
nível no ensino superior não passa, conseqüentemente,
pelo assunto das cotas para pobres e para negros.
As cotas terão que ser estendidas aos empregos? Essa não
é a questão que está sendo discutida e a concessão
de cotas para as universidades não tem necessária
implicação no problema do emprego. Trata-se de assunto
diferente, cuja discussão não deve inibir a questão
da reserva de vagas na universidade pública. A desconfiança,
porém, de que os cotistas terão formação
inferior a dos seus colegas da mesma instituição superior
reflete puramente preconceito.
Iniciativas como a USP da zona leste não representam solução,
nem alternativa ao problema das cotas. Não há dúvida
que a proximidade de uma universidade da qualidade e fama da USP
pode suscitar ambições e vocações na
região, portanto, trata-se de iniciativas importantes. Contudo,
se as especializações oferecidas acenarem com a possibilidade
de um bom emprego futuro e ascensão social, em curto prazo
a concorrência se tornará igual ao verificado nos campi
tradicionais e se perde o papel de medida inclusiva. Se, ao contrário,
a formação se der em profissões de pouca demanda,
a inclusão e ascensão sociais serão pura ilusão,
fracassando o projeto exceto para finalidades retóricas.
Finalmente, a reserva de vagas se reveste de um significado mais
amplo e profundo do que simples facilitação do acesso
de afrodescendentes ao ensino superior de qualidade. Aspecto dos
mais relevantes da reserva de vagas é sua influência
sobre as circunstâncias previamente dadas em que a criança
afrodescendente vive e vai projetando seu próprio futuro:
abre-lhe as perspectivas e o interesse, a ambição
por uma mudança de vida mediante seu próprio esforço
e trabalho em confronto com tudo que de desestimulante, limitante
for-lhe incutido pelas circunstâncias e por segmentos declarada
ou disfarçadamente racistas, insensíveis ao problema
da discriminação e suas conseqüências.
Por que insisto na urgência no atendimento das aspirações
dos afro-brasileiros? Acredito que em breve se esgotará o
prazo em que ainda podemos trabalhar juntos, brancos, negros e outros,
pela verdadeira democracia racial. À medida que a comunidade
negra vê frustradas suas aspirações em decorrência
da generalizada incompreensão, ela buscará as soluções
pelos próprios meios. Assim, já está em pleno
funcionamento a preparação de alunos afrodescendentes
para enfrentar o vestibular e começam surgir instituições
de ensino superior orientados para eles. Tal separação
de caminhos poderá ser estendida a outras situações
aumentando a cisão da sociedade brasileira. Eventualmente,
os cidadãos afrodescendentes concluirão que na luta
pela verdadeira igualdade de oportunidades precisam criar um partido
político de negros. Opino que será um ponto sem retorno
na ruptura nacional.
Nesse encadeamento de acontecimentos prováveis, não
há alternativa às cotas!
Tibor
Rabóczkay é professor do Instituto de Química
da USP
|