Na Gruta de Confins foi encontrado
um dos crânios mais antigos da região
Luzia, o esqueleto de 11,5 mil anos descoberto na região
de Lagoa Santa, em Minas Gerais, foi apenas a ponta da lança
de uma teoria que em 1998 balançou os dogmas sobre a origem
do homem nas Américas. A aventura iniciada há 17 anos
pelo professor Walter Neves e pelos pesquisadores do Laboratório
de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biologia (IB) da USP
parece ter chegado ao final de um ciclo. Em dezembro passado, Neves
e o doutorando Mark Hubbe assinaram na Proceedings of the National
Academy of Science (PNAS), dos Estados Unidos, um artigo que ganhou
repercussão mundial. Na publicação, que está
entre as três principais do mundo científico, os estudiosos
brasileiros conseguiram reforçar sua tese de que um povo
mais antigo habitou as Américas antes que os atuais ameríndios
cruzassem o Estreito de Bering, há cerca de 11,4 mil anos.
Análises morfológicas nos mais antigos esqueletos
do continente americano sugerem um cenário mais complexo
para o fluxo migratório e a cronologia da chegada de seres
humanos ao Novo Mundo. Acreditamos que a primeira leva de
paleoíndios (primeiros sul-americanos) entrou aqui por volta
de 14 mil a 15 mil anos atrás, pelo Estreito de Bering. O
trabalho que publicamos no final do ano passado fecha com chave
de ouro essa fase, pois sempre fomos muito criticados porque trabalhávamos
com poucos crânios, diz Hubbe, cuja tese de doutorado
foi orientada por Neves. Agora, no entanto, conseguimos reunir
num mesmo trabalho 81 unidades de Lagoa Santa. É a maior
amostra de crânios de uma mesma região já reunida
em estudos do tipo. Eles possuem morfologia claramente diferente
daquela que se observa hoje em dia nos grupos de nativos americanos.
Segundo Hubbe, a pesquisa reforça a teoria defendida atualmente
pelo Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, a do modelo
dos dois componentes biológicos principais. De acordo com
essa hipótese, a América teria sido colonizada por
dois grupos biológicos bem diferentes um de morfologia
generalizada e outro de morfologia asiática ou mongolóide.
No primeiro grupo estão os descendentes diretos dos primeiros
Homo sapiens que saíram da África por volta de 70
mil anos atrás. Este grupo chegou no Sudeste Asiático
há cerca de 60 mil anos e de lá se bifurcou. Uma parte
dessa população desceu para o Sul e colonizou a Austrália;
a outra subiu, cruzou o Estreito de Bering entre 14 mil e 15 mil
anos atrás e colonizou as Américas, dando origem aos
grupos paleoíndios.
De outro lado, por volta de 20 mil anos atrás, apareceram
os primeiros mongolóides no Leste da Ásia. Eles cruzaram
o Estreito de Bering há cerca de 12 mil anos, colonizaram
as Américas e substituíram os paleoíndios que
aqui estavam, dando origem aos grupos ameríndios atuais.
Cabeça
chata
Em se tratando de morfologia, basicamente o que diferencia os sul-americanos
mais antigos, ou paleoíndios, dos atuais é o formato
do crânio. Os paleoíndios, dotados da chamada morfologia
generalizada, tendem a exibir um formato de cabeça semelhante
à dos atuais australianos, melanésios e africanos
subsaarianos. Visto de cima, o neurocrânio é estreito
e longo, lateralmente alongado, com face proeminente, nariz baixo
e largo e órbitas baixas.
A morfologia asiática, ou mongolóide, é o oposto
disso. Visto de cima, o crânio é bem redondo, largo
e curto, com cara chata, nariz alto e estreito e órbitas
altas. Através de técnicas estatísticas
multivariadas, as medidas dos 81 crânios foram comparadas
com as de crânios de coleções de referência,
tiradas da literatura. O material estudado pertence a diversas coleções
brasileiras e do exterior, explica Hubbe.
Assim, de acordo com as pistas seguidas pelos antropólogos,
não só os antigos colonizadores das Américas
foram outros além dos ameríndios, como o período
da ocupação teria sido anterior ao que se acreditava.
Sua tese, conta Hubbe, é na verdade fruto de um trabalho
iniciado há 17 anos pelo professor Neves. Além de
escavações, foi necessário encontrar em diversas
coleções o material a ser estudado. O trabalho seguinte
foi datar, catalogar, contextualizar e reconstituir toda a ossada,
bem como fazer as medições e comparações
com as coleções de referência. Um trabalho de
fôlego que contou com financiamento da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Segundo Hubbe, os primeiros trabalhos arqueológicos de Lagoa
Santa datam de 1810. Os fósseis encontrados na região
desde então pertencem a coleções e museus localizados
principalmente na Inglaterra e na Dinamarca, além de Rio
de Janeiro e Minas Gerais. Os pesquisadores da USP analisaram os
crânios escavados pelo dinamarquês Peter Wilhelm Lund
(1801-1880), considerado o pai da arqueologia e paleontologia no
Brasil. Os fósseis foram encontrados no Sumidouro, famoso
sítio arqueológico da região de Lagoa Santa.
Para Hubbe, a repercussão da pesquisa foi grande não
apenas por ela ter sido divulgada em uma renomada publicação
científica. O artigo foi impactante especialmente porque
ninguém na América tem acesso a 81 crânios de
uma mesma região, diz. Para se ter uma idéia,
em toda a América do Norte existem, no total, apenas cinco
crânios paleoíndios. Assim, os outros estudos realizados
até agora sobre a morfologia dos primeiros americanos baseiam-se
em amostras pequenas.
Para o pesquisador, a repercussão traz visibilidade ao laboratório
do IB e mostra que os cientistas possuem material para defender
o que propuseram. Nosso laboratório sempre teve uma
dificuldade muito grande de publicar trabalhos nos Estados Unidos,
porque lá existe esta visão dogmática e monolítica
de que a América foi colonizada por apenas um grupo e ponto.
O
começo
Em 1989, quando trabalhava com os crânios da região
de Lagoa Santa, o professor Walter Neves decidiu empreender um estudo
em conjunto com o argentino Héctor Mario Pucciarelli, do
Centro de Investigação em Genética Pura e Aplicada
da Universidade Nacional de La Plata (Argentina). Os dois analisaram
alguns crânios da Coleção Peter Lund, que o
naturalista escavara entre 1812 e 1815 e que estão na Dinamarca.
Lund foi o primeiro a sugerir que a origem do homem nas Américas
poderia ser muito mais antiga do que se pensava. Foi também
o primeiro a acreditar na possibilidade de que homens e grandes
mamíferos teriam vivido na mesma época em terras brasileiras,
o que acabou sendo confirmado quando a equipe de Neves conseguiu
datar uma preguiça-gigante em 9,9 mil anos e um tigre-dentes-de-sabre
em 9,2 mil anos.
Os arqueólogos seguiram a trilha do pai da arqueologia no
Brasil. Neves acreditava nas pistas aventadas por Lund e trabalhava
com base nelas. A hipótese, afinal, ganhou visibilidade em
1998, com a análise do crânio de Luzia, a mulher negróide
de fisionomia bem diferente do nativo americano. Encontrada em Lagoa
Santa, Luzia ganhou uma reconstituição facial a partir
de um documentário exibido pela BBC de Londres. Com a análise
dos 81 crânios de Lagoa Santa, não deu outra: A
partir das comparações, a equipe chegou à conclusão
de que os crânios eram diferentes do que se observa hoje em
dia nas Américas, diz Hubbe.
Clovis
first
No artigo científico The Neanderthal Phase of Man,
o tcheco naturalizado americano Ales Hrdlicka (1869-1943) defendia
uma origem comum para todas as raças.
Hrdlicka atribuía as variações morfológicas
à evolução biológica de cada uma das
levas de migrações e também às influências
ambientais sobre os novos habitantes. Pai da antropologia física
nos Estados Unidos, Hrdlicka é o responsável pela
idéia original de que as Américas foram colonizadas
por um único grupo. No modelo original, essas populações
do Leste asiático, especializadas na caça de megafauna
(designação para os grandes animais terrestres, especialmente
mamíferos, que se extinguiram entre 8 mil e 10 mil anos atrás),
chegaram à América do Norte via Estreito de Bering
e em seguida colonizaram o restante do continente. Assim, acreditava-se
que a idade da entrada do homem na América não passava
dos 11,4 mil anos, que é a data do sítio arqueológico
mais antigo dos Estados Unidos, conhecido como Clovis e localizado
no Novo México, afirma Hubbe.
Entretanto, chegou Luzia, datada de 11,5 mil anos, para dar início
a um dilema. Fazer ciência é questionar, e por
isso muitos cientistas contestaram o modelo (dos dois componentes
biológicos principais), dizendo que ela poderia ser um indivíduo
isolado. Agora temos mais evidências de que não se
trata disso, diz Hubbe. Os vestígios arqueológicos
analisados pelos cientistas da USP sugerem que o primeiro fluxo
migratório ao Novo Mundo teria ocorrido há cerca de
15 mil anos, na transição entre o Pleistoceno (período
que vai de 1,8 milhão de anos até 10 mil anos atrás)
e o Haloceno (que abarca os últimos 10 mil anos, chegando
até o presente).
Segundo o pesquisador Mark Hubbe, a região de Lagoa Santa
foi ocupada de 11,5 mil até 7,5 mil anos atrás. Após
esse período, foi totalmente abandonada, e só voltou
a ser habitada novamente há cerca de 2 mil anos, por grupos
totalmente diferentes. Por que e como o território teria
sido abandonado pelos grupos originais são as perguntas que
atualmente ocupam a mente dos pesquisadores do IB.
Walter
Neves e Mark Hubbe examinam material retirado de sítios como
a Lapa do Sumidouro (à direita)
Novo
projeto investiga desaparecimento dos paleoíndios
Os
grupos mongolóides, ancestrais dos ameríndios
atuais, chegaram à América do Sul há
aproximadamente 8 mil anos, via Estreito de Bering. Os paleoíndios,
por sua vez, que haviam alcançado o continente cerca
de 4 mil anos antes, desapareceram das Américas com
a vinda das populações mongolóides. Quando
os mongolóides chegaram, há 8 mil anos, os paleoíndios
desapareceram da América do Sul. Na América
do Norte deve ter acontecido a mesma coisa, talvez um pouco
antes. Não sabemos direito como ou por que isso ocorreu.
A nova etapa do projeto pretende justamente entender como
foi essa transição dos grupos paleoíndios
para os mongolóides, explica Hubbe.
O ponto de partida para entender essa transição
é avaliar se realmente o povo original desapareceu
bruscamente ou não. Poderemos, por exemplo, trabalhar
com amostras mais recentes e ver se todas apresentam apenas
características mongolóides ou se possuem traços
paleoíndios.
Os cientistas sabem, até o momento, que em alguns cantos
remotos das Américas como na Península
da Baixa Califórnia, no Novo México (EUA), e
provavelmente na Terra do Fogo, na Patagônia (América
do Sul) foram encontrados recentemente sepultamentos
de grupos que se assemelham aos paleoíndios originais,
o que poderia indicar que a transição de uma
população para outra talvez não tenha
sido tão brusca.
O estudo sobre a transição de populações
começou há seis anos, está na sua segunda
edição e conta com um grande financiamento da
Fapesp. Denominado Origens e Microevolução
do Homem na América, o projeto pretende inventariar
mais esqueletos humanos de Lagoa Santa e entender como e quando
essas populações viveram, além de investigar
por que abandonaram a região.
A nova etapa do projeto provavelmente terá os primeiros
resultados publicados só daqui a cerca de 10 anos.
Cada mês de escavação nos toma até
um ano e meio para curar, limpar e inventariar todo o material
retirado. É um trabalho lento e uma oportunidade única
porque Lagoa Santa é uma das poucas regiões
que preservam tantos vestígios arqueológicos,
especialmente dessa data. Por isso vale a pena investir todo
o tempo e recursos que tivermos, afirma Hubbe.
Paralelamente a esse projeto, os cientistas do IB também
querem mostrar que os grupos paleoíndios estavam dispersos
pela América do Sul inteira. Por isso vamos começar
agora a trabalhar com coleções de diversos países,
e não só de Lagoa Santa, diz o pesquisador.
A existência de sepultamentos de paleoíndios
localizados em sítios arqueológicos dispersos
pelo continente poderá comprovar o modelo dos dois
componentes biológicos principais, defendido por Neves.
Em dezembro, cientistas mexicanos publicaram um artigo mostrando
basicamente que os primeiros habitantes daquele país
também possuíam morfologia paleoíndia,
da mesma forma que os antigos moradores de Lagoa Santa.
Isto é um ponto a favor da idéia de que
estavam realmente dispersos por toda a América do Sul.
A Colômbia também está trabalhando com
coleções esqueletais provenientes da Savana
de Bogotá que provavelmente apontam na mesma direção.
Esse artigo está em fase de preparação
e deve ser publicado em meados deste ano, afirma Mark
Hubbe
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