Como vivem e que tipo de educação recebem
os adolescentes brasileiros sentenciados pelo Poder Judiciário
e cumprindo medidas socioeducativas de natureza restritiva de direitos
e privativa da liberdade? Em geral, a sociedade ignora o que se
passa com essa população tutelada pelo Estado ou fica
sabendo alguma coisa apenas quando há rebeliões nas
Febens ou qualquer nome que se dê às instituições
que recebem crianças e adolescentes infratores e a
imprensa entra com denúncias de maus-tratos ou carências
administrativas. Revelar um pouco do que está escondido atrás
dos muros é a originalidade e o mérito do trabalho
da professora, pesquisadora e militante dos direitos da criança
e do adolescente Irandi Pereira, que acaba de defender na Faculdade
de Educação da USP tese de doutorado sobre O
adolescente em conflito com a lei e o direito à educação.
Faço a denúncia do problema, diagnostico o problema
e apresento proposta de solução, diz Irandi,
que milita na área desde a década de 70, foi professora
primária na Febem paulista, depois assistente técnica
da diretoria, e participou da elaboração da legislação
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), quando integrava
o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conan) na primeira gestão (1992-94). Também foi professora
da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação
da USP e atualmente leciona na Universidade Estadual de Maringá
(PR).
A educação escolar formal do adolescente privado da
liberdade é o objeto principal do estudo da professora. Pela
Constituição Federal de 88 e de acordo com a lei específica
(o ECA), o adolescente em regime fechado é, em primeiro lugar,
sujeito de direitos; depois, pessoa em condição peculiar
de desenvolvimento e, finalmente, prioridade absoluta do Estado.
Ora, a educação é um direito fundamental, um
bem da vida, e se o adolescente está sob a custódia
do Estado, deve ter condições favoráveis para
cumprir a obrigação legal da educação.
A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB) trata dos projetos especiais para casos semelhantes.
Evolução
Em 1978, Irandi prestou concurso para professora na Febem paulista
e deu aulas até 1981 na antiga Unidade I, na Raposo Tavares.
Desse tempo data a sua participação em grupos de estudo
sobre crianças e adolescentes, estimulados pelos resultados
da CPI do Menor no Brasil, de 1975, que discutiu a questão
dos maus-tratos à infância no sistema de atendimento
das Febens. De lá para cá, segundo a pesquisadora,
muita coisa melhorou. Graças, sobretudo, ao trabalho que
a sociedade fez com a CPI do Congresso Nacional, com a reformulação
do Código do Menor de 1927 (depois de 79), com o Estatuto
da Criança e do Adolescente e com a Constituição
de 88, que, no artigo 227, estabelece que crianças e adolescentes
são pessoas com status de cidadão, pois até
então eram consideradas pessoas de segunda categoria.
A tese de doutorado de Irandi ocupa-se dos maiores de 12 anos que,
por terem cometido algum tipo de delito ou ato infracional, foram
julgados por isso e devem cumprir a medida judicial, seja em meio
aberto ou meio fechado. Todas as medidas têm um prazo para
que esse adolescente seja acompanhado e nesse tempo o Estado deve
ter programas de atendimento, que a professora chama programas de
socioeducação. Não é uma palavra vazia;
ela ajuda a separar coisas diferentes: a medida que atinge o adolescente
é judicial, mas a educação que deve receber
é social.
Outra distinção que a pesquisadora faz refere-se à
perspectiva em que se deve trabalhar nesse caso: se o menino cometeu
um ato infracional, seja reincidente ou não, não se
pode trabalhar com ele na perspectiva do dano, pois por isso ele
já foi julgado e recebeu a pena; além do mais, se
o educador trabalhar nessa perspectiva, nem o adolescente nem os
educadores acharão meios para que possa rever suas atitudes.
Então, segundo Irandi, o trabalho educativo deve ser feito
na perspectiva do desafio, do desafio de garantir que esse adolescente
não cometa mais atos infracionais.
Trabalho
educativo do menor infrator deve ser feito na perspectiva do desafio
de garantir que esse adolescente não cometa mais atos infracionais,
segundo
pesquisadora
Medida educativa em meio fechado significa que o adolescente está
privado de liberdade. Ora, todos os educadores concordam com Paulo
Freire de que educação não rima com coerção,
rima com liberdade. Queremos que o adolescente venha para
uma medida em meio aberto, mais próximo da família
e da comunidade, diz Irandi. Não posso apostar
no dano. Agora é outro momento, o da educação
desse adolescente.
Até aqui, a professora referia-se à educação
ampla, que compreende, além da educação propriamente
dita, a cultura, as artes, o esporte, o lazer e outros cuidados
que se devem ter com o adolescente. No trabalho acadêmico
apresentado à Faculdade de Educação, ela aborda
preferencialmente a educação escolar formal . E o
Estatuto da Criança e do Adolescente é claro quando
diz que, se o menino (menina) cometeu um ato infracional, deve ser
julgado por isso de acordo com o rigor da lei a lei que estabelece
uma série de requisitos que devem ser observados por ele.
Ao Estado cabe dar condições para que ele as observe.
Uma delas é providenciar programas de atendimento escolar,
que variam de acordo com a situação do adolescente,-
se está em regime aberto ou fechado. Em meio fechado, três
requisitos estão diretamente relacionados com a educação:
educação escolar regular, formação profissional
e trabalho. Se o jovem deve ficar um ano em meio fechado, tem direito
a medidas socioeducativas regulares nesse período. No seu
trabalho, Irandi procura se certificar de que o Estado cumpre de
fato a sua obrigação. Sua experiência de 17
anos na Febem paulista mostrou que não é fácil
educar regularmente um adolescente em meio fechado, exatamente porque
essa atividade pressupõe a liberdade. O ser humano
precisa ser livre para ser educado, diz a nova doutora em
educação, e a máxima dos especialistas é
educar para que o garoto ganhe autonomia e participe da vida social.
Mas não estou preocupada com essa dificuldade,
diz, garantindo que o ECA é uma lei muito boa nasceu
do desejo de parte da sociedade civil brasileira e vem sendo posto
em prática pela militância, antes mesmo de o estatuto
ser formalmente criado em 1990, mediante projetos alternativos que
não sejam coercitivos, assistencialistas ou massificantes.
É aí que se torna mais clara a perspectiva do
desafio, de que o adolescente infrator, a sua família,
os educadores e a própria sociedade revejam suas atitudes.
Nessa perspectiva, segundo Irandi, o Estado brasileiro precisa aprimorar
o sistema de atendimento aos direitos do adolescente e pensar em
propostas de educação escolar diferenciadas.
A educação em meio fechado enfrenta dificuldades concretas.
Uma delas é que o adolescente infrator pode receber uma pena
de seis meses e depois disso, ou até antes disso, deixar
a instituição. Nesse tempo, como fica a escola? De
acordo com o ECA, ele precisa freqüentar a escola, preferencialmente
a escola da comunidade, não intramuros. Claro que, se está
com a pena mais drástica de privação da liberdade,
não pode estudar fora. Nesse caso, é objeto de educação
escolar diferenciada. Há casos em que o menino continua matriculado
na escola que freqüentava antes de entrar na Febem (ou instituições
semelhantes). No caso de haver abandonado a escola antes de ser
internado, a instituição pode rematriculá-lo
para que continue a estudar lá depois de ganhar a liberdade.
Enquanto isso, tem que estudar no ambiente de regime fechado.
Outro modelo, adotado pela Febem paulista, é criar na própria
instituição escolas públicas ligadas à
rede estadual de ensino. Outras unidades preferem contratar professores.
O que não pode é o adolescente ficar sem estudo, caso
contrário, pergunta Irandi, como garantir que a decisão
judicial está sendo cumprida conforme a lei?
Queremos que o adolescente venha para uma
medida em meio aberto, mais próximo da família e da
comunidade, afirma pesquisadora. Para ela, educação
não rima com coerção, mas com liberdade
Estatísticas
Uma das dificuldades que enfrenta o pesquisador é a falta
de informações completas e confiáveis sobre
a questão da criança e do adolescente no Brasil. Segundo
Irandi, os dados são parcos e esparsos.
Uma contribuição do seu estudo, considerada relevante
pela banca examinadora, foi enriquecer e sistematizar as estatísticas
e a bibliografia pertinentes. A maior parte dos números vem
do Ministério da Justiça, da Secretaria Especial de
Direitos Humanos e do Departamento da Criança e do Adolescente,
coletados nas unidades de atendimento (sistemas de atendimento,
as antigas Febens). É certo, porém, que em muitos
casos juízes aplicam medidas socioeducativas, mas elas não
ficam oficialmente registradas. Além dessas fontes oficiais,
Irandi foi buscar informações em órgãos
não-governamentais e na imprensa.
Fazendo as contas, a pesquisadora chegou à conclusão
de que no Brasil o problema do adolescente infrator não é
tão grave assim. Ela garante que o número deles não
passa de 10% em relação ao número de adultos
que cometem crimes. Há países, como o Japão,
onde essa porcentagem é muito maior. Por isso mesmo, a professora
considera que, com esforço e boa vontade, o problema da criança
e do adolescente infratores pode ser resolvido satisfatoriamente.
Eis alguns números, sempre com a ressalva de que são
esparsos e parcos: em 2002, havia no Brasil 131.625 mil adolescentes
sob a tutela do Estado, sendo 775 em advertência (ato infracional
leve); 4 na obrigação de reparar dano (leve); 26.856
na prestação de serviço comunitário
em meio aberto; 65.717 em liberdade assistida (ato infracional menos
grave do que aquele que leva à prestação de
serviço comunitário); 3.810 em semi-liberdade (passa
a noite na instituição, mas de dia trabalha ou estuda
fora); 29.607 em regime de internação; e 4.860 em
regime de internação provisória (de até
45 dias). O perfil do adolescente revelado na pesquisa da professora
indica que 76% cometeram a infração entre 16 e 18
anos; 18% entre 12 e 15 anos; e 6% entre 19 e 20 anos.
Família
Outro mito que Irandi derruba é o de que a maioria das crianças
e adolescentes que cometem infrações vive abandonada,
na rua e sem família. Pelo contrário, antes do ato
infracional, 81% viviam com a família. E isso é uma
demonstração de que falta no Brasil uma boa política
dirigida à família. Trabalho com a possibilidade
final de políticas públicas, afirma a pesquisadora,
acrescentando que os dados de 2002 também revelam que 85%
dos adolescentes consideram a família como fator de bem-estar;
a escola vem em seguida com 40%, seguida das igrejas (sem distinção
de credos) com 24%; da comunidade com 23%; do governo com 20%; da
polícia com 16%; e dos partidos políticos com 5%.
No
congresso, pedagogia social
A
professora Irandi Pereira vai participar de mesa-redonda sobre
escolarização de adolescentes em cumprimento
de medidas socioeducativas, que faz parte do programa do Congresso
de Pedagogia Social, a se realizar esta semana, de quarta
a sexta, em três instituições diferentes:
Faculdade de Educação da USP (dia 8), Centro
Universitário FMU (9) e Mackenzie (10). O programa
integral pode ser encontrado no site www.usp.br/pedagogiasocial.
Um dos organizadores do congresso, o professor Roberto da
Silva, do Departamento de Administração Escolar
e Economia da Faculdade de Educação da USP,
tem em seu currículo o fato de haver passado parte
de sua vida em instituições totais
(abrigos, Febens e prisões), conforme ele mesmo assinala.
Por isso mesmo, na qualidade de pesquisador e professor universitário
agora se dedica a estudá-las. Acho que tenho
condições de propor uma outra formação
para esse pessoal e o faço em colaboração
com as principais instituições, órgãos
e serviços que administram esses setores no Brasil,
afirma.
Silva coordena o projeto de pesquisa Recuperação
de fontes seriais para a historiografia da criança
institucionalizada, financiado pela Fapesp. Além
de estudar a criança órfã, também
pesquisa a Febem, com resultados publicados no livro Os filhos
do governo (Ática, 1998), e o sistema penitenciário,
com as conclusões publicadas na obra O que as empresas
podem fazer pela reabilitação do preso (2002).
Como consultor da Unicef, acompanha o Censo Nacional de Abrigos,
parcialmente publicado no livro Direito à convivência
familiar de crianças e adolescentes no Brasil (Ipea/Unicef
2004).
Junto com o Curso de Serviço Social da FMU e o Curso
de Psicologia do Mackenzie, diz que aceitou o desafio de fazer
um primeiro balanço do que é a pedagogia social
no Brasil (na verdade, quase desconhecida) e na Europa, que
já tem tradição na área. Especialistas
do exterior e do Brasil farão palestras e exposições
no congresso. Até semana retrasada, já havia
mais de 500 inscrições. Informações
pelo telefone 3091-3342, ramal 278, ou fax 3815-0232.
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