Greves,
bloqueios, passeatas, debates, falta de transporte e até
“sobras” de bombas de gás lacrimogêneo:
a onda de protestos contra o chamado Contrato do Primeiro Emprego
(CPE) que varreu a França nos últimos meses afetou
também a rotina de estudantes da USP que participam de programas
de intercâmbio no país. Aluna de Jornalismo na Escola
de Comunicações e Artes (ECA), Ana Carolina Ikeda,
22 anos, conta que, mesmo sem barricadas, o prédio do Instituto
de Comunicação da Université Stendhal, em Grenoble,
foi bloqueado no dia 7 de março. A direção
decidiu suspender as aulas, e apenas o pessoal da administração
podia entrar. A estudante diz que, por causa dos casseurs (grupos
que promovem depredações e confrontos com a polícia,
geralmente ao final das manifestações), não
acompanhou tão de perto as passeatas. “Ainda assim,
não escapei da fumaça de gás lacrimogêneo
voltando do trabalho num dia de manifestação. No final,
você acaba se acostumando com o barulho das sirenes e os gritos
dos manifestantes toda semana”, relata Ana Carolina –
que, assim como os demais estudantes uspianos citados nesta reportagem,
respondeu por e-mail às questões enviadas pelo Jornal
da USP. Na semana passada, o governo finalmente cedeu às
pressões das organizações sindicais e estudantis
e anunciou a retirada do CPE (leia o texto ao lado).
A experiência de ficar sem aulas foi vivida também
por Beatriz Lancia Noronha de Oliveira, 22 anos, aluna da Faculdade
de Direito na USP, que faz Master em Direito na Université
Paris VIII. Uma greve paralisou parcialmente por mais de um mês
os cursos em sua faculdade. “No lugar das aulas, os organizadores
da greve promovem debates e assembléias-gerais para discussão
do assunto”, diz. Inicialmente apenas os alunos participavam
das reuniões, mas, como o governo insistia em manter o projeto,
também os funcionários e professores resolveram parar.
Na semana passada, com o anúncio oficial da desistência,
começou-se a discutir o que fazer com o calendário
acadêmico. “Fala-se que a reposição das
aulas será durante as férias de verão. Em algumas
universidades, onde a greve durou mais de dois meses, dizem mesmo
que o ano letivo está comprometido”, conta Beatriz.
Alunos da Escola Politécnica da USP, Flávio Pinheiro
Corsini e Daniel Ferreira Nogueira não tiveram interrupção
nas aulas, mas também sentiram repercussões do movimento
no cotidiano, principalmente em relação ao transporte
público. “Algumas estações de metrô
são fechadas e a rota dos ônibus é desviada
quando as manifestações ocorrem”, diz Flávio,
21 anos, que faz programa de diploma duplo com a École Nationale
Supérieure de Techniques Avancées, em Paris. Na École
Centrale Paris, periferia da capital francesa, onde assiste a suas
aulas de engenharia, Daniel Nogueira, 20 anos, avalia que a mobilização
foi “muito fraca”. Entretanto, chamou a atenção
do estudante a grande presença de policiais nos arredores
das principais universidades de Paris nos dias de manifestação
(geralmente às terças-feiras). “Dia de manifestação
é dia de andar a pé. Aprendi a não depender
do transporte público e a fazer todos os meus trajetos a
pé”, conta Ana Carolina, da ECA, acrescentando que
evitava sair no período de dispersão dos manifestantes,
“horário predileto dos casseurs”.
Maio de 1968 – A comparação do movimento atual
com o de maio de 1968 foi freqüente nas primeiras análises
veiculadas pela imprensa a respeito da onda de protestos na França.
Mesmo sem ter vivido a época em que se consagraram slogans
como “É proibido proibir”, os estudantes da USP
acreditam que as situações são muito distintas.
“As duas manifestações são comparadas
em termos de suas dimensões no território francês,
mas não pelo tema em discussão”, acredita Flávio
Corsini. Para Beatriz Noronha de Oliveira, os protestos dos anos
60 questionavam o sistema político e social de maneira geral,
enquanto que, agora, trata-se de um assunto pontual. “A manifestação
é claramente contra o CPE, e não contra o sistema
de governo em si”, diz. Além disso, aponta, o movimento
não se espalhou para outros países, como aconteceu
em 1968.
Para Ana Carolina Ikeda, os jovens deste início de século
21 querem justamente a manutenção de direitos conquistados
após o movimento de 68. “Se você pode ser contratado
através de um Contrato de Duração Determinada
(CDD) também por dois anos e depois desfrutar de uma longa
lista de benefícios sociais, por que aceitar um CPE que não
garante nenhuma estabilidade?”, pergunta. “A manifestação
atual tem um paralelo muito maior com a revolta dos banlieus (subúrbios
onde foram registrados tumultos e depredações em 2005).
Em comum, jovens frente a uma taxa de desemprego nada européia:
25% em geral, que chega a 40% nos banlieus.” “Os franceses
dizem que sempre viveram em um ambiente onde a estabilidade e a
segurança social são muito fortes e consolidadas”,
considera Flávio Corsini, para quem essa realidade, junto
a uma postura do governo de impor um projeto sem discussão
com a sociedade, está na raiz da resistência ao CPE.
O estudante da Escola Politécnica avalia que o projeto representava
também o início de uma reação do governo
francês em face do alto desemprego e do baixo crescimento
econômico do país, em comparação com
outros membros da União Européia. “Atualmente,
mesmo os empresários franceses não se sentem estimulados
a investir. Os altos impostos e a forte proteção dos
trabalhadores fazem com que exista uma fuga das empresas para países
vizinhos como Bélgica e Luxemburgo.”
Cidadania – O privilégio de viver um período
de estudos no exterior – “temperado” pela chance
de testemunhar acontecimentos históricos – propicia
aos alunos a chance de traçar paralelos entre a realidade
brasileira e a experimentada na Europa. Para Daniel Nogueira, da
Poli, “de forma geral o governo francês é muito
mais aberto ao diálogo com a sociedade e muito mais reativo
do que no Brasil, talvez pela organização política
ou talvez por não existirem tantas tensões socioeconômicas
como no Brasil”. Ana Carolina Ikeda, da ECA, acredita que
o movimento anti-CPE “mostra a distância entre o exercício
da cidadania” entre os dois países. “Enquanto
na França os jovens lutam para não perder direitos
já adquiridos, nós ainda corremos atrás do
que não temos, ou nem isso. Ficamos letárgicos diante
das decisões do governo, sem pôr em prática
os mecanismos democráticos dos quais dispomos. No Brasil,
assistimos inertes às ações dos políticos.
Aqui, eles as contestam quando não concordam.”
Beatriz Noronha de Oliveira, da Faculdade de Direito, se diz impressionada
com o engajamento político e o sentimento de solidariedade
dos franceses. “Quando estão insatisfeitos com as medidas
adotadas pelos governantes, eles se unem por uma causa comum. Eles
têm a consciência de que juntos podem fazer valer seus
anseios”, afirma. “É uma pena que no Brasil não
exista esse sentimento comum.”
Desemprego
atinge 10% da população
A decisão do governo francês de “engavetar”
o Contrato do Primeiro Emprego (CPE) veio após dois
meses de gigantescas passeatas contra o projeto. No dia 4,
por exemplo, multidões protestaram nas ruas de diversas
cidades da França. As agências internacionais
avaliaram entre 1 milhão e 3 milhões o número
de manifestantes. Paralisações parciais e greves
gerais também foram convocadas.
O CPE foi uma tentativa do governo de confrontar as altas
taxas de desemprego registradas no país: quase 10%
da população ativa e cerca de 25% entre os jovens
com menos de 26 anos de idade. O ponto que provocou a revolta
de entidades sindicais e estudantis contra o CPE foi a criação
de um período de teste de 24 meses para trabalhadores
dessa faixa etária, no qual os empresários teriam
menos encargos e os estagiários, menos direitos, podendo
ser demitidos sem causa formalizada.
A aprovação popular do primeiro-ministro Dominique
de Villepin despencou – e, segundo a avaliação
de analistas políticos, suas chances na disputa presidencial
do início de 2007 praticamente desapareceram. Ao mesmo
tempo, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, dissociou-se
de Villepin e fortaleceu sua posição para concorrer
à Presidência. Sarkozy lidera a União
para um Movimento Popular (UMP), partido do presidente Jacques
Chirac, e desde o início do processo deu declarações
em favor da flexibilização do CPE. “Para
os jovens, nenhum dos atuais governantes e candidatos parece
ser bom”, diz a aluna da ECA Ana Carolina Ikeda. “Para
meus amigos, a próxima eleição significará
‘voto útil’ em qualquer um, menos UMP/Chirac
de novo.”
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